Enviado ao diário Atlántico; não publicado
Dizem as fontes mitológicas que cada vez que um fénix renascia das suas próprias cinzas era já um tipo de animal distinto. Desconhecemos as aparências concretas do animal ressuscitado, a sua morfologia e hábitos, o seu voo. Às vezes esta ave reencarnava em algo semelhante a um cisne e talvez antes de morrer de novo cantasse. Em cada transmigração, o único que realmente conservava do passado era a sua natureza de ave e, sobretudo, o nome.
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Assistimos nestes anos, nestes séculos, a um processo duro e intermitente de morte e renascer da língua pública. O galego escrito, pleno e originário dos séculos XII-XV finara para ressurgir, já na centúria passada, como um galego dialectalizado: fragmentário, como o está também hoje e estava nas origens, mas fragmentário assim mesmo na própria consciência dos usuários. No entanto, num ponto dado desses vários séculos de morte, alguns cortaram à noite fendas na terra unificada da Gallaecia para abrirem com navalhas clandestinas um falso rio que chamaram Minho. E este rio de traição afastou em vez de unir, e das suas águas anti-históricas beberam os apátridas de ambas margens: os que criam e crêem beber de águas diferentes e morar em beiras diferentes, ignorando que os rios possuem uma única beira que percorre as suas águas desde a foz polos dous lados.
Logo se soubo que havia algo por detrás do Minho. O galego dialectal do dezanove estava dando passo a uma língua pública evoluída, nutrida e avigorada por formas e modelos de progresso que chegavam do Sul do rio apátrida. Desta escrita foram os melhores expoentes alguns membros do grupo intelectual Nós e coetâneos. De alguma maneira –talvez sem morte ou após duma morte instantânea– o galego público e já prosaico (como merece também sê‑lo qualquer língua formal) do primeiro terço do XX não era já a mesma língua pública de Añón, Pintos ou Rosalia. O que conservava dela era a sua identidade básica, mítica, o seu nome.
A segunda morte do galego foi dolorosa e chamou-se guerra. Tentaram de afogar a língua sem acabá‑la, tentaram de constringi‑la como constringiram o próprio alento aos seus falantes, para que na sua próxima renascença e agonia a fala cantasse só com as palavras do carrasco. Tiveram medo desse animal crescente, distinto, a ponto de se tornar em algo desconhecido demais. Mas não o quiseram matar: fazia-lhes falta para contemplá‑lo com temores como o Outro, para manipulá‑lo com inteligência como o antimodelo necessário. Nesses anos, ainda tentaram hereticamente de esquecer e de fazer esquecer o Mito quando o seu ciclo natural não estava concluído. Mas não se pode acabar com um mito sem desejar ao mesmo tempo matar a ave.
O galego público, oficial, que ressurgiu décadas depois (agora) assemelha‑se perigosamente aos seus captores. É assim o único jeito que estes têm de compreender a língua: não já de decifrá‑la, de entender os seus signos, mas de interpretá‑la socialmente e de lhe atribuir o seu sentido público, o seu tremendo potencial como manejável recurso de domínio. Assim, a antiga outridade do galego começou a se constituir em parcial mesmidade. Assumiu-se a língua como protagonista do mito não para acreditar nele, mas para mantê‑lo precisamente como isso: como mito, já não como essa utopia realizável que é todo o mito na sua origem. Nestes breves cinquenta anos (breves para um processo que leva séculos de noites) o esquecimento em que caiu tanta sabedoria sobre a realidade histórica do galego e sobre o seu passado público imediato –o das plumas de Nós e de outros que reconheceram que o final utópico do ciclo podia estar perto– parece ser quase deliberado: para manipular uma pessoa cumpre manejar a sua fala (sempre) e apropriar‑se dos seus mitos.
Tiveram, então, que procurar outro antimodelo necessário. Hoje as forças que manejam o poder simbólico da fala buscam o Outro não tanto no galego como em certas encarnações do mesmo: pronúncias sesseantes e gheantes, prosódias características e genuínas que alguns chamam “cerradas”, léxico, sons e estruturas comuns a ambas bandas da beira única do Minho…
Quando os antigos não ousavam compreender o universo alcunhavam-no firmamento: o que está firme, o que permanece. Agora que se sabe que os astros não permanecem, que universo e firmamento constituem duas realidades diferentes. Do mesmo jeito, quando não se compreende –porque não se ousa compreender– socialmente uma língua, a sua identidade e a sua história comum, logo se impõe traduzi‑la a realidades acessíveis, convertê‑la interna e publicamente num feito que já não dê pavura, peneirá‑la com chaves interpretativas que já se conhecem e possuem: o Espanhol. Para as minorias que atesouram a maioria do poder, a única maneira de aceitarem a língua como mesma, como parcialmente própria, a única maneira de falarem e escreverem galego público, é fazê-lo desde o seu discurso alheio, desde a sua prática social em chave alheia: uma prática e um discurso alheios não necessariamente por serem estrangeiros, mas, sobretudo, por serem dominadores. Assim, hoje publicamente talvez do que se trate seja de utilizar, também, o galego. Mas do que realmente se trata, e o que realmente se faz, é utilizá‑lo desde discursos ideológicos espanhóis: hoje falar a língua pública consiste em falar espanhol em galego.
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A mitologia não negava que essa ave diferente, que desaparece e volta tantas vezes para retomar só o seu nome, pudesse algum dia recuperar a sua natureza originária, plena, inteira, integrada. Muitos apontam que, de acontecer assim, o ciclo múltiplo da morte e reencarnação da língua própria felizmente cessaria. Para alguns, inclusive, ainda que isto não fosse eternamente assim, sim que o seria por um tempo longamente indefinível: um período suficiente para se esvaecer, por obsoleta, a necessidade social do mito. Um tempo abundante para a gente esquecer, eternamente, o próprio mito, a própria utopia realizada.
Muito bom, não o conhecia
Obrigado, Foz.