Publicado em Nós Diario
Havia muito em jogo. Por isso o mataram. Estava em jogo a recuperação da terra e da dignidade, algo que os amos nunca vão aceitar. Ou uma ou a outra, mas não ambas. Como se pudessem ir separadas. Havia um projeto, um projeto ainda nada revolucionário, de começar a auto-reger-se. Bóveda não era um comunista. Álvarez Limeses (o meu avô) não era um comunista. Nem Casal, nem Díaz Baliño. Eram pessoas que pensavam o país. Eram próximos da terra e das gentes. Por isso os mataram. Eram perigosos. Podiam anunciar o sentido democrático. Podiam mostrar como se regem as cousas, cada um e cada uma no seu. Chamava-se, com outras palavras, auto-determinação. Era o poder de, por uma vez, começar a contestar o roubo, a exploração. Eram jovens e tinham sonhos. Não tinham exércitos por detrás. Não tinham igrejas poderosas. Não tinham juízes. Nem sequer tinham leis: queriam é criá-las. Por isso os mataram.
Oitenta e quatro anos mais tarde as suas mortes não se esquecem. O sangue não se esquece, porque é nosso. Tudo o que convoca a um Nós nunca se esquece. Sempre há um Nós, e, enquanto haja opressão, roubo e assassínio, também haverá um Eles. Não é o ideal, porque um Nós só seria suficiente. Todas e todos Nós seria um todo suficiente. Mas esse Nós há que construi-lo, não avonda enunciá-lo. Um Nós sempre lhes dá medo. A força de todxs Nós mete-lhes medo: poderiam perder o que roubam, poderiam ver-se nus, esqueléticos de consciência, tristes espantalhos. Por isso há que lembrar, sempre: para construir. Ano após ano, até que o Nós seja nosso. Bóveda, Casal, Díaz Baliño, Álvarez Limeses, os irmãos Garcia “da lixívia”. Todas as mortes e todos os exílios. Todo o injusto sangue, toda a dor, toda a memória. A que hoje levantamos na casa comum, na hora do sol baixo, nos dias de agosto como aqueles, na mesma terra que persiste, com a mesma intenção de construir o lar que nos pertence. Foro o roubo, fora o ódio, fora as armas invasoras. Fora os intrusos que nos espremem. Fora as vozes que apagam as nossas. Fora as alimárias, fora as cadeias e os calabouços. Na casa comum há um lume que começa. Vai-nos fazer falta todo o inverno.
Barreiros, 17 de agosto de 2020