Publicado em Çopyright 1, 18 Maio 1996
É mais fácil imaginarmos o discurso como uma tarefa cooperativa onde “nós” -uma colecção de sujeitos humanos desconexos- nos esforçamos pela harmonia. Mas o nosso próprio esforço revela a natureza muito distinta da fala. O discurso é um terreno movediço, uma área perigosa de projecções, onde nos mimetizamos em corpos animados que enactuam a biologia como enactuam a História. O pavoroso silêncio do não-dito e puramente imaginado esvoaça sobre as conversas, enquanto o silêncio do não-dito mas temporariamente compartido fornece apenas um débil e cambiante apoio para a assembleia de palavras e olhadas inconclusas.
A irresolúvel distância entre o ser e a realidade ameaça com irromper em qualquer momento e dissolver a ilusão do acordo. Às vezes a nossa individualidade mais originária -produto da biologia mais do que da consciência- leva-nos a navegar em silêncio pelas sinuosas paisagens da conversa. O discurso tem abismos que nem sempre salvamos, dissimulamos ou desafiamos. Outras vezes, tremendas forças tectónicas propelem-nos até à clareza do entendimento, e existe a plenitude comunal de estarmos juntos. Mas as alturas claras do entendimento são efémeras, como efémeras são as nossas inscrições afortunadas na ordem das cousas naturais. Quando o acoplamento de significados remite, ficamos com a triste ansiedade de não podermos alcançar nunca o que há além, ou com o sombrio medo de que também o entendimento faça parte do vazio que o rodeia.
Navegamos sobre flutuantes fitas de conversa, sujeitos quase sempre às suas tensões, elasticidades e inesperadas inversões causadas pela natureza material de estarmos sós. Nunca podemos ser o nosso discurso, e portanto só podemos contemplá-lo, externo a nós, quando já ele nos envolveu numa configuração de formas translúcidas de ausência. Apesar de tudo, perseveramos na ilusão de transformarmos a distância em palavras e olhadas porque as outras alternativas são demasiado escuras, inquietantes e definitivas para se adequarem à desejada coerência dos nossos actos.
O discurso é o nosso íntimo adversário, o que obstrói o abraço colectivo ou o pavoroso contacto da pele com a pele, essoutros actos substitutivos de determos para sempre a consciência e encetarmos o opiáceo olvido do redescobrimento.
Capturar e modelar o silêncio para os outros é uma arte, a expressão duma satisfação e meta suprema. Só quando criamos o silêncio como o cimento coesivo da fala, a ilusão comunal devasta-se a si própria numa fragmentada réplica do mundo que nos aguarda, a centímetros ou segundos de distância, em torno das nossas frágeis vozes e das nossas mútuas procuras de cumplicidade. A maior parte do tempo, porém, não conhecemos o nosso lugar real na geometria do discurso: Quando falamos, acaso estamos dentro da fala, participando, ou apenas deslocando o nosso medo de estarmos realmente noutro sítio? Quando falamos, estamos a conjurar a sensação inconfessada do extravio através da magia das palavras que mascaram?
Ontem à noite, sentado na cama, vi o meu reflexo no espelho do outro lado do quarto. Parou-se-me o coração ao observar claramente que a minha figura reflectida tinha os olhos fechados. Verifiquei o facto várias vezes, com pavura e esperança, até que compreendi, decepcionado, que um jogo de luzes e sombras estava a causar esta outra ilusão mais. Porque o medo e esperança mais terrível não é pensar que um é a criação da mente de alguém, mas pensar que um é apenas uma personagem do sonho de um mesmo.