Publicado em Vieiros
Tenho muita curiosidade por saber o que se pode queimar ou não em público no Reino. O governo español, em representação do Rey (isto é, do Estado) deveria meter na SER uma dessas cunhas publicitárias explicando os males eternos da queima de papel, como os da droga ou do tabaco: Quemar Mata… O Te Enchirona. No Chamusques Tu Futuro.
Seica um papelinho com a figura do Rey não pode ser queimado porque ele é o “símbolo de la unidad y la permanencia del Estado” (art. 56 da Constitución Española). A bandeira española também não pode ser queimada: lembrem o encarceramento que sofreu Francisco Rodríguez, hoje deputado do BNG em Madrid, acusado de ter queimado uma vistosa rojigualda aquando da chegada dos restos de Castelao a Compostela em 1984. Num curioso programa de televisão anos depois, cujo simples título daria para uma análise de tese (“Queremos saber: ¿Por qué algunos catalanes, vascos y gallegos no se sienten españoles?”), Francisco Rodríguez respondeu à entrevistadora Mercedes Milá (hoje algo degradada jornalisticamente) que ele nunca queimara a bandeira. Pois má sorte! De ter estado na cadeia, polo menos ter tido o prazer!
Mas, pergunto-me eu, então a bandeira galega actual, tampouco pode ser queimada? De que tamanho sim e de que tamanho não? Em que milímetro começa o simbolismo? Eu, por exemplo, acabo de queimar uma miniatura de papel da vistosa branca-azul no meu gabinete: os seus restos estão no cinzeiro (fiz foto no telemóvel). E um exemplar do Estatuto de Autonomia, pode ser queimado? E um CD pirata do hino galego flamenco de Arturo Pondal (outro símbolo)? Haveria que fazer a prova, diante das câmaras da TVG, em aberto, durante uma manifestação independentista (queimar a galega, digo, a outra já está mais visto).
De maneira que queimar certos símbolos é ilegal, não porque contamine (Greenpeace não abriu a boca), mas porque a pessoa incineradora manifesta que não compartilha o valor ideológico desse símbolo, ou opõe-se à consagração jurídica desse valor. Então essa opinião distinta ao dogma torna-se num oitocentista “ultraje” (teríades que tunear a língua española um pouco, chachos). A leitura dos factos é assim singela. No entanto, cada fim de semana bêbedos jovens urbanos muito democratas queimam papeleiras plásticas por apolítico prazer, e a Audiencia Nacional (sic) nem se inteira.
Mas, vamos ver (pergunto-me eu): O que acontece se um apenas declara publicamente que queima algo, mas não o faz? O que significa isto? Por exemplo: “Pola presente queimo uma imagem de Juan Carlos de Borbón como símbolo da unidade e da permanência do Reino de España, projecto político que detesto”.
Não, não o fiz bem, não ardeu de todo (com suficiente ênfase). Terei que repeti-lo: “Pola presente queimo uma imagem de Juan Carlos de Borbón como símbolo da unidade e da permanência do Reino de España, projecto político que detesto”. Assim melhor.
Uf, isto é semiótica pura. A repetição exacta indica que a oração não foi gerada aleatoriamente por um vírus de trípi do meu processador WordPerfect. As aspas distanciam-me das palavras, de maneira que eu posso argumentar que citei uma hipotética declaração, mas não o declarei de facto (bom, em privado sim, para mim próprio: é delito?). E, ainda por cima, dizendo que declaro que queimo um ícone, estou a queimar o valor dum símbolo? Tremendo sarilho! Venham Pierce e Morris (semiólogos da Audiencia Nacional, sic) a interpretá-lo; eu afurrico.
Em resumo: Quantas vezes se podem dizer cousas assim sem que a Audiencia Nacional (sic) venha pedir o DNI? Quantas vezes pode uma pessoa manifestar uma opinião política antes de que seja “ultraje”? Porque, porventura alguma autoridade do Reino de España leu a Declaração Universal dos Direitos Humanos? Há tradução española.
Enfim, queimando espero / a Audiencia que mais quero. É claro que a Coroa cambaleia. Resta-lhe menos.