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Despersonalizar é provavelmente a melhor disposição para compreendermos um problema tão complexo como a atual crise da língua na Galiza. A troca de textos e mensagens recentes nas publicações periódicas do país e na Internet a respeito dum recente texto de opinião do IGEA (Instituto Galego de Estudos Europeos e Autonómicos) sobre o futuro do idioma insiste amiúde em questões muito marginais, incluindo um questionamento recíproco, multilateral, do saber e das capacidades de análise dos participantes. Contrariamente a esta atitude, vou assumir que qualquer pessoa que se debruça sobre uma questão social mas também técnica e perde parte do seu valioso tempo em ler textos longos (ou longuíssimos, como este) possui suficiente conhecimento e raciocínio para não deixar-se enguedelhar no trivial questionamento do conhecimento e do raciocínio doutrem.
Três são as dimensões que eu destacaria duma polémica — antes que debate de fundo — que corre o risco de produzir vazia inflação discursiva. Mas, antes, um posicionamento: O meu objetivo não é contribuir para debater polo miúdo os argumentos de fundo do documento do IGEA, pois na minha opinião não inaugura qualquer discurso novo, e apenas introduz uma expressão que pretende central (“bilinguismo restitutivo”), traduzível de muitas maneiras a outras expressões. O meu objetivo é, precisamente, contribuir para que a expressão não se centralize nem no debate público nem no ativismo sobre a língua, polo seu potencial negativo para o futuro da língua, que não começa nesse texto. E para isto, evidentemente, procurarei razoar desde o meu limitado conhecimento e desde a minha posição ideológica. Os três aspetos que quisera comentar são: 1. A “despolitização” e “desnacionalização” da questão da língua. 2. A dinâmica “monolinguismo / bilinguismo / hegemonia social do galego”. 3. A articulação entre propostas de intervenção linguística e usos reais. Para isto, remito-me em ocasiões a documentos, manifestos e debates anteriores. Mas, confiando no bom funciomento do Google, escuso colar aqui por enquanto tantas referências a tantos textos. E, por mor da despersonalização dum claro sarilho de textos (não por mor da invisibilização de ninguém, nocivo protocolo habitual neste mundo), prefiro não citar qualquer pessoa, nem para bem, nem para regular, nem para mal.
1. A “despolitização” e a “desnacionalização” da língua.
A opinião do IGEA encaixa com o motivo duplo da “despolitização” e “desnacionalização” do problema da evidente crise da língua, da sua perda acelerada, mesmo nas interpretações mais positivas dos dados quantitativos. O manifesto “Galego Patrimonio da Humanidade”, e comentários e debates posteriores sobre ele, pretendem que a língua seja desvinculada ideologicamente da problemática nacional, como se a simples declaração desta desvinculação pudesse ter o efeito sociológico paralelo, isto é que o processo real de perda do galego pudesse se desvincular de (a) a inegável sujeição da vontade coletiva do país ao quadro político e jurídico do Reino, questionado e contestado socialmente por insatisfatório; e de (b) o papel das línguas nos processos de construção nacional e nos processos de dominação de classe. Se por “desnacionalizar” se quer dizer separar o problema da língua das políticas e ideologias dos partidos declaradamente nacionalistas e independentistas (ou de setores destes), as questões a resolver seriam muitas para que, com efeito, “desnacionalizar” pudesse ser mais efetivo do que nacionalizar para o objetivo irrenunciável da promoção e expansão do galego. Por exemplo, haveria que justificar por que as propostas ideológicas do nacionalismo não servem para reclamar a centralidade do galego na construção nacional, enquanto se deixa incólume o nacionalismo partidista espanhol, cuja língua como emblema e prática está inextricavelmente enraizada com tal projeto, precisamente porque a língua espanhola está discursivamente “desnacionalizada” (isto é, assumida como elemento “banal” da vida diária, no sentido de Michael Billig). Haveria que procurar então uma nova articulação entre o papel histórico do galego como referente e veículo de identificação coletiva (e de classe) e o imaginário no qual este papel pudesse adquirir sentido.
