“Diglossia” e alternância de línguas

Publicado no Faro de Vigo, suplemento de Cultura, 12 de Agosto de 1984, p. 251

Desde que o norte-americano Ferguson [1] introduziu o conceito de «diglossia» na sociolinguística de há vinte e cinco anos até à actualidade, muito se utilizou a palavra —com conhecimento ou sem ele— e bastante mudou o que significava.  Porque o que Ferguson entendia por «diglossia» era, para ser breve, uma situação socio­linguística em que dous dialectos ou registos duma língua (chame­mo‑los variedades), conhecidos e falados por toda a comuni­dade, se empregam sistematicamente sempre segundo o contexto comunica­tivo.

Por seguir com um exemplo de Ferguson, na Grécia actual a variedade baixa «dhimotiki» (ou registo popular) justapõe‑se à variedade alta «katharévusa» (o registo formal); os seus âmbitos de uso são complementares, e é tão inadequado, por exemplo, falar «dhimotiki» na universidade como «katharévusa» a brincar com os amigos.

Segundo uma focagem algo diferente, aqui a ideia geral da «diglossia» é, em poucas palavras, a da dominação duma língua sobre outra, porque cada uma das variedades se associa, no seu uso, com um conjunto de domínios ou aspectos da organização social mais ou menos vinculados ao poder, político, económico ou cultural.  Portanto, o que Ferguson entendia por diglossia não é o que os linguistas aqui entendem por diglossia, nem o que o nacionalismo, os profanos ou eu próprio entendemos por diglossia.  Contudo, isso não importa: as palavras mudam, e isto está bem.  É bom dar‑lhes novos conteúdos a palavras velhas, porque se a palavra muda, de alguma forma muda também a cousa que designa.  Por isso, entre outras razões, houvo que chamar «diglos­sia» ao que se chamava «bilinguismo».

Mas, enquanto a diglossia ia sendo profusamente manejada e mesmo esgrimida polas forças nacionais e progressivas com in­tenções historicamente justificadas, necessárias, no entanto várias cousas aconteciam ao nosso redor.  Entre elas aconteceu por exemplo que, contrariamente à arrepiante tendência supressória das identi­dades minoritárias que sofremos na sociedade urbana moder­na, o poder espanhol resolveu descentralizar o aparelho estatal, com o apoio interno dos sectores dominantes da periferia e o consenso da gente.  Penso que isto é porque por primeira vez na história do país surgiu a necessidade de promover uma burguesia nacional, e daí a vantagem política da direita e o projecto Coalición Galega.  E, naturalmente, neste processo entra também a língua, mas, sobretudo, entram as peculiares Normas ortográficas e morfológicas oficiais, a peculiar Lei de Normalización Lingüística, os peculiares critérios para a promoção académica do professorado de galego e para o uso da língua no sistema educati­vo, etc., etc.

O resultado é que a dinâmica diglossia de agora não é já a diglossia de 1973, nem a diglossia de 1981.  Por pôr uns exemplos que conheço: o poder político em Redondela escreve sempre em galego; o poder cultural em Vigo fala‑o também, e o político as mais das vezes, ainda que o escrevem menos; o poder autonómico fala‑o bastante; polo contrário, o poder económico usa‑o pouquinho: a «Vigo‑mostra» mostra cartazes em espanhol, e os bancos ainda falam muitíssimo no mesmo, etc., etc.

Como vemos, a realidade é mais complexa e contraditória do que parece.  Não são as línguas mas os seus utentes os que têm intenções políticas, mas a estas só se chega através das in­tenções comunicativas em contextos específicos.  Todas as comuni­dades falantes e todos os seus membros somos competentes numa gama mais ou menos ampla de códigos linguísticos (línguas, dialectos, sociolectos, registos, gírias, etc.), de que nos servimos segundo certas características do acto de fala: o contexto (lugar e tempo), os interlocutores, o tema, o grau de formalidade da interacção, etc., etc. [2]

Às vezes, o uso dos códigos define‑se situacionalmente duma maneira sistemática, quer dizer, conforme a normas consensuadas de carácter estrito [3]. Um exemplo disto é o uso de variedades formais (quer do galego, quer do espanhol) para actos públicos políticos ou culturais.  Também, como se vem de provar recentemente (FARO DE VIGO, 5 de Junho de 1984, p.  28), está situacionalmente determinado o uso do espanhol para a comunicação oficial com o exército, porque afortunadamente o Gobierno Militar da Corunha rejeitou um escrito em galego do Concelho de Fene. Penso que este sintoma é bom: que o galego aceda à maioria dos domínios sociais é o alvo, mas que se aceitasse mesmo em instituições humanas intrinsecamente des‑humanas a mim me pareceria bastante perigoso.

Outras vezes, a alternância de códigos deve‑se a intenções comunicativas estilísticas ou pragmáticas, e tem, portanto, atributos metafóricos [4]. Isto acontece a todos os bilingues constantemente.  Reproduzo textualmente o seguinte exemplo:

Conversa na rua entre as senhoras A, B e C, em presença do rapaz Miguel, neto da primeira:

A: A professora donha P. quedou enamorada de Miguel.  Digem «doña P., no se preocupe, que usté tiene muchos hijos».

B: E netos.

C: Home claro!

Qual seria o efeito comunicativo da mensagem de A se ela tivesse citado as suas palavras à mestra em galego e não em espanhol?  Com toda segurança, outro, de menor formalidade, maior intimidade, talvez menor realismo, etc.  Evidentemente, a alternância metafó­rica de códigos cobra funcionalidade na medida em que na escolha de um ou de outro código subjaz um contraste implícito de signifi­ca­dos afectivos e/ou sociolinguísticos.

