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Foi tão brutal o atentado que muitos corpos nunca apareceram. As explosões sucederam-se durante muito tempo. Participaram no complô cidadãos e cidadãs normais, pessoas das que se vêem na rua cada dia, infiltradas na cidade. A imensa maioria, de facto, tinham boletins de identidade do país, não eram estrangeiras. Organizavam-se em células pequenas, amiúde amparadas nos templos que durante anos alimentaram o ódio e uma visão messiânica da fé, da raça, da identidade, das missões de conquista e reconquista.
Com efeito, toda a história de séculos dessa cultura religiosa consistira na expansão imperial e homicida, no extermínio do diferente. Não admira que nalguma altura do presente, na modernidade, uns poucos decidiram lançar um fanático ataque baseado no mesmo ideário de que, no fundo, muitos outros seriam cúmplices. Quando na História estoura uma bomba poderosa a energia é tal que o sangue se pulveriza e já nunca mais se encontra. Nunca mais se vê nos muros, nos caminhos de ferro, nas barrancas. A força do terror é tal que a carne não aparece. E os mortos convertem-se só em fragmentos de memória. Familiares e descendentes quiseram enterrá-los, com essa necessidade primigénia dos humanos, mas não sabem o que poderiam enterrar, nem onde. Não têm nada que enterrar. Os estados só lhes concedem estilhaços de passado. Permitem que os seus nomes sejam repetidos, na intimidade dos aniversários, nos papéis que ninguém lê, mas não que a sua humanidade seja reconstruída.
Esse brutal atentado terrorista aconteceu há anos na Espanha, e ainda continua. Teve tanto sucesso para impor o império dos deuses (dos deuses religiosos, dos deuses ateus, dos deuses militares, de todos os monstros superiores à firmeza incontestável dum abraço) que foi imitado repetidamente, em numerosas terras, da Polónia até ao Vietname, de Jeju a Al-Andalus, do Iraque a Chile ou Sarajevo. E todas essas loucuras foram eficazes cópias do princípio do terror, cujo objetivo não é apenas matar mas fazer desaparecer os corpos sacrificados no mar, nas fotografias amarelas, nos obituários dum pequeno jornal local, nas derradeiras cartas à família no alvor da cela, nas silenciadas beiras dos caminhos onde repousam ainda hoje, ainda hoje, milhares de Vítimas do Terrorismo, cinicamente ocultas polos mesmos mensageiros do ódio que proclamam condená-lo.