A minha crítica à “despolitização” do problema da língua corre polos mesmos vieiros. Por uma parte, a “despolitização” é compatível com a mitologia do “consenso” que levou a uma legislação linguística (“Lei de Normalización Lingüística”, “Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega”) cuja filosofia questiono por ela própria (sobretudo a LNL) ter sentado as bases para a sua apropriação polo projeto regionalista espanhol. A proposta de “despolitização” apresenta, além, uma notável contradição paralela à anterior: a de afastar a questão da língua dos interesses dos partidos que, na partitocracia, se supõe que representam interesses sociais objetivamente confrontados. Se a língua é também um objeto social sujeito a apropriação, manipulação, circulação e semiotização social, ignoro qualquer razão pola qual deva estar, para o objetivo comum da sua promoção como recurso coletivo, desvinculado (de novo) das posições partidárias que dizem representar fragmentos desse coletivo. Na realidade, sabemos que o “consenso” pretensamente alcançado noutras ocasiões (LNL, PXNLG) foi fruto das dinâmicas entre maiorias e minorias parlamentares, e, como tal, foi tão frágil e tão irreal como a oscilação dum escano e duns milhares de votos. A atual política linguística de aplanadora contra o galego só se pode compreender como resultado duma interpretação ideologicamente interessada dessas bases de “normalización” aparentemente “consensuadas”, mas nunca (nem durante o governo do bipartido) articuladas solidamente de maneira que pudessem criar o que se chama “enraizamento” das práticas galego-falantes (ou escreventes) que constituem o material social real da “normalización”.
Finalmente, o paradoxo é que a polémica gerada em torno do documento de opinião do IGEA, longe de “desnacionalizar” e “despolitizar” a questão da língua, simplesmente a re-situa em termos de confrontos internos partidários, nomeadamento no seio do BNG. Qualquer pessoa que seguir as trocas na Internet poderá comprovar a confusão frequente entre críticas ou defesas de posições sociolinguístico-planificadoras teóricas, posições de organismos e entidades (nomeadamente, IGEA e “Mesa pola Normalización Lingüística”, sempre deixando de lado, singularmente, as posições reintegracionistas, como é princípio constante do mutilado “debate” público na Galiza), e posições de partidos ou setores do BNG (UPG, Mais Galiza). Em resumo, a polémica foca-se na repolitização partidária da língua, e na redefinição da sua articulação com diversas posições do nacionalismo. Este paradoxo (lógico e coerente com a história do “debate” neste país) pode ter consequências incalculáveis, em termos de ruptura do contínuo galeguista (incluo nacionalismo e soberanismo) e, portanto, em termos objetivos de fortalecimento do projeto regionalizador espanhol para a Galiza.
2. “Monolinguismo”, “bilinguismo” e “hegemonia social” da língua.
Como apontei, a polémica não inaugura qualquer discurso novo sobre (a) a descrição mais acaída para a situação sociolinguística galega, nem (b) a proposta de ação mais acaída para procurar reverter o inegável declínio da vitalidade social do idioma. A novidade é terminológica na forma duma expressão potencialmente ambígua, a de “bilinguismo restitutivo”, que desloca o foco da intervenção galeguizadora conjunta sobre a velha (e legítima) questão do necessário surgimento de “neofalantes”. Todos sabemos que, por uma parte, do ponto de vista da sociolinguística descritiva, “bilinguismo social” é uma etiqueta neutral perfeitamente aplicável a muitas situações: desde a de clara minorização dum idioma, até à de teórico equilíbrio social nos usos, estatutos e prestígios respetivos de duas línguas. Mas, precisamente pola sua generalidade, sabemos que é inadequada para a intervenção positiva sobre a língua. Separar ambas dimensões (descrição e intervenção) é crucial se o que se quer é, precisamente, intervir positivamente. A expressão faz ênfase nas condutas linguísticas espanhol-dominantes, que deveriam ora “restituir” um uso do galego perdido familiarmente há gerações, ora (na verdade) instituir um uso novo. Portanto, o âmbito de aplicação desta proposta segmenta de maneira inadequada e irreal, como algum artigo tem apontado, os setores “galego-falantes” e os “espanhol-falantes”, e é, portanto, apetitoso alimento para os discursos espanholistas negacionistas, que só estão a aguardar uns cinco anos a que o jogo das “minorias” e “maiorias” falantes da Galiza arrojem uma maioria “espanhol-falante” para aplicarem, então sim, as regras democráticas dos “direitos coletivos”.
Em segundo lugar, e paralelamente, a proposta secundariza, precisamente, as condutas sociais já galego-falantes, que não têm nada a “restituir” nas suas práticas (o que deve ser “restituído”, como direi depois, é o seu valor social). Por outras palavras: faz-se protagonista da mudança sociolinguística um setor da constituency (o eleitorado, com perdão) a priori caraterizado como “castelhano-falante”, que eu vejo apenas como uma metonímia desses setores urbanos emergentes cujo voto é crucial para dirimir, mais uma vez, um escano e, consequentemente, uma falsa ilusão futura ora de “consenso” ora de planificação linguística “imposta”.
