Há uns minutos tentava explicar à minha companheira de quase toda a vida (pobre ela) que eu deveria escrever um texto sério sobre Bourdieu, o meu pensador favorito, o que nos deixou tantas cousas sobre as relações entre língua (e linguagem, e discurso) e o seus valores e “capitais” associados, e a apropriação destes valores polas elites, e a sua conversão destes valores nas sociedades, que explicou tanta cousa como por que se estão a perder as línguas que nos constituem, simplesmente por uma equívoca pulsão de sermos humanos mais perfeitos ao falarmos línguas superiores. Mas dizia à minha companheira que, quando imaginava a custosa tarefa de reunir as minhas notas e ideias cada vez mais fragmentadas pola trivialidade dos telejornais em que consiste a Internet, por exemplo, assaltava-me uma sensação picante nas axilas, algo como uma constatação racional de que, com efeito, tenho axilas (tribulação inexistente quando tomo café ou vejo um filme), ou como se estivesse a produzir inconscientemente sustâncias inodoras diante dum cão ameaçador que não me vai travar ainda que eu quisera para ser herói de mim mesmo, isto é, um picor que associo ao desodorante natural maori de alúmen, pedra de alúmen, pedra da loucura, que vai instalando o Alzheimer progressivo (o ordinário, não o de Adolfo Suárez) a partir dos 50 de idade. Em fim, resumo, escrever algo sério sobre Bourdieu resulta-me impossível porque me assaltam as axilas, as minhas, não as dele, e portanto este texto não é sobre as axilas de Bourdieu mas sobre as próprias, embora um título assim de sincero, “As minhas axilas”, procedente de alguém habituado a oferecer verdadeiros tijolos, provavelmente convocasse ainda mais riso do que este texto.
De maneira que o desafio é impressionante: como escrever algo cabal sobre Bourdieu sem imaginar que se tem uma caixinha quadrada nas axilas, como a que colocam os fundamentalistas judaicos na cabeça para um rito quase tão insensato como comer com inusitado respeito um pedaço redondo de pão ázimo diante de centenas de pecadores de domingo. A partir dos 50 as ideias reduzem-se ao essencial da lógica binária, e é assim que as pessoas se fazem ou mais conservadoras ou genuinamente revolucionárias. Como a essa idade as cousas são já brancas ou negras, se se tem algo para preservar, precipita-se o conservadorismo na cabeça. Se não se tem nada, ou quase nada, é fácil roubar supermercados, ou dar marcha atrás para ir a uma finca cooperativa, ou fazer-se um Vicente Ferrer de bagatela. Zizek, por exemplo, optou por isto último porque não acumulou nada mais que suor das suas axilas e um apartamento impraticável de papéis. Quando se vai viver já menos anos dos que se têm vivido, as ideias quadradas (que, a propósito, à margem da sua ordem sempre encaixam no mesmo contentor também quadrado da cabeça que levamos os humanos) nos fazem decidir. A complexa lógica da adolescência de café e cigarros (a nicotina é ideal para sonhar estar louco, como um Leopoldo María Panero que foi sempre auto-imagem) dá passo ao fértil reducionismo em que vivem as plantas e os animais singelos, como o miúdo polvo de anéis da Austrália, que te pica e te paralisa totalmente enquanto observas durante horas uma legião de paramédicas a procurar salvar uma vida inútil com respiração artificial. E essas ideias são sempre paralelas e gémeas, porque cada uma deve morar numa das duas axilas (esquerda, direita), não no lóbulo frontal do pensamento superior abstrato como proclama uma neurologia ainda mais em cueiros do que a cabeça de Zizek, por exemplo.
Ao chegar aos 50, as ideias paralelas das axilas são só duas: ou Bourdieu tinha razão e a língua é um instrumento que também transforma a harmonia originária duma espécie que fingiu civilizar-se por vergonha perante a sofisticação duma ave azul, por exemplo, ao converter a língua em recurso polo qual nos distinguimos e dominamos (axila esquerda); ou a língua é simplesmente (mas complicadamente, como tudo quanto desobedece as teorias de arborescentes geometrias) uma maneira de dizer e de saber que temos que meter um sande de sardinhas no estômago, como um paupérrimo pintor Laxeiro na miséria do após-guerra, ou de amar-nos e rir um pouco, sobretudo de nós próprios. As duas axilas são, sim, mutuamente incompatíveis, não porque o sejam em si, mas porque defender uma ou a outra leva a dous modelos de vida (isto é, de sobrevivência a partir dos 50) mutuamente incompatíveis. O primeiro é iluminado pola febre de descobrir os mecanismos polos quais nos dominamos no mercado da palavra; explicar, por exemplo, por que uma sociedade inteira foi durante 40 anos tão primitiva que expulsou do seu projeto de construção da Fábrica da Língua a setores inteiros de jovens alucinadas e alucinados que só queriam, bom, exercer o seu papel salvador adolescente, mas negavam que a língua, a mesma em que agora escrevo, fosse algo tão sério que só se pudesse ser expressada com as letras da España. E por esta trivialidade de negar, sim, foram expulsas e expulsos, até hoje, e Bourdieu tinha razão.
