Publicado em Vieiros • No Portal Galego da Língua
Anxo Lorenzo, demite. O teu Decreto não vai ter o “consenso” que procuras, e que explicava a tua aceitação do cargo. Se demites ficarás bem contigo mesmo. Demonstrarás o fiasco em que te meteste, e sobretudo uma grande humanidade. Sabes que o novo Decreto não será o que precisa o galego.
Sabe-lo por formação: nem tu nem alguns dos teus referentes académicos o permitiriam para Catalunha, por exemplo. Não essencializo as línguas: falo da lógica sociolinguística. Pensarás que o novo Decreto é um ponto intermédio, e até procurarás justificações pedagógicas. Mas, se páras a refletir uns instantes no meio do que imagino como uma densa agenda, aventuro que tu próprio poderias conceber uma situação e um futuro mais tranquilo, “normal” (essa normalidade de deixar de se preocupar de certas questões para investigar outras importantes) se a legislação estabelecesse simplesmente que “O galego ou português [ou português, sim: sou-che lusista] é a língua do sistema educativo da Galiza”, e que as regulações educativas caminhassem nessa direção.
Imagina por um instante a progressiva ausência de questionamento sobre isto, a progressiva incorporação do galego/português no currículo, nos materiais pedagógicos e científicos, nos usos reais nas aulas e pátios, nas relações entre o estudantado. Imagina o poder coesivo desta imersão para a manutenção do galego na família, nos grupos de amigos, para a sua transmissão futura às crianças. É uma dinâmica conhecida. Que sociolinguista poderia argumentar que menos que essa meta da imersão pode contribuir para contrapesar a aceleradíssima perda do galego em apenas 40 anos?
Imagina, então, essa normalidade (já nos entendemos) como o quadro para examinar as questões importantes. Por exemplo: Como, apesar duma futura hegemonia da língua própria, a sociedade continuaria dividida em classes linguísticas. Como a perícia nesse galego permitiria a algumas pessoas chegar a sociolinguistas, a professores, a Secretárias Gerais de Política Linguística, enquanto a imperícia no Galego/Português do poder manteria a maioria na sua classe linguística de base. Então é que poderíamos começar a falar destas cousas importantes, Anxo, não das percentagens de línguas nas matérias, que é uma cousa técnica que pode decidir um computador medianamente inteligente. Nem antes nem agora, a política linguística é questão de percentagens de línguas: é uma questão de filosofias e ideologias adversárias. Não se pode aplicar uma com os critérios e instrumentos da outra.
É possível, evidentemente, que não demitas. Até diria (grande adivinhação) que não o vás fazer. Justificarás-te dizendo que é porque cho demandaram “do lado errado”. Esquecerás que também cho sugeriram “do lado correto”. Dirás que agora é tarde demais. E, durante anos, ficará a dúvida se jogavas a duas bandas. Porque, Anxo, que benefício profissional e pessoal (satisfação com a “responsabilidade”, com o “trabalho bem feito”) vai isto reportar-che, oculto sob a escusa estrutural do “benefício para o Galego” ou do “benefício para o País”? Sou-che um cínico, Anxo, e admito que também um pouco insolente. Não te ofendas pessoalmente, mas mantenho as perguntas.
E quando saques (no momento oportuno, como em judo), o Decreto do Galego no Ensino, espero sinceramente poder tragar as minhas palavras porque seja tão satisfatório que tenhas cumprido a tua missão e todo o mundo o reconheça. Oxalá: faria-o com gosto, com o gosto de quem sabe que na sua vida escreveu muitas necedades. Mas temo-me que não seja assim.
O mais provável é que o Decreto seja um desastre para o galego, mas contenha alguma inteligente ambiguidade que soará a caramelo para continuares a convidar à miragem do “consenso”. E como o mundo se divide entre bons e maus, no Ano I da Era Pós-Decreto provavelmente muita gente continue a pensar que deverias ter demitido, polo bem da santa Língua, polo bem da política, para desmascarar a trapaça de Feijoo. Por enquanto, fracassarei na minha petição de demissão, sem dúvida.
Talvez mais adiante no teu mandato, canso, decidas retirar-te discretamente. Mas, que importará, se afinal a posição que exprime agora este néscio texto não é verdadeira sociolinguística (reconheço-o), e Feijoo terá ganhado o jogo do falso debate entre a sociolinguística oficial e a dos adversários legitimados?
Cordialmente,
Celso.