Mas por vezes há também certos domínios sociais —isto é, grupos de actividades com uma funcionalidade social semelhante aos olhos dos participantes—, ou conjuntos de domínios, onde a escolha do código está regida por normas de uso mais flexíveis, quer dizer, com uma ampla margem de ambiguidade aparente [5].  E isto dá‑se assim mesmo na nossa cambiante realidade.  Para muitos bilin­gues, na interacção circunstancial com o moço de café, com o taxis­ta, com o/a vendedor/a do quiosque ou o/a dependente da loja, e mesmo com os empregados dos correios ou os guardas urbanos, o uso de espanhol ou de galego não está determinando situacionalmen­te.  É, portanto, nestes tipos de situações sociais quase‑ritualizadas, e que não acarretam nem intimidade nem, portanto, sérios riscos comunicativos ou de imagem pessoal, onde mais favoravelmente se pode jogar com as margens de ambigui­dade das normas de interacção verbal.

Por exemplo, na activida­de social que representa o se dirigir brevemente a um empregado de qualquer café da cidade, ao eleger o galego («Ponha-me um café, por favor»), o interlocutor , além do conteúdo literal, provavelmente entenda duma maneira subconscien­te algo como o seguinte: ‘Este cliente, po­dendo com toda probabilidade expressar‑se em espanhol, elegeu porém, através da linguagem, identificar‑se de algum jeito com a mesma comunidade à que ele pensa, com razão ou sem ela, que eu pertenço ou quiser perten­cer’.  Destarte, a diferença fonética —mínima entre «ponha‑me» e «póngame»—, mais outras diferenças nas prosódias do galego e do espanhol, em contextos específicos pode significar muito no nível sociolinguístico.  A partir da nossa escolha de código, a interrelação com o interlocutor pode trocar‑se em algo definitivamente diferente.  Redefinindo a funcionalidade social do galego, redefinimos também as situações sociais em que vivemos, e é assim que em última instância estamos a redefinir a própria história da língua.

Há, pois, dous tipos de domínios onde a validação social da língua depende só da nossa vontade de falantes que politicamente apostamos, duma maneira ou doutra, polo uso do galego: (1) o domínio público formal: conferências, actos culturais, aulas, reuniões políticas ou de comunidades de vizinhos, cartas ao Director, colaborações de todo o tipo no jornal, publicidade comercial, entrevistas na rádio, etc., etc.; e (2) o que podería­mos chamar domínio público circunstancial: breves conversas na rua, com o/a guarda de trânsito, com o/a dependente, com o/a empregado/a público/a, com o/a concidadão/ã de a pé, etc., etc.

Na actualidade, portanto, não semelha haver nenhuma justificação de tipo político, e poucas de tipo pessoal, para quem, dizendo identificar‑se com a comunidade, se expressa publi­camente em espanhol —sobretudo, em situações do domínio público formal— podendo fazê‑lo em galego ainda com um pequeno esforço.  A identificação com o comunitário galego passa hoje inescusavelmente polo uso público da língua.  O projecto é, portanto, o fazermos do galego a língua pública e formal da nova «diglos­sia» que criemos, o código de relação por excelência com o que passemos a canalizar, já involuntariamente, o nosso contacto com o âmbito do social.  E neste longo projecto, não importa tanto que polo momento o espanhol fique para alguns no âmbito do fami­liar ou privado.  Mais adiante, já não sei.  Será questão dumas quantas gerações ou não será, mas o que está em jogo não é apenas um conjunto de fonemas: é parte duma identidade pessoal, só através da qual se chega à colectiva.

Nem a diglossia é já o que era.  Mudando o conteúdo da «diglossia», estamos a mudar a História.  Quando muda uma palavra, de alguma maneira muda também a cousa que designa.  É uma primeira razão para começar já a chamar Galiza à caduca «Galicia» que nos deram.


[1] Charles A. Ferguson (1959), «Diglossia», Word 15, pp. 325-340.

[2] Joshua A. Fishman (1979), Sociología del lenguaje, Madrid: Cátedra, pp. 54-59.  Tradução espanhola de R. Sarmiento e J. C. Moreno.

[3] Jan-Peter Blom e John J. Gumperz (1972), «Social meaning in linguistic structures: Code-Switching in Norway», em John J. Gumperz e Dell Hymes (eds.), The Ethnography of Communication: Directions in Sociolinguistics, Nova Iorque: Holt, pp. 407-432.

[4] Blom e Gumperz (1972).

[5] Fishman (1979), p. 74.

3 Replies to ““Diglossia” e alternância de línguas”

  1. Saudaçoes amigo Celso. Um magnífico texto, aínda vigente hoje em dia.

    E agora uma anécdota de aqueles anos 90:

    Num pub herculino, um rapaz estaba conquistando uma moça. Despois de tres ou quatro cuba-libres a moça dixit:

    ¡Ah! pero hablas en gallego. Entonces, ¿Eres pailán o del Bloque?

    1. Obrigado, Luís. Infelizmente, estórias como a que contas eram e são frequentes nos anos ’80, ’90, ’00, ’10…

  2. Uma aluna, isenta de “galego” por ainda não levar dous anos na CAG, mas obrigada a seguir as aulas de “galego”, negava-se a redigir textos nessa língua: «No me gusta el gallego.»
    O professor, eu, mandou-a fora da aula, ao tempo que lhe dizia: «Quando mude de opinião e esteja disposta a fazer como todos os alunos, volte à aula.»
    Antes de uma semana, voltara e escrevia em galego, como podia, mas escrevia.
    (A moça lê castelhano com dificuldade. Está no nível de 3.º do ESO)

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