Nos sumidoiros da violência todas as ações fedem igual. A brutalidade policiaca é aprendida primeiro sob um chândal com capacete cosido polas meninhas indianas ou as adultas galegas de Inditex. A violência policial leva, dantes, um chândal com capacete e uma mochila às costas. No jogo mediático, os adversários mudam de bando após cada combate. A polícia, esplêndida, arresta-se a si própria e nega-o. Afinal, sempre foram os mesmos símbolos: cabeça rapada, limpa; testosterona em lugar de raciocínio; e uma perigosa e primitiva pulsão de salvadores, de salva-pátrias, de romper-nos o crânio e as ideias por higiene. Depois da mudança de bando, que é o mesmo, já tudo é o mesmo fedor nos sumidoiros democráticos.
Resulta especialmente interessante que tudo aconteça, em Madrid, quilómetro zero de todas as essências, em torno do seu congresso de pretendida representação popular. Que, entre os argumentos de defesa da ação de “Rodear el Congreso” se tenha registado que “Es nuestro, es nuestra casa”. Se existisse a lógica, seria paradoxal que essa mesma casa é a que assinou a Constitución que se rejeita. Se existisse a lógica, seria paradoxal que o mesmo Sindicato Unificado de Policía que justifica a barbárie critique num infantil comunicado há uns meses esta “monarquía bananera”. Mas resulta muito mais interessante que nunca se tenha convocado Assaltar a CEOE em dia de junta geral, Arrodear o Banco Santander em dia de junta de acionistas, Ocupar a Zarzuela em dia de sessão de fotos, ou Expropriar a Moncloa, ou a Capitanía General, ou o arcebispado. Quanta gente iria em autocarros arrodear a choupana do seu generalíssimo caçador de elefantes, o epitético Que Reina Mas Não Governa? Quanta iria recuperar os jardins onde medita o seu bucólico registador da propriedade, Aquele Que Governa Por Decreto? Ou seria excessivo, num reino sem cultura política, pedir que a “indignação” situe o centro do fedor executivo onde reside? Mas não. O protesto contra “os políticos” mobiliza igualmente a esquerda pós-partidos, a direita “apolítica” (a mesma caste que sustinha Franco), os hooligans do balompié de domingo, e os evidentes neonazis de cruz na gorra ou no casaco. A maleável “indignação” contra a “classe política” ataca por igual um corrupto presidente autonómico de solarium que uma concelheira local de cultura. Tudo se junta, tudo está podre, igual que numa era remota em que queimaram o Reichstag, ou num outono mais recente, há hoje dezanove anos, em que os tanques liberais de Ieltsin destroçaram o parlamento.
Se existisse a lógica, pareceria que nestas linhas se está a defender a partitocracia do capital desenhada para produzir os seus próprios monstros. Mas não. Um congresso do capital não se assalta. Se existisse a lógica política, lembraria-se, com coerência, que a casa española do Congreso já nasceu sequestrada, há mais de trinta anos, muito antes desta falsa crise, quando cresciam os primeiros filhos democratas que acreditavam fielmente, como agora, num longo fracasso histórico conhecido como España. Mas hoje Madrid, capital de todas as essências, volta a troar. Em español, em español de raça branca. Não há negros de Madrid arrodeando o congresso. Madrid troa porque é pena que os filhos democratas, os de Deolinda, as parvas que são, já não possam manter o Samsung Galaxy com as suas bolsas de precárias. E agora dói. Antes não doía não: durante décadas a España que linchava ciganos ferros-velhos foi normal. Foi normal enquanto o ex-marxista Felipe González criava as bases desta enorme espoliação de classe. Agora não. Agora, quando a “crise” chega à classe média branca, agora é que dói.
Cedo passará o sangue, o fedor. España foi gradualmente desenhada para manter uma burguesa (sim, esse adjetivo) tolerância da violência. Comparado com aquela guerra antiga, isto não é nada. Em poucas semanas, renovará-se a “classe política” das províncias do norte: Vascongadas, Galicia, el principado catalán, em estrito pai-filho-mãe horizontal. Será a Reconquista? Chegará a figurar em Cuéntame? Em cada CIS familiar, haverá ânsia por anteciparmos os resultados dos partidos. Nesses dous cruciais domingos desportivos haverá numerosas porras paralelas. Que ganhe Obama, que é melhor que Romney. Um mês depois, os funcionários, esses corruptos privilegiados do Estado (sobretudo as enfermeiras), deixarão de cobrar para as doze uvas da paz que inventou Catalunha há quase um século. E algum dia, até Feijoo e Rajoy, e Rubalcaba, e Cospedal, e Ecce Homo, e Belén Esteban, desaparecerão dos hashtags de tertúlia adolescente. Tal é a quotidiana política española, a violência, este fedor, tal são o poder de Facebook e uma heroica filha que se chama Indignación. Assaltar Gibraltar.