11 de setembro de 2018, Diada Nacional de Catalunya
O desenvolvimento do processo político catalão contém uma caraterística central, nos discursos e nas práticas, que aponta para uma dada resolução futura. A caraterística é a sua ampliação, o alargamento progressivo tanto da sua base discursiva quanto, correlativamente, da sua base social, e do seu âmbito de relevância. E a resolução futura pode ser a consecução da República em, polo menos, Catalunya.
A ampliação da base discursiva do soberanismo catalão tem duas dimensões. Por uma parte, ao longo dos anos, o nacionalismo étnico foi dando passo ao soberanismo cívico, isto é, ao alargamento do elemento identitário central para definir o sujeito político legítimo. Uma crescente base do independentismo não é “catalã” em origem, mas sim como cidadania, isto é, como parte duma dada formação social. Não se deve infraestimar este elemento. Frente ao mantra da esquerda espanhola de que o independentismo catalão é “burguês”, a base independentista cresce (também) em torno da experiência popular do trabalho: o que faz “ser catalão” não é ter Torra de presidente, mas a experiência subalterna e portanto a esperança de botar fora do poder forças como as que Torra representa nesse pedaço do Capital (reconheça-se isto como tal ou eufemizado, como é frequente).
A segunda dimensão do alargamento discursivo no procès é a viragem do alvo da independência para o alvo da república. Inevitavelmente, dada a estrutura do Estado Espanhol, a segunda (a república catalã) concorre com a primeira (a independência). Mas o ideologicamente rico deste processo é que o soberanismo catalão oferece (não só às pessoas catalãs) aquilo que o Estado Espanhol nega: o alargamento da democracia na forma duma eleição da chefatura do estado, e tudo quanto “a República” invoca em termos de progresso social, esfera pública, e também ressarcimento e desagravo simbólico pola derrota sofrida no 1936-1939, ainda tão viva. O soberanismo catalão, portanto, representa a vanguarda semelhante à que na “Transición” reclamava “democracia” frente à chamada “reforma”.
Dada a configuração do conflito político, com a resposta reacionária dum aparelho do estado que é espanhol, unionista e monárquico, o confronto ideológico na Catalunha concentra em duas bandas três dicotomias: democracia frente a autoritarismo; o “catalão” (independentismo) frente ao “espanhol” (unionismo), e república frente a monarquia. Crescentemente, não se pode um posicionar num polo em favor de um dos elementos sem atrair magneticamente os outros dous da banda. Na Catalunha não é possível ser “democrata” e simultaneamente monárquico, porque essa monarquia clamou repressão contra os democratas catalães. Não se pode ser “espanhol” sem ser autoritário, porque em praticamente todas as expressões coletivas da “espanholidade” (manifestações e concentrações) se dá violência contra símbolos e pessoas catalãs. E começa a ser impossível ser republicano sem ser independentista, porque o unionismo monárquico está contagiado dessa violência e esse autoritarismo.
Por último, o alargamento da base discursiva e política do processo catalão está a dar-se também no plano territorial. A internacionalização do processo não consiste só na sua judicialização (e espectacularização) na Europa, mas no surgimento de alianças com os diversos soberanismos e esquerdas do estado. O laço amarelo, por exemplo, já não simboliza só a reclamação da libertação dos presos políticos, mas significa antiautoritarismo, antiespanholismo e antifascismo. O laço tem aparecido já, polo menos, na Galiza, em Cádiz ou em Madrid. As esquerdas independentistas galegas e bascas sabem que o processo catalão pode abrir uma fenda importante na estrutura do estado, e acelerar os respetivos processos soberanistas.
O resultado muito possível desta situação é o seguinte: que ao discurso “equidistante” e federalista lhe resultará de cada vez mais difícil manter-se ideológica e eleitoralmente no campo político catalão. Reparemos que este campo já contém em si todas as zonas da torta do campo eleitoral legítimo da democracia formal, e em maioria: direita (PdeCat), socialdemocracia (ERC) e esquerda (CUP). Perante a redução do campo, ao esquerdismo federalista (ignoremos o unionismo espanholista), se não quer perder o comboio, não lhe restará mais possibilidade do que oferecer também “república” factível, e para isto terá que interrogar seriamente a forma de estado, a monarquia. Mas conseguir a maioria hegemónica para uma mudança de regime no conjunto do estado parece difícil. A direita reacionária espanhola só o permitiria como solução extrema, pois é a monarquia que garante que processos como o catalão não se produzam noutros territórios: é a monarquia que garante a fossilização do regime das autonomias. Portanto, é mais factível que antes chegue uma ruptura republicana “unilateral” (todas o são) em Catalunha do que um processo constituinte rizomático em todo o estado.
No passo seguinte, com uma República de Catalunya e um Reino de España, as hipóteses de reencontro mútuo imediato são escassas. Se — como é de prever — em todo o processo o Capital não perderá o seu controlo básico (embora, dependendo da correlação de forças, deva fazer cedências), e se o relacionamento (económico) resultar mais difícil em termos de benefícios entre o reino e uma nova república virada de costas à “Meseta” e orientada para “Europa” (esse mítico objeto de desejo tão catalão de bourdieuana distinction), a metonímia chamada “España” talvez não tivesse tanto problema em tornar-se, por sua vez, em república. Talvez também fosse, de facto, a sua única maneira de se reconciliar com uma Europa que periodicamente a questiona como digna sócia de classe.
Em resumo: a República pode vencer na Catalunha. Talvez também, depois, vença na España que reste, e talvez nasçam republiquinhas. Mas, com todo o interessante potencial que isto representa, isto não significa, em absoluto, que vaia perder o Capital: essa é uma outra luta simultânea, mais complexa, mais dura, mais violenta e mais longa.