A decisão do Tribunal Superior de Xustiza de Galicia sobre os vários recursos (da Mesa pola Normalización Lingüística, da CIG e doutras entidades) contra o Decreto de Pluringüismo do governo de Feijoo, e as interpretações públicas sobre esta sentença, são muito reveladoras do papel do discurso científico sobre a língua na Galiza, e das constrições que operam sobre a sua aplicabilidade à política. Tanto o Decreto quanto a sentença situam o trabalho sociolinguístico como uma excrescência subordinada à política do partido no governo, e fazem duvidar, verdadeiramente, de que no quadro jurídico desta Galiza se possa articular jamais a racionalidade científica com a ação política.
A decisão do TSXG afeta em dous pontos as relações entre campos e agentes sociais envolvidos no sistema educativo. Trata-se da estimação do recurso contra o papel dos pais e mães das crianças em decidirem, após um inquérito, sobre a língua veicular na sala de aula, e contra a “liberdade” de uso de idioma da estudante em qualquer aula, à margem da língua estabelecida nela para ministrar os conteúdos. O Decreto, com efeito, colocava um segmento da população falante (os pais e mães) como “expertos” nos métodos pedagógicos, ao lhes dar a prerrogativa de decidir sobre assuntos próprios dos educadores e educadoras profissionais. Por sua parte, a “liberdade de língua” outorgada ao estudantado em qualquer aula também o desenhava como adversário frente às decisões do corpo educativo, pois legitimava qualquer desafio simbólico à língua estabelecida para essa matéria. Sem dúvida, qualquer estudante é “livre” de falar e escrever como quiser; mas qualquer educadora, no exercício profissional, está obrigada a avaliar essa conduta linguística em termos dos alvos didáticos e do cumprimento ou incumprimento dos procedimentos de “capacitação” que caraterizam a agenda teórica do ensino democrático. O que seria singelo de compreender se se aplicasse, por exemplo, a um outro âmbito dos serviços públicos como a saúde (pacientes “decidindo” sobre tratamentos médicos; ou exercendo a “liberdade” de não deixar-se tomar a temperatura para uma diagnose), quis adquirir, no discurso público, um tom distorcido sobre “direitos” e “liberdades” linguísticas individuais e coletivas. Isto serviu e serve muito bem ao projeto dominante de irracionalizar a política — desarticulá-la do campo da ciência — para semear a sujeição e o desconcerto, uma “doutrina de choque” ideológico que está a obter claros frutos no ocidente ultraliberal atual. Em favor desta tática do absurdo utópico — a implicação duma cidadania, por definição subjugada no capitalismo, na gestão do seu próprio corpo e mente — joga a ficção de “empoderamento” que a noção de “liberdade” invoca sempre, ignorando que essa pretensa autogestão da língua nas aulas só faria sentido e seria real num quadro soberano de autogestão do material e do económico.
Mas a sentença, além da revogação destas duas questões, deixa intacto — como bem afirma Paulo Gamalho em “Problemas da sentença do TSXG e do decreto do galego”, Praza Pública, 30 de novembro de 2012 — o núcleo do Decreto: que as autoridades educativas (o governo) podem decidir, sem qualquer justificação científica, o grau de presença do galego no ensino público para cumprir a Lei de Normalización Lingüística: por exemplo, desde a prática totalidade até só 3 horas por semana. As autoridades (educativas) derivam assim a sua “auctoritas” do poder (político), não do capital específico do campo que organizam, isto é, a pedagogia das línguas. A política linguística ignora o amplo trabalho provadamente convincente sobre a necessidade de, polo menos, a compensação para a língua dominada para o alvo da chamada “manutenção” desta (e não de chamada “transição” para a dominante). Como no proposto “Modelo Wert” de presença das línguas próprias e impróprias nas comunidades autónomas (33/33/33 para a língua autonómica, a “nacional” española e a “estrangeira”), a autoridade educativa demite da ciência para se sujeitar a uma irreal ideologia do equilíbrio social (a versão prototípica da “harmonia”), com as consequências que se exporão no final.
O carácter irracional deste tratamento da dominação sociolinguística na Galiza é comparável a uma instrução que decretasse que, para dous carros de desigual potência e situados a desiguais distâncias dum único ponto de encontro chegarem simultaneamente a ele (o correlato do alvo das competências linguísticas na LNL), ambos devem ir à mesma velocidade (o Decreto de Plurilingüismo). Como uma elementar observação dita que com esse método a consecução do alvo da simultaneidade é impossível, a única interpretação cabal é que tanto o Decreto quanto as decisões judiciais sobre ele são ações deliberadas para um objetivo diferente ao declarado: isto é, que, desde as instituições, se pretende com efeito uma cousa (a dominação do galego, até ao ponto que for necessário) proclamando o contrário (o equilíbrio para “normalizá-lo”).
