Publicado em Vieiros
Os paradoxos lógicos, semânticos ou pragmáticos (linguísticos em geral) têm grande tradição em filosofia da linguagem e até na vida diária. São contradições contidas em expressões do tipo “Isto não é uma oração”, ou “Este enunciado não é verdade”. De meninho brincávamos ao jogo dos pronomes com trocas regueifeiras do tipo: “Eu sou eu, tu és tu, quem é mais parvo dos dous?” “Tu”. “Por isso, TU”, “Não, TU. TU és TU, EU sou EU”. Agora uma actuação do Juiz da Audiência Nacional de Espanha Fernando Grande-Marlaska dá pé a um novo paradoxo pragmático-jurídico, o Paradoxo da Ameaça, ou Paradoxo de Grande-Marlaska. Consiste em que, entre as imputações acrescentadas a líderes de Batasuna por “ameaça terrorista”, incluem-se as declarações de Joseba Permach de que um encarceramento dos líderes independentistas poderia acarretar um “bloqueio” ao chamado “processo de paz” em Euskadi.
No Paradoxo de Grande-Marlaska entra em jogo uma interpretação peculiar do que constitui uma ameaça. Se eu digo: “Vou-te matar”, isso é uma ameaça. Se eu digo “Se te topo pola rua, mato-te”, isso também é uma ameaça, porque tu não podes (nem tens qualquer obriga moral) evitar ser encontrado casualmente. Também é uma ameaça “Se continuas a vestir de laranja, mato-te”. Porém, se eu digo: “Se continuas a bater em mim para matar-me, mato-te eu”, isso não é uma ameaça: é uma advertência, que inclui uma condição. O meu interlocutor é responsável de cumprir ou não a condição, e eu, de cumprir ou não o acto negativo futuro. Também é uma advertência: “Se continuas a bater em mim para matar-me, os meus amigos vão matar-te, queira eu ou não”. Por fim, se eu digo: “Se continuas a caminhar polo abismo, vás matar-te”, isso é um aviso: eu não sou responsável de nada. No triplete ameaça-advertência-aviso, a questão crucial, portanto, é a da capacidade e a responsabilidade de cumprir os actos presentes e futuros: os meus e os teus. A violência de género, por exemplo, é um ciclo crescente de ameaças disfarçadas de pretensas advertências: “Matei-na, sim; já lhe advertira que não saísse com outro”.
No terreno político do Estado, a manipulação do sentido da “ameaça” não é nova. O Estado Espanhol e os meios de comunicação têm feito interpretações singulares de certos actos de fala políticos como ameaças. Em 1996, EL PAÍS intitulava uma notícia sobre um grande rebúmbio do momento desta ilógica maneira: “Anguita amenaza con pedir la república, el federalismo y la autodeterminación” (EL PAÍS, 15 Setembro 1996, p. 17). O contexto eram as declarações de Julio Anguita, então Secretário Geral do PCE e de Izquierda Unida, no sentido de que o seu grupo reclamaria a República para Espanha se a Constitución monárquica continuava a incumprir-se em termos de direitos básicos como a vivenda e o trabalho. Argumentava Anguita que a aceitação da monarquia fora uma concessão subordinada ao desenvolvimento (ainda hoje inexistente) destas políticas sociais de rango constitucional. Nesse contexto, a expressão “ameaçar com pedir” de EL PAÍS não é só manipuladora e absurda, mas risível. Isso significa que o Estado é tão débil e o ameaçante peticionário tão forte que, por exemplo, com só reclamar que Juan Carlos de Borbón marchasse a viver a um piso da Castellana como cidadão comum isto já se daria conseguido. Oxalá ameaçar consistisse nisso: Pola presente eu ameaço agora, como George Brassens nos dourados 1960: “Je déclare l’état de bonheur permanent”.
No Paradoxo de Grande-Marlaska, a peculiar visão do acto da “ameaça” reflecte-se na interpretação das palavras de Joseba Permach: Se os líderes independentistas são encarcerados, o chamado “processo de paz” em Euskadi poderia bloquear-se. Permach teria advertido contra as “interferências” do poder judicial a este processo. É curioso que estas palavras (que expressam uma possibilidade real, de sentido comum) contenham uma ameaça imputável judicialmente, e outras opiniões políticas não. Declarações semelhantes, que podem ser vistas no terreno da argumentação como tentativas de coacção política à “independência do poder judicial”, foram feitas por Conde-Pumpido, acho, quando instou os juízes a interpretarem a lei à luz do novo contexto político do Estado. Também são feitas a diário polo PP quando urge que o poder judicial não leve em conta o novo contexto político, o qual (dizem os que sabem) iria contra o próprio espírito da função judicial.