Em terceiro lugar, a utilização de “bilinguismo” é ambígua entre a competência em duas línguas e as condutas reais. Acadar o “bilinguismo” em competências não é em absoluto garantia dos seus usos. De facto, o primeiro objetivo (saber duas línguas) pode-se alcançar perfeitamente com o inaceitável Decreto de Plurilinguismo, cuja concepção da “dinamización” linguística e do papel do sistema educativo parece consistir simplesmente na oferta de línguas como commodities, bens de consumo, como se o sistema educativo fosse uma grande Escola de/para Línguas com comparáveis capitais culturais (transformáveis em capital económico) prontas para concorrerem no mercado, no qual o aprendente, longe de ser capacitado socialmente, deve escolher “livremente” para a concorrência futura. Evidentemente, o conhecimento dum idioma é condição para o seu uso. Mas uma planificação galeguista no sentido amplo não pode destacar o objetivo duma conduta social geral “bilingue”. Tal situação de bilinguismo social (como a atual) é um destilado da associação entre domínios de uso das línguas e escolhas (nunca “livres”) dos falantes, mas não figura, que eu saiba, em qualquer ideário da verdadeira “normalização”.
Por sua parte, o repontamento atual da crítica à ideologia e retórica do “monolinguismo” social manifesta tanto uma ultrapassada simplificação da noção quanto uma conivência ideológica com o projeto espanholizador, recentemente muito menos monolítico e reforçado (não esqueçamos) por uma retórica da “diversidade” e do “plurilinguismo”. De novo, a crítica ao “monolinguismo” é compatível com a nova mercadotecnia do “plurilinguismo”, que confunde a evidência social da diversidade linguística com uma suposta lógica dissimuladamente neo-darwinista social das línguas, como simples commodities. Absolutamente ninguém com miolos concebe o “monolinguismo social” como a conduta em galego do 100% dos galegos em todas as ocasiões. Talvez o vocábulo seja infeliz na medida em que a sua tradução às ideologias linguísticas diárias é, disarmoniosamente, o anterior, distorção para a qual sem dúvida contribui a Propaganda inimiga, que existe. Pode-se acusar os proponentes da expressão (entre os quais não me incluo) de imperícia na socialização da ideia, mas não de que não possa refletir uma legítima utopia razoada de situação sociolinguística futura.
Visto assim, o “monolinguismo social”, portanto, não é mais do que o projeto de hegemonia social do idioma, construída cívica e políticamente, num inevitável processo de confronto sem o qual o avanço é impossível, mas finalmente naturalizada (não habitualmente questionada) nas condutas linguísticas como elemento de integração, e portanto possuidora de todos os atributos da dialética de equilíbrio-tensão que têm a língua natural duma comunidade na lógica das sociedades de classe.
A hegemonia, como tal, não tem uma fórmula prévia de extensão quantitativa e prevalência da língua naturalizada como hegemónica. Não é preciso ser adivinho para supor que a hegemonia da língua na Galiza, de se dar, tomará por um período impossível de determinar a forma dum “bilinguismo social desigual” (não desse simplificador e, repito, programaticamente inexistente monolitismo do português galego a todos os efeitos), com a língua referencialmente declarada como “própria” como conduta maioritária natural e neutral, isto é, com o valor inverso da atual, mas em nenhuma medida num panorama inverso da dominação linguística atual baseada na exclusão e na discriminação. Só o discurso regionalista espanhol manipula interesseiramente a anterior simplificação.
A hegemonia pressupõe a naturalização do papel da língua e das suas variedades nas suas três dimensões fundamentais de: (a) veículo das relações sociais, (b) avanço social, económico e cultural, e (c) índice integrador de identidade “galega” coletiva. Isto é, a construção coletiva da hegemonia acarreta notáveis mudanças na articulação atual entre as línguas em uso e estas dimensões, e implica, necessariamente, ações de base (também ideologizadas, legitimamente ideologizadas, como “as outras”) e políticas linguísticas orientadas a atualizar as competências em condutas linguísticas sociais, não apenas em limpos esquemas teóricos. E, evidentemente, os grupos e pessoas que hoje têm habitualmente o castelhano como idioma único de referência e de conduta, deverão ser em conjunto positivos cúmplices deste lento processo, na dinâmica habitual que carateriza as mudanças sociais: por coparticipação ativa geral e/ou por gradual acomodação acompanhada de mudanças geracionais, com o natural grau de contestação em certos setores que não quererão abandonar (e que até talvez mantenham) certos privilégios baseados no seu próprio controle das formas de capital associados à língua espanhola.