A outra axila (a conservadora) rege os impulsos do imediato, rege o prazer e a grosseria elementar das frases mais curtas, formulaicas e quotidianas, e impõe na cabeça um modelo no qual a linguagem é apenas uma tradição trivial de entendimento. Esta é, evidentemente, a estratégia preferida dos monolíngues, que, como não têm língua própria (ao não terem outra imprópria imposta acima), situam na axila esquerda não a língua mas outras ilusões de luta, como os movimentos-horizontais-assembleares-de-base-só-para-reformarem-as-putrefatas-constituições-dos-estados, por exemplo Madri, Sol, Quilómetro Zero da Movida.
Perante esta geometria inevitável, o dilema não é só situar-se, cultivar uma axila em lugar da outra, mas perguntar-se sobretudo para que o fazer: para que, se a simplicidade da lógica que se impõe nos 50 não vai impedir a miragem da procura das explicações mais complicadas que vão continuar a sustentar o jogo da linguagem numa sociedade triste. Ou, doutra óptica, perguntar-se para que a axila esquerda, se a teoria do maior calibre explicativo imaginável não vai evitar que o pão se peça e se coma com a axila direita, a axila do ser humano que procede dum remoto ensaio de lagarto. Afinal, calculo, haverá que concluir que o círculo da complementariedade se fecha, não pola natureza complementar das duas axilas, mas pola natureza unitária do ser humano que, com a nobre exeção das anatomias peculiares, alberga ambas duas em uníssono, ambas duas provocando a sensação da impossibilidade da teoria da linguagem.
Bourdieu deixou a porta aberta para que numa noite assim, quando brada de novo o nulo espetáculo de Europa na forma de vulgares ministros do estômago (axila direita) ou de retóricas aspirantes ao cérebro (axila direita disfarçada de esquerda), a diletância a que convida a constatação do Alzheimer como metáfora (o verdadeiro é um cultivo natural do esquecimento) me levasse quase por primeira vez a desafiar o pruído axilar do desconhecido. Porque esta enorme simetria par das cousas levanta a suspeita de que exista um elemento ímpar que reúne os dous pares, não como o triângulo das mitologias religiosas, mas pola unicidade da evidência: da evidência do social. Entre o caráter material da axila direita e o ideológico da esquerda acha-se o centro do social, o que nos faz olhar-nos frente a frente, falar-nos com a boca central (não com o baço ou o fígado deslocados), falar-nos com o vértice que forma num ponto a olhada convergente. É esse valor o grande ausente dos modelos, apesar das proclamas. No social, no comunal, reúnem-se por definição a história duma terra triste, materialmente aburada, assovalhada (sim, essa palavra) e a noção central da dignidade da pessoa. Durante décadas acreditamos sofrer a síndroma das axilas picantes de Bourdieu, a que nos bloqueia tanto o raciocínio como o impulso. Mas não era tal. Era que tínhamos uma cadeia grossa no pescoço de falar, de falar entre nós, e uns grilhões nos dedos de escrever o impossível.
Porém, nada adianta saber que o projeto de compreender a língua e as maneiras em que ela nos manda era fantástico. É tarde e já não se trata disso. A solução é ignorar tanta palavra vazia, tanto fracasso, tanta ignomínia na forma de sentenças de condena. Abre-se, em troca, a enorme sensação da terra. Fora dos edifícios medra uma vegetação mole, que acompanha o corpo que se tende na noite e respira por primeira vez boca arriba, contemplando com certa piedade a fruição da ciência e os seus acólitos, as suas acólitas. Num lado (axila esquerda), uma procissão de seres universitários passeia uma plana efígie de cartão de Bourdieu a tamanho natural, e faz cânticos. No outro lado (axila direita disfarçada de esquerda), os que afirmam não entender a inteligência levam carretadas de leis linguísticas para os edifícios oficiais onde vivem, como animais noctívagos resultado de experimentos mutantes. Uns seres e os outros olham-se com reticência enquanto praticam essencialmente a mesma cerimónia. No entanto, a terra pequena range porque algum inseto fura, e há um suspiro do corpo nu em repouso boca arriba que nos recorda algo muito mais genuíno que a palavra.