“Eu tamén sou lusista, Celso, pero entre nós; o pobo necesita unha grafía!”
(Um indignado Francisco Fernández del Riego, em memorável encontro, década de 1990)
Categorias sobre a escrita
Verdadeiramente, as categorias sobre a língua formal escritas que os discursos hegemónicos utilizam são do mais falacioso, e amiúde não só contradizem a realidade, mas as próprias categorias comuns (“nativas”) em que dizem se sustentar. No variado bestiário da escrita (e da fala) galega atual, contrapõem-se bichos como “galego oficial”, “galego da Xunta”, “galego normativo” ou “galego do ilga”, a bichos como “galego reintegrado”, “galego reintegracionista”, “galego lusista”, “galego-português” ou “português” (curiosamente, “galego da rag” é pouco comum, o qual indica bastante; o mesmo se pode dizer de “galego da agal”).
Talvez as etiquetas mais populares das primeiras sejam “galego oficial” e “galego normativo”, e, entre as segundas, “galego lusista”. Não há qualquer noção clara de que a norma atual da Associaçom Galega da Língua, por exemplo, seja diferente do “lusismo”. A realidade é que a teoria de base, comum, sobre a língua, continua uma tendência a polarizar a experiência da língua formal entre dous tipos de galego: o de “dentro e abaixo”, e um de “fora e acima”. Ainda que o galego-RAG também surgiu desde acima (como todas as normas), a propaganda (a criação de sentidos afetivos coletivos a partir da repetição incansável de lemas simplicíssimos) chegou a calhar numa certa identificação popular: o “galego oficial” ou “normativo”, sim, seria inventado por esses senhores intelectuais e políticos, mas é “nosso” porque a Comunidade Autónoma de Galicia é “nossa” também. Uma consequência desta ideologia é que, votemos em quem votemos, mesmo nos pijos que nos desfazem a economia, a terra, a língua e a vida, não por isto deixamos de votar nos “nossos”, e, a seguir, de ter os “nossos” conselheiros que decidem sobre as “nossas” escolas públicas e sobre a “nossa” língua dentro delas. O “galego oficial/normativo” é, portanto, a máxima encarnação da articulação produtiva de “Galicia” dentro da “España”, topónimos ambos linguisticamente bivalentes (são formas galegas porque são espanholas).
Sobre o galego “oficial”
Pouco adianta procurar explicar que o “galego oficial” não existe porque na España não existem normas ortográficas oficiais (António Gil leva anos destacando-o, e dele me nutro). O assunto é que a propaganda política conforma a prática diária, e constitui, contra o desejo da inteligência, um novo sentido da “oficialidade” e da “legalidade”. Na tradição de submissão da sociedade galega (esse “Pobo” glorificado polos criadores da norma), sujeita secularmente à autoridade, vê-se como “oficial” tudo quanto leve o carimbo das instituições do Reino e opere dentro delas. Um apavorante correlato desta atitude é que tanto a obediência ao “oficial” quanto a repressão da desobediência se estimam justificadas. Neste panorama, a censura sistémica às letras galegas “não oficiais” vê-se como um elementar exercício de autoridade legítima, como a pequena punição do silenciamento na aula quando um estudante não se ajusta à ordem discursiva oficial. Esta atitude não é um tópico irreal: é a documentável consequência da nossa história caciquil. Certamente, o “pobo” (bom, os filhos do “pobo”: este é velho demais, e já deu o seu fruto votando; agora há que preparar outra fornada) é instruído para ler as letras, e, com elas, para ler as leis, incluindo as orgânicas e as linguísticas. Mas nunca será instruído por Galicia-España para ler o seu sentido. Na ideologia popular, em resumo, o galego-RAG continuará a ser “oficial” enquanto Galicia continue a ser uma província mental da España.
O poder do “normativo”
Mais efetivo pode ser, porém, incidir na dimensão normativa dessa oficialidade. A etiqueta “galego normativo” sim que contém elementos úteis para a mudança, isto é, para a aparência de mudança que justifica o labor das elites. Frente ao suposto caos atual da escrita (esquece-se o longo passado: nunca a escrita galega foi nem relativamente uniforme, isto é, militar), o fulgor do “normativo” impõe nas pessoas uma necessária mimese de ordem mental. Paradoxalmente, a velocidade das mudanças e da circulação “globalizadora” de formas e de conteúdos é incompatível com a variedade. Como se se tratasse dum moderno Império Romano — estranho por estar em descomposição desde o seu nascimento — a padronização é imposta até nas dimensões e condutas mais miúdas: bombilhas, tomadas de corrente, carros, normas de etiquetagem de produtos, horários, comidas, música, estética… A cacarejada riqueza multicultural é mentira. Há um centro normativo, canónico, cada vez mais sólido e poderoso, e em torno dele há excrescências toleradas.
Quanto à língua, aproveitarmos esta necessidade criada de homogeneização pode radicar em destacar o carácter normativo da rareza ortográfica portuguesa, que, embora seja “minoritária” na Galiza, é também bem homogénea (muito mais do que a escrita atual em galego-RAG), como todas as cousas boas do mundo normal. Assim, as armadilhas ou dispositivos ideológicos, numa mente receptiva a eles, deveriam funcionar de igual maneira. De facto, acho que Foucault explicou bem a essência transferível dos dispositivos de coerção. Se a Língua é uma invenção (e é), a miragem da língua comum deveria funcionar também para implantar socialmente (na cabeça) o verme da nova Norma que florirá em inigualável borboleta nacional. E, se o “galego normativo” é uma necessidade social, de coesão, de auto-satisfação, de auto-conforto, nós, os lusistas, temos a alternativa, uma nova salvação pátria para substituir uma salvação já caduca.
