Na memória de Berta
Com agradecimento para todas, para todos
Há uns dias morreu a minha irmã Bertinha, na sua casa de Coruxo, ao lado do mar, do rio, perto dos campos, frente às ilhas, frente à região do sol-pôr. Chamou-me um amigo e perguntou-me se podia fazer algo por mim. “Só uma cousa”, pedi: “Por favor, dá um pouco para trás à manivela do tempo”. “Não a tenho…”, desculpou-se, triste. Era certo, porque então lembrei onde ela estava. Se nos debruçamos na varanda da casa de Coruxo olhando para o mar nota-se às vezes debaixo da duna o lombo da enorme roda de madeira do tempo, a resistente roda de moínho que em lugar de mover lâminas de água faz deslocar em fitas de imagens o estado do universo. Ao seu lado deve estar custodiada também por baixo das areias a manivela que a ativa.
No dia seguinte da partida de Berta éramos centenas de pessoas reunidas a despedi-la, com palavras coletivas de carinho e formosura indescritíveis. Eu sei que cada uma destas pessoas, e muitas mais que não puderam acudir, estava a perguntar-se e a perguntar-nos o que poderia fazer por Berta, por elas mesmas para paliar a dor, por nós. Permitide-me por isso o inevitável atrevimento de convocar-vos de novo, por favor.
Num vindeiro dia de solstício, quando o sol contemple exato no zénite o triângulo das ilhas, das costas e do rio sobre a casa de Coruxo, reunamo-nos também nessa praia em multidão para recuperar com cuidado o imponente engenho do tempo protegido por debaixo das areias, extraiamo-lo, limpemos a roda com a simples água dos canais entre rochas vivas de moluscos, endireitemo-lo no seu suporte na planura da baixa-mar humedecida, ajustemos no eixo a pesada manivela, e, num concerto de vagas de braços, cantares e vontades como crescidos campos cereais, viremos com lenteza para trás a manivela do tempo, ritmicamente façamos retroceder a roda pouco a pouco, acelerá-la gradualmente com o seu zunido de colossal insecto bondadoso, até que a atmosfera em torno comece a mudar, e nasça o anúncio duma brisa favorável, e a abóbada dos céus comece a circular em direção contrária ao longo dos minutos, e das horas, e se sucedam noites e dias, e noites, e semanas inversas, e por fim, se continuarmos com a inimitável confiança humana na força do desejo, poderemos adivinhar por trás do vidro do seu quarto no piso superior da casa de Coruxo a silhueta de Berta olhando para fora, a contemplar o sol-pôr, qualquer um dos milhares de sol-pores que viveu, fumando com prazer, pintando para nós no interior a eternidade de aguarela das ilhas gémeas do horizonte como portas à nossa casa coletiva, antiga, ferida mas resistente, que admira com orgulho o nosso titânico esforço para poder voltar a saudar uma pessoa amada ainda apenas um instante.
Depois, com sossego, com candura, devolvamos cuidadosamente a roda com a manivela do tempo a algum outro lugar protegido da terra, porque será sempre necessária.
Celso Alvarez Cáccamo
14 de maio de 2018
Que fermosisimo texto! Emocionoume despois de un día cheo de recordos e nostalxias. Forte aperta
Obrigado, Juan, um abraço.
Reunamo-nos em multidão nessa praia num vindeiro dia de solstício. Por Bertinha!
Fermosísimo texto, Celso!
Obrigado, Rosalía, um abraço.
Berta, la manivela que gira el tiempo y que nos permite tenerla presente todavía en nuestro imaginario. Maravillosa ilusión Celso. Espero estar presente en ese solisticio, moviendo la rueda del tiempo y desgajando uno por uno los entrañables momentos vividos con mi querida compañera del alma, Berta.
Moltes gràcies, Eugenia, una abraçada.
Lindo, Celso. Obrigada por escribires isto.
Obrigado, Luzia, muitos bikos e abraços.