Mas o passado continua. Seguindo o Paradoxo da Ameaça de Grande-Marlaska, talvez o então vice-presidente Mariano Rajoy ameaçasse com bloquear o processo eleitoral na noite do 13 de Março de 2004, quando declarou por televisão sobre as manifestações contra as sedes do PP: “El Partido Popular ha denunciado estos hechos ante la Junta Electoral Central, que es la autoridad competente en garantizar la pureza del proceso electoral. Estamos esperando a que se tomen las medidas pertinentes que aseguren que el proceso electoral se pueda celebrar en el día de mañana en libertad y sin coacciones” . O conjuntivo é um modo verbal muito interessante. Eu interpretei a advertência como um anúncio eleitoral da rebeldia activa contra o governo espanhol (o facto é que, até então, meia Espanha nem estava informada das concentrações; depois da intervenção de Rajoy, muita mais gente saiu à rua); interpretei que esses factos poderiam chegar a ser uma escusa por parte do PP para deter temporariamente umas eleições perdidas. Precisamente por isso, refusei sair à rua a pedir explicações a um governo por outra parte alheio. Dias depois, Almodóvar declarou que essa noite o PP estivera a ponto de dar “um golpe de estado”; mais adiante retractou-se da sua intuição incomprovada. Do processo aberto polo PP contra Almodóvar pola sua pretensa acusação, nada se sabe.
Numa aplicação psicótica do Paradoxo de Grande-Marlaska, também 10 milhões de pessoas em Espanha teriam ameaçado o governo de Aznar quando clamavam que, se as tropas espanholas continuassem no Iraque, o terrorismo islamista poderia agir em Espanha, como fez. Por último, polo Paradoxo de Grande-Marlaska, pergunto-me se será ou não uma “ameaça para bloquear o processo de paz” a manifestação convocada no 10 de Junho pola Asociación de Víctimas del Terrorismo contra o diálogo de paz entre o Estado e a ETA. Será ameaça a Espanha a “realidade nacional” andaluza, mas não ameaça à Galiza a “Nación indivisible” espanhola? Em definitivo, desde as suas origens, a España monolítica apresenta-se a si própria como uma sociedade constantemente ameaçada, desde fora e, sobretudo, desde dentro: maçons, judeus, “moros”, “rojos”, operários, grevistas, “separatistas”, bascos, “terroristas”, comunistas, feministas, anarquistas, homossexuais, “afrancesados”, “lusistas”, ciganos, ateus, “islamistas”… You name it!, como se diz em espanhol. Será, pergunto eu, que essa perene sensação de ameaça às essências pátrias surge da falta de legitimidade histórica do Conjunto Booleano España?
Mas, enfim, por que algumas admonições sobre actos negativos futuros são ameaças e outras não? A natureza chave da ameaça reside na capacidade do ameaçador de fazer ou não o acto futuro. Portanto, é capaz Batasuna de cumprir a “ameaça” de “bloquear o processo de paz”? Para Grande-Marlaska, calculo, Permach ameaça porque ele ou o seu “contorno” são capazes de “bloquear o processo de paz” com actos de violência. Suponho que só isto tem em mente Grande-Marlaska, porque se “bloquear o processo de paz” significa não negociar politicamente, isso já o está a fazer o Estado Espanhol: a disposição visível por parte do executivo espanhol é negociar com ETA antes que com Batasuna; pode-se negociar com ETA, que é ilegal, mas não com Batasuna, que é ilegal. Se Grande-Marlaska já decidiu que Batasuna é ETA, o que não compreendo é que não encarcere os seus líderes de vez, porque qualquer opinião de Batasuna-ETA contra o Estado vai ser sempre um delito de ameaça terrorista: como o “delito de opinião” não existe em Espanha, haverá que chamá-lo “injúrias ao Rei” ou “ameaça terrorista”. Polo contrário, se Batasuna não é ETA, vaiam ou não à cadeia os líderes independentistas, não por isto haverá “bloqueio ao processo de paz”. A minha impressão é que, se ETA já decidiu deixar de matar, e o Estado já decidiu que ETA deixasse de matar, continuarão a negociar-se as condições da rendição militar, o último capítulo desta longa Guerra Civil Espanhola de 70 anos (os espanhóis amam as efemérides). Como a questão basca sempre foi tratada militarmente polo Estado, haverá mesa de partidos bascos também, mas não haverá nem reconhecimento do direito de autodeterminação, nem da “integridade territorial” de Euskal Herria, esses dous monstros que o espanholismo aduz sempre como as bases inamovíveis da estratégia do terror. Porque, afinal, trata-se de que as palavras dos manifestos e acordos do “processo” forneçam as escusas suficientes para ilusões a duas bandas. E já há passos nesse sentido: o comunicado da ETA do Março passado (Gara, 22 Março 2006, p. 3) repete a ambígua expressão “cidadãos [e cidadãs] bascos” como o agente principal do “processo”. Idos são, portanto, os tempos do nacionalismo étnico: todos sabemos que o cidadão é o sujeito político de um Estado. Mas, como o Estado basco não existe, quem serão para ETA esses “cidadãos bascos”? São “cidadãos bascos” os cidadãos de um inexistente estado basco? Ou os cidadãos dos estados espanhol e francês que são bascos? Eu intuo que o segundo, o qual implica um inconfessável reconhecimento por ETA do estatuto de cidadania dos bascos nos dous estados. Enfim, ETA saberá o que pensa dos seus “cidadãos bascos”, se é que pensa. Afinal, se tudo isto acaba em derrota da ETA sem direito de autodeterminação, terá-se demonstrado mais uma vez que ETA sempre foi uma cousa (um exército) e o independentismo basco outra.
