Publicado em Vieiros • Publicado em Novas da Galiza 47, 15 Outubro – 15 Novembro 2006, p. 20
O Reino de España, chefiado como sempre desde que lembro por um militar profissional, prepara-se mais uma vez para celebrar a conquista e o genocídio nesse repugnante 12 de Outubro, Día de la Hispanidad, Fiesta Nacional. Ainda bem que não sou espanhol, que muitos não somos espanhóis para levarmos essa vergonha nas costas. España, a ressessa España dos catecismos escolares, das enciclopédias Álvarez, das cruzes gamadas e latinas, da indivisível unidade, da asfixiante hagiografia e dos mártires do Alcázar e das réstias de repugnantes reis e rainhas, homenageia aquele mercenário Cristophorus Columbus, o mesmo indivíduo que negociou igualmente com o sequestro de escravos africanos em Portugal e com escravos americanos em Sevilha, o que inaugurou a peste e o extermínio, o mesmo indivíduo que alguns tristes patriotas catalães, portugueses ou galegos querem reivindicar como seu.
O repugnante dia da Fiesta Nacional verá, mais uma vez, o desfile de repugnantes exércitos e repugnantes bandeiras de repugnantes monarquias e repúblicas, numa infantil sinceridade espanhola que é de agradecer: porque a essência de España sempre foi o exército. Perante o palco populado de medalhas e sorrisos de pastel, de altezas e baixezas, de políticos hipócritas y otras altas autoridades civiles, católicas y militares, desfilará a essência de España. E quem desfilará com as suas melhores galas de feriado não serão docentes, electricistas, varredores, pessoal sanitário. Não desfilarão campesinhas, cabeleireiros, jubilados, empregadas, contáveis, marinheiros, juízes, jardineiros. Não desfilarão taxistas, parteiras, comerciais, tradutoras, vendedores, peixeiras, músicos, jornalistas, ferralheiros, alvanéis, terapeutas, operárias, poetas, fruteiros, biólogas, limpadoras, camareiros, redeiras, pintores, tratantes, secretários, desempregadas, recepcionistas, mineiros. Não. Desfilarão matadores profissionais, soldados, cabos, sargentos, tenentes, capitães, coronéis, comandantes, generais, carros de metal, aviões de metal, fuzis, mastros, metralha. Desfilará página a página a enciclopédia universal do assassínio legal, regulado, cristão, salvador. Desfilará letra a letra o infame artigo 8 da Constitución Española.
E assim, mais uma vez, España demonstrará transparentemente a sua vocação armada, imperial, grotesca, o seu fracasso histórico. E todos e todas saudarão bandeiras de cor de sangue e bílis, bandeiras com estrelas de dor, com águias predadoras, com coroas de ouro roubado, bandeiras com as eternas palavras do extermínio: América, Marrocos, o Sara, Guiné, Iraque, Líbano, Afeganistão, Haiti. Felizmente regressarão os EUA ao concerto hispânico dos amigos da morte. E firmes nos seus tronos democráticos, políticos que lixam a palavra “socialista” e políticos que lixam a palavra “popular”, os mesmos que invadiram o Iraque e os mesmos que o abandonaram para continuarem no Afeganistão, para invadirem o Líbano cegamente fieis aos cães da guerra, celebrarão juntos a glória da Conquista, a heróica missão do Reino nos intestinos da prata e do ouro negro.
Do Cusco a Cabul, na mais antiga tradição monárquica, España continua a celebrar a épica da morte humanitária com o fulgor erecto de sabres e pistolas. Como sempre com essa monstruosa retórica da libertação cristã, democrática, ocidental. Como sempre desde que lembro. Como sempre até que a gente desse Reino decida deter a repugnante farsa.