A salvação
Em 1990 aprovou-se em Lisboa o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Aí estava Portugal, o Brasil, e também observadores da Galiza. A escusa para o exercício da comunalidade já está servida. O pequeno detalhe do nome da língua (“portuguesa”) pode ser obviado por agora: é evidente que galegos não iam estar aí para defenderem uma língua estrangeira nem estranha: deveremos concluir que chamavam e chamam “português” à nossa. Não há nada que a propaganda não possa solucionar, e neste sentido devemos aprender muito do poder galego. Deve-se repetir: “Português é o nome do galego polo mundo adiante; português é o nome do galego polo mundo adiante; português…” Este é o axioma necessário para começarmos. Ele é impecavelmente comparável ao axioma “O galego é língua independente; o galego é língua independente…”, e por isso não deveria admirar que a reação da elite galega ao axioma lusista não esteja baseada na razão intelectual, mas no mais visceral dos seus interesses económicos.
O crucial, portanto, não é a impossível desarticulação “por acima” da lógica de elite dos galeguistas. Hoje, esta lógica do capital é inapelável, e pode-se compreender que mesmo entrar nela (estar “acima”) deve ser reconfortante. Antes, o crucial é produzirmos em cadeia de montagem este segundo lema simplicíssimo: que o verdadeiro Galego Normativo que o Pobo-Povo, sem o saber, deseja, já nasceu terrenalmente na forma do Acordo Ortográfico de Lisboa de 1990. Povos irmãos devem ser o nosso exemplo. O Povo do Brasil já está a utilizá-lo. O Povo de Portugal vai caminho disso. O zé-Povinho doutros países de África que falam como nós (são neofalantes), também. Por que deveríamos considerar-nos nós, os fragmentados, emigrantes, subalternizados galegos, diferentes dos nossos compatriotas no sofrimento histórico? Por acaso não compartilhávamos e compartilhamos lugares de trabalho provisório na emigração com os portugueses? Por acaso não deixámos filhos e filhas no Brasil que agora falam os variados crioulos que se escrevem no uniforme Galego Normativo chamado português do Acordo? Em resumo: Que singular traço faria este despotencializado e subalternizado Pobo Galego tão diferente como para acreditar que o Galego Normativo feito na España o representa melhor do que o Galego Normativo feito em Portugal e no Brasil?
Batalhas e medalhas
Há só duas respostas a esta pergunta: 1) A arrogância; ou 2) uma profunda españolidade, isto é, a traição absoluta. Eu sei que o antídoto da elite à primeira resposta é uma invocação da sua missão redentora: as autoridades normativizadoras não são arrogantes, são só representantes divinas (democráticas) do genuíno sentir popular. E sei que a segunda resposta é conjurada por elas com a mais completa das rejeições, como se quem a propõe tivesse a fedorenta peste negra. No seio da elite galeguista, e no discurso da elite para o Pobo, a listagem de batalhas históricas contra o Monstro Español converte-se em bíblia de resistência (com a qual pregoam nos atos culturais subsidiados, além de nas portas da Citroën, com marcado sucesso). E a acumulação das suas medalhas (políticas, literárias, intelectuais), torna-se numa integral armadura contra a crítica, cobrindo-os dos pés que já não pisam a terra até aos olhos que já não vêem o exterior. Mas, com um mínimo de inteligência, conhecemos a debilidade destas escusas de elite. O poder é uma trama profundamente transparente. Por isso, a pergunta anterior mantém-se, com mais força: É a base da “nossa” atitude (a do Pobo Galego, representado divinamente nas elites) face à língua comum profunda arrogância (isto é, um suicida desprezo do famoso critério da Utilidade da língua) ou profunda españolidade (uma forma tremenda de Identidade)?
Opções de mercado
No século XXI, o Galego Normativo chama-se norma do Acordo Ortográfico, este galego nojentamente lusista, brasileirista e até galeguista. Perante esta evidência crescente, a elite pode começar a oferecer ao Pobo uma nova ordem uniforme (militar), a do português do Acordo: uma norma internacional e cosmopolita como tudo quanto nos faz burgueses seres livres, séria como as centenas de gramáticas, dicionários e produtos informáticos já existentes, e lustrosa como o capital dos seus líderes mundiais. Imaginem, na TVG 3D e de alta definição do futuro, a próxima vicepresidenta nacionalista da Galiza falando de tu a tu na mesma língua com a vicepresidenta do Brasil sobre a importação de petróleo, e assinando os protocolos no mesmo Galego Normativo do Acordo.
Em troca, a elite pode continuar a negar esta norma ao Pobo, e continuar a oferecer a sua mimese eivada da Ordem que se precisa: o galego-RAG que chamam “oficial”. Neste caso, o futuro cenário televisivo proposto inclui o presidente autonómico Alfonso Rueda falando em chapurrao com um mafioso da construção e malescrevendo em galego-español os contratos amanhados. Ah, existe qualquer populista opção intermédia? Não: no segundo cenário só mudariam o nome e o partido do político.
O vitalíssimo assunto do Galego Normativo para o Pobo é uma simples questão de opção, de livre mercado, de pura sobrevivência de classe: de elites. A opção portuguesa implica, claro, a decidida e dolorosa viragem de descapitalizar o español, renunciando, por exemplo, não só ao íntimo imaginário histórico e cultural que constitui as elites galegas, mas, sobretudo, aos frutinhos diários específicos que a leitura (e a escritura) de EL PAÍS-Galicia hoje deixa na mente e na algibeira. A segunda opção, polo contrário, conduz a abraçar o español plenamente, nalgum momento. Pensem-no, elites galeguistas, e decidam rapidinho enquanto o Pobo ainda fale a língua, ou podem perder tudo quanto têm.