Há três maneiras em que o trabalho intelectual universitário atual se inscreve numa lógica muito distante do que ele pretensamente representa: mercantilização, disciplinamento, e calibração. De maneira interessante, a trabalhadora ou trabalhador intelectual resume e incorpora, no capitalismo especulativo do conhecimento, várias dimensões do mercado do capital, como um microcosmos dessa sanguenta ilusão.
Mercantilização. A mercantilização do trabalho intelectual não é nova (mas constitutiva), mas condensa hoje a crise do valor que os teoristas argumentam como caraterística do capitalismo tardio. A crise do valor consiste em que a atividade conformada como trabalho (labor material ou imaterial) revaloriza de cada vez menos a matéria e portanto o produto final. Cada bem de consumo só contém uma pequena fracção de valor acrescentado: o produto é “barato”, muito barato; o lucro do capital obtém-se pola acumulação de valor apropriado na venda de milhões de produtos iguais. Portanto, é a própria força de trabalho que está desvalorizada, ao ter que realizar a mesma atividade infinidade de vezes para criar valor no produto. Conclusão: a força de trabalho não vale nada, pois só acrescenta valor polo tempo em que exerce a sua atividade mecánica, não polas destrezas do trabalho específico. Conclusão: floresce o trabalhador “genérico”, que vale para tudo. Conclusão: este trabalhador genérico não vale para nada, pois há muitos iguais, sobretudo no “terceiro mundo”. Conclusão: não importa que morram (menos dinheiro do “estado social” para mantê-los).
O professorado universitário (e de ensino meio) sabe muito bem o que é isso: muito desemprego, concorrência horrível por trabalhos mal pagos, mais horas de docência polo mesmo salário (minto: por menos salário, um 25% menos nos anos recentes) significam que a própria mão de obra vale menos. Na Espanha, o limite de carga docente anual para o professorado universitário titular multiplicou-se recentemente por 1,33 (um 33% mais) com a Lei Wert, e, além, estabelecem-se diferenças enormes de carga docente entre professorado mesmo da mesma escala profissional, em funções da “excelência investigadora” e miragens assim.
Do mesmo jeito, pola mesma lógica, cada artigo publicado vale cada vez menos. Quando eu entrei na Universidade, há mais de 20 anos, havia colegas que eram titulares com, exatamente, dous artigos científicos publicados. Hoje o currículo de um/a estudante que está a terminar a tese pode superar em dez vezes aqueles currículos. Mas cada artigo em si (como cada garrafa de plástico, ou cada brinquedo de plástico, ou cada telemóvel de gama baixa de plástico) vale menos: crise do valor.
Disciplinamento e autoavaliação. Aqui o trabalhador ou trabalhadora universitária torna-se no seu próprio “cadre” (gestor ou kapo intermédio, que supervisa o processo de produção) por meio de inúmeros processos de “autoavaliação”. Estes consistem em inserir os dados da “produção” intelectual (ver mais adiante) em complexos modelos informáticos dos diversos ministérios ou “agências avaliadoras”, para que a Mákina (sim, a mákina, como as distopias que os liberais desdenham por absurdas) produza a cifra ou letra que nos representa. Acho que o pequeno grupo de investigação no que eu figuro como coordenador vale uma nota de D (de A a E, no sistema dos EUA), vamos, das mais baixas. Penso que dum máximo de 50 pontos, obtivemos 15. Da maneira correspondente, as três pessoas só valemos em dinheiro para investigação uns 1000 euros por ano. Assim exatamente, não é brincadeira. O que “produzimos” traduz-se com precisão ideométrica em quantidades exatas de dinheiro. Polo menos o nosso dá para tóner. Sem essa (auto)avaliação, nem isso teríamos. E sei que o processo é insidiosamente horrível para as pessoas que dirigem amplos projetos de investigação, ou de cumpridos currículos. Evidentemente, o sistema conseguiu que fóssemos co-responsáveis e até auto-responsáveis das nossas classificações e hierarquizações internas, como se isto exprimisse saúde produtiva.
Calibração. Aqui a trabalhadora intelectual já é mákina, isto é, meio de produção. Tudo começa com os testes estandardizadores tipo “reválida” no ensino meio, mas continuará até à velhice. As máquinas estão calibradas para realizarem todas o mesmo trabalho sobre a mesma matéria prima no mesmo tempo com a mesma eficácia taylorista. Uma máquina descalibrada gera desvios na produção e portanto perdas (isto é, menos lucro) para o capital. Os Guias Docentes que devemos encher para cada matéria, explicitam, como num “contrato” com o alunado, todas as “competências” que adquirirá ao cursar a nossa maravilhosa matéria, os conhecimentos que adquirirá, o peso de cada apartado na avaliação, as horas dedicadas a cada atividade… Os Guias são revisados e aprovados segundo critérios gerais de homogeneidade ou compatibilidade. O cumprimento estrito desse Guia deveria ser garantia de calibração do professorado: é irrelevante quem dê essa matéria; o importante é que se dê assim. Nos cursos a distância, ou MOCs (massive online course), cada vez mais populares como produto, o papel do professor é ainda mais marginal. Se bem calibrado, qualquer professor desvalorizado pode cumprir o papel igual que a sua companheira igualmente desvalorizada.
Mão de obra, quadro (auto-quadro), máquina… Cada um/a de nós é um processo de produção em si próprio! Nós somos um mercado! Então, onde está o nosso capital?, diria alguém. Bom, não está. Não criamos capital para nós. Isto é, criamos valor, por acumulação, nos nossos “produtos” imateriais (intelectuais). O produto, evidentemente, não é o artigo ou o livro físico, mas as ideias. Mas este valor não se torna capital para nós: sim para o nosso empregador, que é, bom, o Capital, indiretamente através da universidade pública (“transferência” de conhecimentos à “sociedade”) ou diretamente através da universidade privada. Mesma cousa, praticamente. Esse valor torna-se em riqueza do qual retorna a nós algo, sem dúvida: subsídios de investigação, bolsas, “sexénios” (na Espanha, um plus de investigação), um chisco de prestígio (prestígio?)… Mas, o que é tudo isto, exatamente, senão formas de salário indireto, ou bonos (materiais ou simbólicos), fruto do “excedente”? Em nenhuma análise económica isto pode ser o que se tem chamado “capital” (“cultural” ou não) mas puro salário indireto.
Mercantilização, calibração, auto-avaliação, disciplinamento: o império da ideometria. Como se se tratasse de estimar a longitude, peso e sabor dos ricos chouriços para um mercado “global” crescentemente padronizado, o mercado imaterial mede a longitude, peso, densidade e outras propriedades das nossas pobres ideias manifestadas em artigos: o seu “impacto”, número de páginas, número de referências que contém, número de citações que produz, ranking da revista em que está… Ideometria: a ciência mecánica de medir o valor comercial das ideias, que se supõe que habitam nas nossas palavras. Ideometria: a ciência mecánica para o cálculo exato da sujeição simbólica, sob a ilusão do pensamento e da liberdade.
E somos cúmplices. De muitas maneiras, somos cúmplices ideómetras.
PS: Nesta página que encontro post-facto, propõe-se Ideometry como “the logical measurement of ideas”. Eu falei é na medição mercantil, não lógica. Certo, é uma lógica, mas não a lógica.