Esta aparente contradição não é tal, porque não entra no campo da ciência, mas da ideologia política. De facto, em política afirmar uma cousa para conseguir o contrário é um poderoso dispositivo de sujeição social que, na verdade, satisfaz a própria população submetida, pois o seu contentamento com o fulgor das palavras lhe evita refletir sobre a realidade e problematizá-la. É um malabarista mecanismo que contrapõe formações discursivas (a Lei e a Ciência) para, em última instância, validar o próprio jogo político e, nomeadamente, a eficácia da negação da racionalidade (e, ano após ano, os resultados eleitorais confirmam esta eficácia). Por exemplo, durante o governo bipartido, quando teria sido possível e racional promover o discurso e a prática da imersão linguística em galego no ensino (que agora se reclama) como melhor modelo de intervenção (isto é: que pare quase totalmente o carro dominante e que acelere o dominado até chegar à altura do primeiro), um governo com presença do nacionalismo galego reincidiu no jogo das cifras e das velocidades variáveis (“polo menos” um 50% de matérias para o galego, mas não imersão). Um resultado (ou um deliberado objetivo) é que as elites associadas não sofreram a perda de poder e capital simbólico e doutros tipos que teria derivado da sua denúncia da ilegitimidade do jogo. Se a questão da língua teve qualquer influência na perda do poder do pacto bipartido, seria por o governo de então jogar esse jogo, não por querer denunciá-lo.
Mas a negação da racionalidade não começa agora, com o Decreto de Plurilingüismo, nem com a sentença do TSXG que confirma o evidente: que também na língua manda a política partidária. A jogada começou com a apropriação do saber sociolinguístico que se baralhou na Galiza desde a elaboração da LNL de que emerge tudo isto. Se não se compreender isto agora, não se compreenderá nunca: a Lei de Normalización Lingüística de 1983 é o enquadramento geral para a legitimação ativa do extermínio do galego. Foi nessa altura que os setores possuidores de um saber ainda não capitalizado sobre a língua o aplicaram ao campo jurídico, quando, paralelamente, se estava a constituir o campo da língua (do “Galego”) nas aulas, nas publicações, nas políticas culturais, na ideologia política em geral. Investindo esse saber prévio já como capital cultural inicial necessário na nova maquinaria, setores de elite galeguista tomaram a posição dominante que durante décadas lhes daria rédito, alicerçada na negação sistemática da radical oposição (estrutural, histórica, sociocomunicativa e simbólica) entre a língua portuguesa da Galiza e o español. E, negada esta oposição (isto é, afirmada a compatibilidade entre galego e español) só ficava manter ou acrescentar, polos factos e polas leis, a subsidiariedade do primeiro. Com as cartas com que jogaram, não pôde e não pode ser doutra maneira. Será suficiente reproduzir o Art. 12.2 da LNL para compreender em que consistiu sempre a “normalización”: “A Xunta de Galicia regulamentará a normalización do uso das linguas oficiais no ensino, de acordo coas disposicións da presente Lei”. Em nenhum lugar da LNL se define que “normalización” seja sinónimo da noção sociolinguística técnica “reversão da mudança linguística” (reversing language shift), mas, polo contrário, “normalización” é tão perfeitamente compatível com a “gestão do plurilinguismo” que até a sentença do TSXG não vê qualquer problema em que as equipas dos centros se chamem agora de “Dinamización” e não de “Normalización”.
Que a “normalización” foi sempre uma operação bilingue — nas mãos das “elites bilingues” de que escreveu há já vinte anos Benedict Anderson em Imagined Communities em relação aos processos de construção nacional — é argumento destacado em numerosos textos, próprios e doutras pessoas, principalmente do reintegracionismo. Para a ideologia bilinguista da que surge a LNL e todos os decretos posteriores sobre a língua no ensino, o que tem uma base certa na estrutura da fala (a sua “castelhanização”) tornou-se no fundamento simbólico e ideológico do controlo social da língua. No seu livro Guerra de Grafias, Conflito de Elites, Mário Herrero indica uma faceta desta dinâmica entre setores de elite: que nunca se permitiu o acesso ao setor monolinguista español no campo da “normalización”. De maneira interessante, o correlato especular (que acrescento) desta exclusão — até agora — do españolismo militante na “normalización” foi, precisamente, a exclusão do acesso ao domínio da língua aos setores monolinguistas, hegemonistas e soberanistas galegos, isto é, por definição, galego-portugueses, para os quais o galego como português não é uma construção por confluência e conivência com o español, mas um produto autónomo, histórica e politicamente adversário deste. Tanto é assim, que mesmo para o nacionalismo galego o “português” funcionou como rendível adversário, e só agora, quando se dilui a miragem dos capitais de vários tipos obtidos durante décadas de subsídios de vários tipos, é que regressam os posicionamentos e as palavras abertas sobre a importância do “âmbito lusófono” ou da “galegofonia”.
