Publicado em Vieiros
As mulheres são propriedade privada dos varões. Quando já não servem para as suas funções no sexo, na cozinha, na submissão simbólica, são sacrificadas. São sacrificadas como um animal que se possui: como um cão rebelde, como um cavalo velho. Os donos sacrificam-nas com lume, com facas, com balas, com as mãos, com pedras para esmagarem os seus cérebros. Como em muitos lugares o sacrifício privado é ilegal, alguns varões entregam-se aos seus serviços de segurança. Nalguns lugares há juízos para garantir o sacrifício legal da propriedade privada já inservível.
Os operários e operárias são propriedade privada das empresas. Quando saem mais caros que o benefício que produzem (como uma amante velha, como um cavalo doente) são sacrificados, retirados do trabalho, dando-lhes fome por alimento, fechando as factorias. Os operários são abandonados à intempérie como um cão que uiva no monte por voltar ao seio do seu amo. Sacrificar operários dando-lhes fome costuma ser legal, desde que passem a ser propriedade privada directa do Estado, do seguro de desemprego.
Os países, as gentes e os territórios são propriedade privada dos Estados. A Galiza ou Euskadi são propriedade privada do estado monárquico, que os aluga a gente que por isso se chamam galegos ou bascos. Quando os ocupantes que alugam os países querem tomá-los, o Estado pode chamar ao serviço do segurança, ao exército. Às vezes, muitos inquilinos são sacrificados com balas, com paus, como se sacrifica um cão rebelde. Às vezes, uns poucos inquilinos varões empreendedores alcançam a tomar para si os países em aluguer, e os países, gentes e territórios passam a ser propriedade privada dos novos varões, dos novos Estados, que voltam a alugá-los.
O petróleo, o gás, o ar, a água, o sal, o pão e o arroz são propriedade privada dos varões, das empresas e dos Estados. Quando resulta caro demais obter ou produzir o gás, a água ou o arroz com as mulheres, homens e meninhos que trabalham nos campos, florestas e desertos alugados, os exércitos dos Estados das empresas dos varões sacrificam-nos com balas, com lume, com mãos e com facas, esmagam-lhes o cérebro com metralha, deformam a sua visagem com fósforo, desmembram-nos para fazerem ecrãs e cabeleiras sintéticas, produzem baralhos dos seus rostos, vídeo-jogos da sua nudez, megawatts dos seus cadáveres nas duches crematórias.
De tudo isto há imagens e palavras, diariamente. E as imagens e palavras que chegam às casas e às cozinhas onde as mulheres fervem arroz para os seus donos com restos de animais sacrificados, são propriedade privada das empresas e dos Estados. Quando as imagens ou palavras se rebelam e pensam, quando são inservíveis porque dizem como querem a verdade do extermínio, os Estados sacrificam-nas em altas labaredas, cortam as páginas com facas, riscam as frases imigrantes e os acentos rebeldes com tinta de sangue, decapitam as fotografias, torturam o significado. Os juízes e os exércitos dos Estados fecham em Guantánamo as páginas que fazem ritual greve de fome, desterram para o monte a uivarem como cães as imagens certas do extermínio.
As mulheres, a força de trabalho, os animais, os territórios, o gás, a água, o arroz, as imagens e as palavras têm todos nomes únicos, cifras, códigos, facturas, certidões de propriedade, vias de distribuição, composição interna, dimensões, peso, embalagem, modo de emprego, data de caducidade, lugar exacto para serem utilizados nas casas e nas indústrias, nos leitos, na corte, na cadeia de montagem, no sofá, nas estantes, no cérebro, lugar exacto para botar os seus resíduos, nos cemitérios, nos matadouros, nas lixeiras, nos esgotos, nos desertos, nas estantes, no cérebro.
E, afinal do seu ciclo, cada espécime de propriedade privada das pessoas e dos Estados torna-se na mente depois do seu uso escrupulosamente no mesmo: numa solitária reacção orgânica e num furtivo vágado irreal, como se tudo isto se tratasse apenas de um mundo alegórico indescritivelmente pavoroso que por ventura não existe.