Regressando da Catalunha depois duns dias de lazer compreendo mais uma vez os contrastes constitutivos entre duas nações, aquela e esta, tão diferentes mas unidas numa questionável aliança contra um estado central que, entre outras formas de miragem, foi capaz de produzir até o pretenso antídoto Galeusca. Na Catalunha, não apenas as pequenas lojas fazem rotulagem na língua do país: também as grandes companhias (aéreas, por exemplo) convocam e convidam a cidadania em catalão. Na Catalunha, não apenas jovens com consciência linguística patente utilizam o idioma: grupos de raparigas pré-adolescentes brincam na rua na língua antiga.
Na Catalunha, um meninho duns oito anos, familiar duns amigos, neto de islandeses já cidadãos catalãos, filho de cidadã catalã de origem islandesa e de cidadão catalão de origem guineense espanhol-falante, expressa-se em catalão com fluidez mais evidente do que em castelhano, além de falar islandês e um pouco de inglês. Isto é exemplo duma versão em grande do Modelo Burela feito realidade, pela realidade da legislação, da constância e duma sorte de “normalidade” (nunca esqueçamos as aspas para este vocábulo) que supera o atávico temor ao próprio que exibimos os galegos. Qualquer análise em termos de classe é válida também (a velha história do galego = classe baixa e o catalão = classes médias, e as correspondentes associações simbólicas, ideológicas, psicológicas, que a mente também existe), mas o que desejo salientar é que no dia a dia na Catalunha parece impor-se uma forma de “normalidade” a respeito das línguas que faz a vida, pelo menos, um pouco menos tensa. Em contraste, deveríamos considerar quanta energia levamos perdido nós na Galiza para um projeto tão cabal mas tão atrapalhado de recuperação linguística que –sabemo-lo– no fundo não mudaria, no quadro atual de relações de classe, o papel das línguas e da Língua nas variadas formas de alienação social. Mas, na verdade, talvez tudo tenha sido sempre mais singelo do que imaginávamos: E é que não se tratava nem se trata de emular a Catalunha, a falsa amiga, mas um outro país ao sul, Portugal, onde a expressão “imersão linguística” na “língua própria” nem tem sentido, e portanto onde a “normalidade” sim que tem um outro sentido, e bem diferente.
Celso
O que eu gostei deste texto!
“… quanta energia levamos perdido nós na Galiza para um projeto tão cabal mas tão atrapalhado de recuperação linguística…” E no entanto a Galiza é o berço da nossa língua comum, língua hoje falada por tantos milhões de falantes… o que torna tudo bem mais incompreensível e, no entanto, como dizes: …” talvez tudo tenha sido sempre mais singelo do que imaginávamos: E é que não se tratava nem se trata de emular a Catalunha, a falsa amiga, mas um outro país ao sul, Portugal, onde a expressão “imersão linguística” na “língua própria” nem tem sentido, e portanto onde a “normalidade” sim que tem um outro sentido, e bem diferente.”
Penso que só recentemente, muito recentemente, percebi a dimensão do que quiseste revelar-nos em textos anteriores, da vantagem de um acordo ortográfico. Ainda estava fechada na ideia da diversidade e da especificidade, quando temos esta riqueza única de uma língua universal, que viajou durante séculos desse cantinho poético, a Galiza, até aos cantos mais distantes do globo. Incrível viagem, incrível aventura… E nós aqui perdidos em discussões estéreis pela defesa de especificidades formais…
Ontem um amigo meu, Francisco Castro, médico de profissão, mas sonhador por vocação, mostrou-me um hino que compôs à viola no dia em que adquiriu nacionalidade portuguesa, que agora concilia com a brasileira original. De referir que Castro é nome de antepassados galegos que ele sabe homenagear. Reside e trabalha em Portugal há pouco mais de uma década mas sabe mais da nossa História e aventura linguística comum do que eu e muitos outros que aqui nasceram. Pois bem, o hino, segundo ele me explicou, é dessa pátria sem fronteiras, a de uma língua comum, a de todos os falantes desta língua que se iniciou no galaico-português. O hino é lindíssimo e pede uma letra de vogais mais do que consoantes, a tal síntese do acordo ortográfico. Vogais abertas, um som que se prolonga, como um sulco imaginário de barco no mar. Pede também metáforas e alguns símbolos carregados de significado. Ofereci-me nessa aventura, a de letrista. Tens alguma sugestão? Palavras-chave?
Ana
Ana, obrigado de novo pelos teus comentários. Sim, brigarmos agora por uns acentinhos ou uns “grupos consonânticos cultos”, quando está em jogo uma enorme possibilidade de intercomunicação escrita, dentro DESTA lógica internacional das línguas, não faz muito sentido. Se repararmos, as “renúncias” à “especificidade local” das falas (em Portugal, no Brasil, na Galiza, no Moçambique…) já são enormes. Sem essa renúncia (que não é tal) não haveria língua escrita comum, que é o objetivo. A gente deve aprender que aprender uma norma escrita e adequar-se a ela o mais possível na fala formal para a intercomunicação é uma cousa (muito prática, e mais nada), e falar quotidianamente é outra. Os estudos sobre aquisição da lecto-escritura já nos demonstraram que a nossa forma de escrita não é “ortográfica”, mas logo-ortográfica (aprendem-se os sons, as sílabas, mas também as palavras, que temos na língua, que temos na mente). E os meninhos não são (o contrário!) inúteis ou estúpidos para aprenderem isto. Portanto, adiante com a maior unificação escrita possível!
Quanto a esse hino e a tua letra, eu pouco sei. Mas, como dizes, o português é uma língua de vogais: caíram os /l/ e /n/ latinos entre vogais, os /n/ finais nasalaram as vogais (“um”) ou fizeram uma nasal velar débil (na Galiza), os grupos consonânticos reduzem-se… Por isso o “lisboetês” vai um pouco contra esta economia interna. Língua de vogais, e de ditongos! Muitos ditongos!, frequentes, muito mais frequentes que em espanhol, sobretudo os decrescentes (de vogal média ou aberta para vogal fechada), por exemplo: oi, ou, eu, ei, au, ai, ui… Poderias brincar com isto.
Abraço!
-celso