Mas, voltando à responsabilidade nas ameaças, o Paradoxo de Grande-Marlaska consiste num estiramento vertical dos hilillos como de plastilina do sentido, pola zona onde “ameaça”, “advertência” e “aviso” mais se confundem. O Paradoxo de Grande-Marlaska, de inspiração preventiva, quer significar: “Para previr a violência, eu encarcero-te pola ameaça de dizeres que se te encarcerasse poderia haver violência”. O Paradoxo é paradoxal porque contém a impossibilidade da sua auto-comprovação, a impossibilidade de provar as relações entre a condição de advertência (“se somos encarcerados”) e os hipotéticos actos futuros de violência. Vejamos as possibilidades, supondo que o motivo alegado para o encarceramento de Permach fossem exclusivamente as suas palavras.
Primeiro, (1) suponhamos que Permach não fosse encarcerado polas suas palavras. Se depois (a) houver violência de ETA, esta não seria logicamente imputável às palavras de Permach, que condicionam o “bloqueio do processo” ao encarceramento. Contudo, temo que o PP argumentaria que apesar da cedência do Estado, a “ameaça” cumprira-se. E (b), se não houver violência da ETA, nunca se poderia demonstrar que as palavras de Permach foram uma ameaça incumprida. Contudo, temo que o PP argumentaria que o Estado cedera perante a “ameaça”. Conhecemos essa ladainha circular desse espanholismo.
Agora, (2) suponhamos que Permach sim que é encarcerado. Se nalguma altura depois (a) houver violência da ETA, alguns veriam uma relação causa-efeito. De qualquer modo, o Paradoxo de Grande-Marlaska seria a self-fullfilled prophecy, uma profecia auto-cumprida. Mas ficaria a dúvida razoável se a melhor maneira de previr o cumprimento duma “ameaça” é levar a cabo as condições para o seu cumprimento, sob uma interpretação particular das opiniões políticas como ameaças. Polo contrário, (b) se não houver violência da ETA, teria que admitir-se que não houvera antes qualquer ameaça nas palavras de Permach. E ele deveria ser excarcerado como imputado de uma ameaça inexistente. Mas, quando? Quando rompe internamente por ilógico o Paradoxo de Grande-Marlaska? Quando exactamente deixa uma ameaça incumprida de ser portanto uma ameaça?
Em resumo, na minha opinião, em nenhuma destas quatro soluções possíveis do Paradoxo de Grande-Marlaska, fundamentada no sofisma de que Batasuna é ETA, a identidade entre elas ficaria demonstrada fora de toda dúvida razoável. E a relação entre pretensa causa (“ameaça”) e efeito (“bloqueio do processo de paz”) ficaria também sem demonstrar. O problema é que, em política e nas ciências sociais, o tipo de relações a várias bandas entre palavras e actos é-che uma cousa muito rabuda de estabelecer. Uma cousa são as opiniões (como este texto), e outra os factos. A historiografia está cheia de “análises” que concebem estas relações como se falar e agir fosse comparável ao acto físico de atirar uma bola contra o chão e que ela rebote. Temos palavras e temos actos, coocorrentes ou em sequência; às vezes ambos procuram coaccionar aspectos da vida social; às vezes há ligações causais, às vezes não. E temos sangue ou não temos sangue, trágico sangue, bombas, disparos, cárceres e metralha, e muitas outras formas de violência. Sobretudo isso é o que temos ou não temos. A mim nunca uma palavra, nem as de um Rei, me feriu a pele.
Reflectir cuidadosamente sobre estas questões não só é um exercício de saúde: deveria ser um requerimento para juízes e políticos. Os meus alunos e alunas e mais eu debatemo-las nas aulas, sem acreditarmos na Verdade, e aprendemos como os humanos procuramos encarcerar-nos com a linguagem e sob a escusa da linguagem.