A avidez do capital financeiro está prestes a destruir o capitalismo mesmo: a acumulação de valor via a produção está a chegar a uns dos seus “limites” por sobreexploração dos recursos naturais, por mecanização e por devaluação da mão de obra: se o Trabalho não vale, também não acrescenta valor ao produto! As baratíssimas e ubíquas mercadorias plásticas são metonímias físicas que contêm a degradação do valor do trabalho que levou produzi-las. Por sua parte, a mecanização, por primeira vez na história do Capital, já não é capaz de recolocar a força de trabalho que expulsa dum dado setor: a saturação da tecnificação provoca que muito mais capital, em intensa concorrência na carreira tecnológica, vaia para a manutenção das máquinas que não produzem valor, do que para o trabalho em si. Mas a morte do Trabalho é a morte do Capital, e este sabe-o muito bem na sua própria carne.
Em segundo lugar, perante os processos de decrescimento periódico e sistémico da ratio de lucro (depois duma inovação, o lucro originado pola sua introdução decresce, até que um novo “regime de acumulação” de valor se instala), o Capital tem recorrido mais e mais à recapitalização via financiarização especulativa: créditos em lugar de trabalho, já devaluado. Embora a financiarização possa resolver momentariamente uma escasseza de capitalização (lembremos que sem crescimento constante o Capital morre), a longo prazo o enorme montante financeiro, que não responde a nenhum valor produtivo real, deve colapsar ou desaparecer, queimar-se, ou reabsorver-se dalguma maneira: por algo é chamado de “capital fictício”, e o Capital sabe-o muito bem também. Por isso, embora a especulação financeira serva temporariamente para os filhos e filhas da burguesia comprarem iates e luxuosas viagens a paraísos tropicais, as castas dirigentes sabem que isso não garante o futuro nem sequer dos filhos dos filhos. E as castas dirigentes têm, como todas as famílias, um poderoso afã de auto-perpetuar-se. Impõe-se uma solução ao problema.
A solução, na fase atual de “crise” sistemicamente construída, pode ser um retorno ao capitalismo produtivo a mais pequena escala, “nacional”, ao resgardo dos avutres da especulação mundial que fazem perigar até os privilégios da burguesia produtiva e mercantil. Um novo regime de acumulação do valor pode consistir no retorno à (mais) pequena produção local e nacional, onde o Trabalho seja minimamente protegido para perpetuar a sua exploração e consequentemente a taxa de lucro seja reduzida. Não está escrito que o espiral de financiarização especulativa seja infinito, nem que por isso seja a única nem melhor maneira de revalorizar o capital (ao contrário!). Periodicamente, este capital fictício queima-se, na forma de “dívida” cancelada, por exemplo. É certo que a dívida é o único produto nacionalizado em todo o capitalismo ocidental: as grandes empresas do crédito (p. ex. alemãs) forçam os estados mais débeis (p. ex. Grécia, Espanha) a produzirem dívida na forma de obrigações para colocarem o excedente. Mas, lembremos, a dívida é um produto etéreo, consumido só com os fins de suprir a falta de valor originado no trabalho produtivo, e como tal é algo altamente volátil: literalmente fictício. Não serve como produto principal para o capitalismo tal como o conhecemos (para algum modo económico por acaso mais pavoroso, talvez, mas não seria capitalismo).
Os movimentos de (re)nacionalização da vida política e económica (Brexit, Escócia, Catalunha) podem ter uma base funcional neste sentido. Não é impensável que a proverbial “burguesia catalã”, ou mesmo a “alta burguesia” desse país, estime que na altura tem mais possibilidades de supervivência e até de crescimento numa ordem de produção local, para mercados mais limitados, e com menos ânsia de acumulação de excedente supérfluo que depois não há onde colocar uma vez satisfeitas as necessidades e privilégios de classe (porque, se não se coloca, todo o valor que subjazia nele foi morto e vazio!). Não há nada que impida que esta lógica se consolide também na Escócia, ou na cindida Grã Bretanha, ou até nuns EUA que aproveitem o colapso iminente — 2020 — da economia chinesa, que baterá em nós duramente. Nem sempre a máxima exploração possível é o melhor para o próprio capitalismo: pode representar o seu suicídio.
Tampouco é impensável que as altas burguesias espanholas compreendam toda esta lógica. O estado (a sua forma) é apenas um instrumento contingente para as elites do Capital preservarem os seus interesses. Os estados pequenos valem-lhes também. Não está préescrito que as elites não chegassem a aceitar uma reconfiguração dos limites administrativos dos seus domínios económicos no atual Estado Espanhol, sobretudo quando os jogos de alianças económicas modernas são muito ricos e maleáveis. Quanto ao Trabalho, poderia continuar a circular nesses territórios, segundo necessidades. Por outras palavras: nenhuma configuração do quebracabeças dos atuais ou possíveis estados peninsulares é inerentemente adversário do Capital.
O desafio politicamente real, portanto, consiste em canalizarmos o possível e desejável processo constituinte (catalão e outros) numa direção menos desumanizadora da que o ultraliberalismo em declínio procuraria. Por que possível e desejável processo? Porque é só a meio de — e no decurso de — este tipo de mudança estrutural de escala mais pequena que se pode interrogar a lógica da escravidão e procurar impor popularmente limites nas ordens económica e social que daí surgissem. Todos os processos decoloniais (e nem o catalão nem o galego deixam de sê-lo, de maneiras diferentes) sob ordens capitalistas contêm a luta geral Capital/Trabalho (além da inerente e ubíqua luta contra o patriarcado) pola hegemonia no seu controlo. Perdermos esta oportunidade de mudança no caminho da transformação seria politicamente suicida. Até setores de movimentos populares que surgiram mesmo doutras lógicas, p. ex. libertárias, compreendem isto. Nenhuma independência formal é o fim do caminho: apenas uma oportunidade ou ilusão mais que historicamente há que cumprir.
Por dignidade, os processos de independência dos povos e coletivos populares devem triunfar. Seria trágico se no caminho houver (mais) sangue, mas não é inimaginável, porque a hegemonia social não se aplica como uma balsâmica fórmula mágica sob um corpo inerte sem interesses em luta. Compreender isto, sem por isso intoxicar-nos na retórica do martirologio e a heroicidade, deveria inocular-nos um pouco contra a tristeza da violência e do sangue. O que o Estado cria para matar, pode acabar matando. No caminho, a obriga popular de transformação é também sobreviver contra essa vesânia, combatê-la, e erradicá-la.