3. A articulação entre propostas de intervenção linguística e usos reais.
Mas, sem dúvida, o dito anteriormente não deixa de ser ideal papel molhado sem uma clara compreensão das condutas sociolinguísticas reais cuja agregação arroja esses destilados macro-sociológicos chamados “hegemonia” ou “monolinguismo social”. E neste aspeto, infelizmente, é onde o discurso ativista e planificador institucional da Galiza dos últimos mais de 30 anos se demonstra como categoricamente ineficaz, à margem das etiquetas globais profusamente utilizadas e lançadas nas polémicas.
A compreensão das condutas de fala nos diversos domínios sociais (família, escola, grupos de amigos, relações vizinhais, encontros esporádicos no espaço público, instituições, trabalho, práticas religiosas, etc. etc.), para uma aplicação produtiva de políticas de intervenção, requer conhecimento específico sobre a densa organização da interação social. Há que considerar e analisar elementos como as competências possíveis do repertório linguístico das pessoas, a sua definição da situação social para a escolha apropriada da língua, o papel das atitudes e ideologias linguísticas (e políticas), os mecanismos de marcação de identidades sociais (nacionais, de classe, género, etc. etc.) a meio da fala (ou da escrita) como signo, a gestão do que se chama distância comunicativa e das imagens sociais associadas, a consecução dos objetivos do encontro, a tipificação do valor e capital associados à língua e do seu potencial de conversão noutros capitais, a hidráulica entre “custos” e “benefícios” das escolhas linguísticas, a adequação entre língua, tema da conversa e circulação das ideias ou produtos culturais, etc. etc. Qualquer proposta planificadora que ignore a complexidade dos encontros sociais mediados pola língua e pretenda que a sua redução a números (“60% fala galego com os amigos”) é uma descrição suficiente, ou que as declarações programáticas (“há que falar galego com os amigos”) são um impulso suficiente, ora será uma miragem de planificação ou de ativismo, ora será um eficaz instrumento para o status quo atual de declínio “natural” do idioma como resultado de processos “espontâneos”. Mas temo que a planificação institucional e o ativismo legitimado para-institucional galego, apoiado em semelhantes enquadramentos quanto à concepção da língua como um fenómeno apenas macro-social, são as duas cousas (miragem e instrumento para o adversário), com a diferença de que o ativismo legitimado, por muito que tenha errado, não leva nas costas 30 anos de demissão das suas responsabilidades públicas, como as instituições, instâncias e organismos com reconhecimento jurídico. Nem durante a Era Iribarne de política linguística de inação para acelerar a morte do galego, nem durante o menos obscuro governo do bipartido, nem agora, a planificação institucional e o tipo de sociolinguística académica (universitária) que tem fornecido os enquadramentos, dados e linhas de acção, se ocuparam seriamente destas bases sociológicas das condutas reais. Na verdade, só umas poucas e poucos sociolinguistas na Galiza (nomeadamente, nas três universidades, ou formados aqui mas atualmente fora do país), poderiam contribuir para este trabalho essencial de conhecimento do funcionamento das condutas linguísticas, para que os projetos de planificação galeguizadora deixassem de ser uma cómoda consigna que fracassa sempre polo “espanholismo cavernícola” de uns ou polo “idealismo monolinguista” de outros. Mas essas poucas e poucos sociolinguistas que trabalham sobre os usos reais da fala existem, embora, para serem considerados úteis polas instituições para a Causa da Língua, talvez tenham o terrível handicap de não pertencerem visivelmente a nenhuma formação política, nem de representarem interesses partidários.
