Publicado em A Nosa Terra 670, 20 Abril 1995, p. 24
Aos represaliados e invisíveis
O chamado «mito de Babel» é sem dúvida um dos instrumentos mais nocivos entre os gerados pola ideologia cristã para impor uma unidade que não temos, e uma das suas falácias mais insidiosas para impedir o raciocínio. A interpretação dominante diz que um deus castigou às gentes pola soberba de quererem ser como ele, e, desde então, fez-lhes falar de maneiras diferentes. Uma leitura alternativa é que já antes de Babel as gentes falavam e escreviam diferente, mas entendiam-se. Foi precisamente o seu projecto comum de se unirem livremente para alcançarem as alturas do saber o que ameaçou o poder desse deus medíocre, inseguro, mesquinho, vingativo, um deus que não merece ser deus dos mortais que queiram ter um deus.
Porque, que era Babel? Babel era um cobiçoso projecto de unidade na diferença; uma heterodoxa panglossia; um balbordo, uma fusão, uma criação de linguagem à margem e além das restritivas Línguas. Babel era a maneira de ser um mesmo ou uma mesma, a glotodiversidade local e planetária, a burla feita voz, o desafio ao Princípio Monoglóssico. Babel era um projecto proletário. Babel era sentir-se unidos polo poder de colocar pedra após pedra no mesmo edifício de História e de saber. Babel era falarmos, escrevermos, sempre escutarmos, sempre deixarmos que os demais falassem e escrevessem. Babel era a antítese da censura, o começo da libertação, o fim do dogma.
Mas por isso Babel era perigoso, e o deus cristão que tudo o domina, o mesmo deus ocidental que agora nos habita, elaborou uma Lei terrível e imoral que desde então condena a diferença, arrasa com a consciência, mutila os dedos e as línguas que ousam desafiar a ordem alfabética. E sob a aparência de bondade e de justiça esse deus cruel converteu-se no Íncubo que possui os poderosos para os encher de falsas justificações nas suas massacres de palavras. E desde então o Íncubo penetrou nos livros e nas letras, nas militares bibliotecas, nas aulas escolares, estendeu-se massivamente polas universidades triangulares, floresceu como um fungo peganhento polos corredores dos congressos e liceus, fagocitou os juizes, untou as mãos dos poetas, seduziu o coração de antigos adversários, prometeu Pátria e glória, concedeu medalhas pola diária lealdade, fez-lhes esquecer aos povos o Sonho originário.
Hoje o mito de Babel segue a ser a escusa principal para os saberes dominantes imporem a sua unitária disciplina. Contra este falaz mito, eu reclamo o Sonho de Babel simplesmente como a nossa capacidade mútua de entender-nos. Seguirão os poderosos borrando com uma penada as páginas malditas, emudecendo a golpes aos estranhos que ousam predicar para os passeantes sobre os cascalhos duma torre derruída. Seguirão os poderosos erigindo o cínico sorriso, seguirá crescendo o silêncio sobre as mentes, seguirá estando proibido o raciocínio. Mas alguns, sempre alguns, doídos pola tinta vermelha imposta aos seus escritos, seguirão também exercendo a diferença, como quem reparte folhas cheias de razão ao vento.
Quem queira entender, que entenda. Quem não queira, que afronte logo a sua condena de ser cúmplice na consecução da barbárie. No entanto, afortunadamente, para alguns de nós, os excluídos, seguirá existindo a metáfora.