Publicado em Vieiros
O terror não consiste apenas em encontrar-se de súbito rodeado duma floresta obscena de carne humana ensanguentada e metralha. Não consiste apenas em sentir o frio do metal na caluga e aguardar, aguardar a bala eternamente. Não consiste apenas na escuridão do calabouço, esse zulo democrático, esse anti-útero do Estado. Nem na ignomínia do fato laranja, da tortura com cães, das mãos infantis talhadas com machete, das praias bombardeadas, do corredor da morte. O terror começa na mente masculina, na quotidianeidade das cozinhas, na primeira labaçada, no primeiro insulto, na violação diária da dignidade. O terror é a mais poderosa fantasia sexual dos varões que levam mísseis entre as pernas e grandes facas erectas para matar, sempre para matar, para roubar, possuir e depois matar a carne usada que já não serve.
Todo o terror é político, como a mente. A mesma mente que agora faz reconstruir o cenário do assassínio é a mente que o concebe antes, como um plano estratégico de conquista. Desde há milhares de anos, o exército mundial dos varões planifica o lento genocídio. Seduzir, induzir, enganar, atrair com palavras ou com gestos, e depois possuir, violentar, utilizar, exterminar. O corpo da mulher está em usufruto do terror. Cada vez que o terror mata uma mulher, a mesma vesânia histórica reproduz-se. O terror mata-as na casa, na rua, num deserto em guerra, num prédio desabitado, com luz, às escuras. Mata-as com gasolina, com facas, com metralha, com as mãos. O varão mata-as protegido pola lei, legitimado pola propaganda, justificado pola exaltação universal do corpo que ele não tem. A mente do varão sofre o corpo que não tem. Porque, no fundo, a mente do varão terrorista só se vê a si próprio como corpo. Todo o mundo é carne para o terror do varão.
Mas as vítimas do terror não se organizam. Não saem em brigadas de voz a encurralar o terror. Não exercem a sua força, a da metade da humanidade, em armas contra o varão, contra o terror. O terror inflecte nas suas possíveis vítimas indignação e ira, mas não induz à revolta. Porque a revolta, a revolta verdadeira, consistiria numa insurreição de classe muito mais poderosa do que todas as que a História contemplou. E a mente masculina do terror que rege o mundo não pode permiti-lo. Assim, cada poucos dias, surge a notícia do assassínio. Lemos os jornais, sentimos a náusea, a ânsia de vingança. Mas o tempo passa, o tempo fundado por um deus atroz continua a passar, enganoso, enganando a memória. O varão dosifica o terror como um preparado homeopático contra-natura. E as vítimas suportam a regulada barbárie do terror como se fosse esporádica, não um fiel produto da mente masculina.
Todo o terror é politico, como a mente. A política do terror mora nos actos mais miúdos, no sagrado seio triangular da Família, no sagrado seio dos Partidos, no seio do Trabalho e da miséria. Hostes de mulheres levam dentro corpos futuros para o prazer do terror, nova carne para o longo genocídio. Varões desenham em mapas militares, jogos eléctricos e hormonadas conversas os seus planos de conquista. De novo no Verão os números sexuais soam sem controlo. Nos televisores refulgem líquidos limpadores de corpos, de cozinhas. Mulheres continuam a esmolar trabalhos provisórios, nutrir o corpo do varão, coser o uniforme do varão, cuidar o filho do varão, sempre lavar os fluídos espessos do varão. Lustrosos generais ejectam enormes pénis de metal que sobrevoam os desertos. Estoura o sémen. E no calabouço dum prédio desabitado aparece uma outra vítima do terror.
Para o Terror, todo o mundo é carne feminina.