No âmbito das condutas linguísticas reais, portanto, a construção planificada da hegemonia deve fundamentar-se no conhecimento de como aquelas funcionam, para propor as ações, medidas e instrumentos adequados. Em termos gerais, trata-se de ajudar a um processo geral de valorização do galego, entendendo o “valor” como algo semelhante ao “grau de desejabilidade prática” para ser uma conduta produtiva num dado encontro social. E esse valor deve estar injetado de vários componentes, que requerem intervenção em dimensões sociais e económicas:
(1) Capitalização real da língua, e, portanto, convertibilidade ulterior (dentro da insidiosamente inescapável lógica atual do mercado linguístico). Nesta altura, o galego praticamente apenas está capitalizado culturalmente para dous campos que, em exercício solipsista, o produzem, transferem, fazem circular, e convertem parcialmente, e que foram os recetores fundamentais da planificação durante décadas: o campo cultural (intelectual, literário e, menos, artístico), e o campo técnico-profissional do ensino da língua (professorado de galego). No campo político, o uso da língua porta potencial de capital simbólico, e há certa osmose com os outros dous campos. Mas, no conjunto, o divórcio entre estes campos e o das atividades económicas produtivas é apavorante. A capitalização do idioma requer a sua conversão formal num instrumento real de circulação não apenas interna, mas internacional, com os monstruosos valores associados de classificação social (como “língua de saber”) a que não escapa, também, a sua forma atual, infundida de populismo, mas inútil para a capitalização. A capitalização duma língua dá-se, em primeiro lugar, no sistema educativo. Uma forma provadamente capitalizada de galego é a norma portuguesa internacional, e para esse caminho apontam numerosas e crescentes iniciativas cívicas atuais.
Mas a capitalização requer, sem dúvida, que se arbitrem as medidas de intervenção polas quais nas atividades económicas, mesmo na “liberdade de mercado”, o uso do galego em todos os níveis e situações (organização interna, atenção ao público, etc.) esteja vinculado com a sua convertibilidade como capital social (de relacionamento, e portanto de possibilidades posteriores) e económico. A capitalização passa pola explicação da miragem fortemente enraizada do papel do espanhol para o “ascenso social” (isto é, passa pola desvalorização relativa do espanhol como instrumento efetivo de ascenso; na realidade, não é a assimilação ao espanhol que faz “ascender”), e pola criação das condições para o surgimento de atividades comerciais de “identificação galega” na sua apresentação pública, nas suas políticas (dignas) de contratação, no seu mercado, e na priorização das suas alianças e colaboração com outras empresas. E a planificação efetiva para isto acarreta incentivos sérios além da concessão de subsídios para rotulagem, e um declarado protecionismo dos poderes públicos para estas iniciativas.
(2) Prestígio. O prestígio, como elemento subjetivo e intersubjetivo, está ligado à capitalização do idioma, mas participa também da dimensão simbólica. A atribuição de prestígio ao galego polas pessoas não é necessariamente explícita e reflexiva (na forma de declarações aparentes como “Eu AMO o Galego”, cuja interpretação em contexto às vezes poderia, precisamente, levar à conclusão contrária da declarada). Quando naturalizada, a assignação do prestígio para o galego manifesta-se no seu uso nos encontros sociais para a pessoa gerir a imagem própria e reclamar, sem mais, o exercício da dignidade e da integridade como ser social, e como ser social civicamente “galego”. Tem-se discutido amplamente sobre a noção de “auto-ódio” como o contrário do “prestígio”, e, embora “auto-ódio” contenha um escoramento psicológico de difícil encaixe num enquadramento sociolinguístico, a sua manifestação na fala pode ser vista como uma auto-assumida minorização e, portanto, uma tendência a renunciar voluntariamente ao automatismo do uso da primeira língua em favor da língua “neutral”, o espanhol, isto é, uma tendência a se “acomodar” à esta língua, embora nem seja tampouco a língua primeira do interlocutor.
( 3 ) Utilidade. A utilidade duma forma de fala devém da sua produtividade para canalizar uma dada relação ou encontro social. Deriva, em parte, da aplicação e gestão situada (na interação) das dimensões anteditas de valor (capitalização e prestígio), mas também doutros aspetos, como a perceção da adequação formal e estilística aos fins da troca comunicativa (comprar-vender, saudar-saudar, falar do tempo, fazer uma gestão burocrática, ir de vinhos, etc. etc.).