Após os combates internos nos campos intelectual, literário, político e educativo (intimamente superpostos na Galiza) pola definição dos limites da “normalización”, num crescente cenário de liberalização da língua, cada vez mais desprovida de apoios oficiais, o horizonte que se projeta é uma acentuação do darwinismo sociolinguístico entre, polo menos, o español e o galego (isto é, o português concebido como español), com a miragem desse desejo geral do inglês como língua capacitadora. Se repararmos, a liberalização da língua espelha com congruência o funcionamento classificador da “igualdade de oportunidades” que carateriza o sistema educativo ocidental: quando diferentes estudantes com os mesmos recursos educativos (“igualdade de oportunidades” teoricamente superante das desigualdades de classe) obtêm desiguais resultados, a explicação dominante da desigualdade de resultados é uma inerente desigualdade de capacidades: cada estudante obtém “o que merece”, e por algo será. Da mesma maneira, para esta primária visão do mundo, o resultado desigual de uma política de “equilíbrio” entre galego e español será consequência natural duma desigualdade de capacidades respetivas, não de qualquer dominação de qualquer tipo.
Neste sentido, uma segunda e importante consequência do jogo político-linguístico imposto (e com uma clara perspetiva de vitória) é a construção duma nova realidade sociolinguística, e da consolidação popular da ideologia linguística correlativa, um de cujos postulados pode ser enunciado como: “A Galiza é um país onde se estudam basicamente por igual a língua própria e a do Estado; e se as autoridades educativas ditam que se devem estudar nessas proporções, por algo será”, esse habitual “por algo será” tão produtivo para a docilidade social: será, por sinal, porque galego e español “são iguais”, e não há qualquer diferença a compensar entre eles. De novo, o razoamento é congruente com outras manifestações duma acomodatícia ideologia da igualdade democrática promovida para desativar o combate social: conforme a ela, mulheres e varões têm igualdade porque “são iguais” perante a lei; sindicatos e patronais são entidades de “igual” natureza porque ambos têm os mesmos direitos constitucionais de se organizarem e de defenderem os “seus” interesses; ou uma pessoa é “igualmente” galega e española porque Galicia é España e España é Galicia, etc. Agora, dentro das constrições do jogo discursivo dominado pola política, cada nova luta sociolinguística deverá partir dessa base acientífica duma política linguística que, pondo o carro diante dos bois, converte a intervenção ideológica sobre a língua (a produção da “igualdade” ou “conxunción de linguas” no ensino, como diz o Decreto) na base da descrição da própria realidade sobre a qual intervém. O mecanismo inteiro do poder consiste, portanto, numa dupla deslegitimação categórica: por uma parte, da sociolinguística como saber técnico que, revelando a desigualdade e as suas bases sociais e materiais, deve dar corpo às ações políticas (públicas, coletivas) para a promoção da língua; e, por outra, da ideologia política nacionalista que teve e tem como centro a articulação entre língua e identidade nacional (não a “identidade cultural” do Decreto), pois teria “fracassado” socialmente em mostrar e convencer sobre essa articulação linguístico-nacional. E, a propósito, não é difícil identificar, neste projeto de “desnacionalização” do conflito sociolinguístico, ressonâncias dum certo setor galeguista político e cultural-intelectual cindido do bloco nacionalista até há pouco majoritário.
Em definitivo, a legislação atual sobre a presença das línguas no ensino na Galiza, e as sentenças superiores que a referendam, carecem, por desenho deliberado, da fundamentação sociolinguística necessária para alcançar o “equilíbrio” que proclamam querer alcançar. Por algo será: será porque querem alcançar o contrário, e pronto. Na sua referência à LNL como norma orientadora, consagram o seu sem-sentido inicial, a irracionalidade como método. A política linguística atual de redução do galego na escola (por outra parte, desnecessária para os seus alvos, pois tampouco o modelo anterior garantia a continuidade do idioma) consiste numa simples vendetta baseada na tecnificação da língua (continuadora do Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega, para o qual “normalizar” socialmente uma língua significa “garantir a posibilidade de vivir en galego a quen así o desexe”), e pode ter um alcance insuspeito no desaparecimento definitivo do idioma da vida social do país.