Como acontece com qualquer conduta, a utilidade não se declara por decreto ou por campanha (“O Galego é Útil”), mas é resultado da experiência, e da difusão social duma percepção dessa prática (“falar assim ou assado”) como produtiva e “útil” para a apresentação pública e o estabelecimento ou canalização de relações sociais. Por exemplo, o ensino de galego nos centros, nem com uma teórica distribuição de 50/50 com o espanhol, é suficiente para garantir a sua utilidade nas relações entre iguais. Na minha opinião, só uma filosofia e um modelo encaminhado à imersão generalizada em galego/português (oral e escrito, com o ensino e exposição à sua diversidade) poderiam contribuir consideravelmente para criar um contexto necessário para o automatismo no uso (já não “escolha”) do idioma, isto é, para a sua naturalização, nas variedades que se quiserem, e, sobretudo, para a sua translação por osmose de redes sociais fora do centro educativo, na interação com outros amigos doutros centros que também tivessem a experiência diária da imersão. O atual Decreto de Plurilinguismo dum teórico 50/50 é nocivo (não só por isto: por filosofia geral), mas até uma hipotética fragmentação dos modelos educativos por escolas (por exemplo, algumas com imersão, a maioria sem ela) correria o risco de formar “ilhas de galego” sem continuidade com o resto da vida social. Em lugar de integrar, o galego serviria para singularizar, e o argumento de que as amiúde glorificadas “cifras de uso” do galego cresceriam ficaria invalidado pola inutilidade geral desses usos: polo seu isolamento.
Destaco como amostra a utilidade do galego nos setores moços pola importância que uma naturalização dos seus usos públicos, mesmo para aqueles moços e moças com o espanhol como idioma familiar, tem para o estabelecimento de relações de amizade e de parelha assentes em galego e, portanto, mais favoráveis para a própria transmissão linguística intergeracional. Mas a utilidade do idioma também se mostra na sua associação à circulação de produtos culturais noutras variedades da mesma língua galega-e-portuguesa-e-brasileira (livros, música, vídeos) na vida diária, face-a-face ou na Internet. Esta circulação de materiais reforça laços, redes e processos de identificação baseados em afinidades culturais e ideológicas. Para isto é fundamental a associação entre formas orais próprias e a recuperação do sentido do “próprio” para outros produtos da lusofonia, em função, também, do seu potencial de capitalização (ver ponto 1).
(4) Identidade. Por fim, a construção da hegemonia, de se dar, deverá ter por definição o alinhamento identitário com a língua como referente geral, nacional e internacional (língua portuguesa=galega=brasileira), isto é, com um imaginário cultural e social compatível com o local nacional de uma maneira diferente ao do enrocamento identitário atual, que é uma forma de fragmentação dirigida e útil para a regionalização da Galiza. Contra a sublimação das fronteiras administrativas atuais, rígidas balizas das outras fronteiras linguísticas que reduzem o galego a um produto espanhol por definição, a reconcepção da língua poderia contribuir (acho que já está a fazê-lo) para abrir fissuras no parcelamento da nação como “Comunidad Autónoma de Galicia”, com o potencial de exercício da vontade cívica soberana que isto pode acarretar.
4. Conclusão.
Os apontamentos sobre as questões anteriores de promoção dos usos linguísticos, e mais, não são apenas responsabilidade de instituições e organismos amiúde lastrados pola dependência (orgânica, jurídica, económica e simbólica) dum projeto estatal (não esqueçamos: constitucionalmente anti-soberanista) para a Galiza e para a sua língua que é incompatível com o que descrevi, isto é, que é indefinidamente subalternizador do galego. À margem da polémica nominalista, o verdadeiro debate sobre a hegemonia social da língua abrirá-se, com efetividade, quando as múltiplas iniciativas cívicas, de base, que fazem a língua em associações, locais sociais de base, projetos de capitalização linguística, etc., amiúde sem qualquer apoio institucional (quando não com a oposição, até judicial, de representantes da mesma partitocracia que subscreve discursos galeguizadores), e mais múltiplas vozes concorrentes, cheguem a ser não só interlocutores reais, mas coparticipantes, em criativa dialética (noutro tipo de confronto), dum mesmo alvo coletivo para a língua.
Porém, um crescente cepticismo, após décadas de observação das dinâmicas partidistas, institucionais e para-institucionais no quadro político e jurídico da “Comunidad Autónoma”, leva a duvidar de que os principais setores em pugna polo controle dos campos intelectual, técnico e político cheguem a aceitar que o trazido e levado Futuro do Idioma deveria acarretar a sua inteligente renúncia a parte do próprio protagonismo (cujos frutos, amiúde, limitam-se à acumulação dum pouquinho de perecedouro capital simbólico) para facilitarem isso que se pregoa: que o confronto entre noções de paradigmas aparentemente diferentes não fique numa enorme peça discursiva de museu que, dentro de cem anos, uma equipa de pesquisa histórica totalmente monolíngue (desta vez sim: em espanhol) resgatará inteiramente da Paleo-Internet para vender em Navidad num ibúk de El Google Regional de Galicia.