Enviado a Vieiros; não publicado
A única cousa sensata do discurso extraterrestre que está a proferir certa Caverna espanhola a respeito do novo Estatuto de Autonomia para Catalunha é a seguinte: que este “segundo golpe de Estado” perpetrado por PSOE-ERC contra a “Nación española” (o primeiro seria o de 1934) tem o apoio do rei. Com efeito, numa comemoração qualquer na Academia Militar de Saragossa, Juan Carlos de Borbón lembrou ao exército a “indivisível unidade” da “nación” espanhola e o seu próprio papel como servidor desta unidade. Bem, lógico, só são palavras. Mas, é que há desnecessário ruído de sabres ou está a Monarquia a dizer que Espanha vai bem? Porque qualquer leitura racional da proposta de novo Estatuto catalão leva, precisamente, nesta segunda direcção Real: Catalunha define-se como uma nação dentro do Estado espanhol. É mais: O Artigo 3 define explicitamente a submissão de Catalunha à soberania do Estado espanhol:
“ARTICLE 3. MARC POLÍTIC. 1. Les relacions de la Generalitat amb l’Estat es fonamenten en el principi de la lleialtat institucional mútua i es regeixen pel principi general segons el qual la Generalitat és Estat, pel principi d’autonomia, pel principi de plurinacionalitat de l’Estat i pel principi de bilateralitat, sense excloure l’ús de mecanismes de participació multilateral.”
Por sua parte, a Constitución espanhola faz recair a soberania ambiguamente ora na “nación española” (Preámbulo) ou no “pueblo español” (Título Preliminar, Artigo 2: “La soberanía nacional reside en el pueblo español, del que emanan los poderes del Estado”). Mas reparemos que os preâmbulos são declarações de intenções para contentar uns e outros, e o substancial é o articulado. No articulado, “pueblo español” é sinónimo de “ciudadanía española”, sem mais estórias.
Eu suponho que qualquer leitura não essencialista dos vocábulos “nación”, “nació”, “pueblo español”, “poble català”, “pobles de l’Estat” e outros relacionados nos dous textos deveria levar os juristas racionais à conclusão de que o novo Estatuto catalão não pode vulnerar a constituição espanhola, por duas razões. Primeiro, o Estatut só pode definir o âmbito e o sujeito da soberania catalã. Não poderia ser de outra maneira, polo seu próprio rango inferior à constituição de Espanha. Segundo, quando se refere à definição do Estado no Preàmbul, o Estatut expressa uma posição subjectiva de “Catalunha”, não um facto de lei: “Cinquè. Catalunya considera que Espanya és un Estat plurinacional”. Podemos perguntar-nos se tal peculiar expressão tem lugar num texto jurídico, mas dificilmente se pode argumentar que a expressão de um juízo não vinculante por parte de um colectivo seja anti-constitucional. Será, em todo o caso, anti-estatutário, por não poder ter qualquer efeito jurídico.
Destas premisas de submissão de Catalunha ao Estado como parte dele, o resto do articulado do Estatut detalha os direitos e deveres dos cidadãos de Catalunha, quer dizer (e com total transparência), dos espanhóis (cidadãos do Estado espanhol, com independência da sua origem) residentes em Catalunha: “ARTICLE 7.1. Gaudeixen de la condició política de catalans els ciutadans de l’Estat que tenen veïnatge administratiu a Catalunya. Llurs drets polítics s’exerceixen d’acord amb aquest Estatut i les lleis”. Isto quer dizer que não há qualquer contradição entre ser catalão e ser espanhol: ser catalão, é, de novo, uma forma contingente de ser espanhol. Decerto, o “povo catalão”, que poderia entender-se como um sujeito étnico, não civil, aparece cá e lá no novo Estatuto, mas não se lhe atribui qualquer papel especial (por exemplo, no exercício da soberania) além de ter preservado costumes, tradições e direitos próprios durante séculos.
Em resumo, como a Generalidade é estado espanhol, e exerce dentro do território de Catalunha em função da prioridade da legislação própria, a proposta não difere muito da antiga “administração única” do deputado Manuel Fraga Iribarne, excepto na retórica nacionalitária. Até a “prioridade” dada ao direito e à legislação de Catalunha sobre os gerais do Estado é vazia. Porque, ao estar submetida Catalunha à legislação geral do Estado, também qualquer díscola normativa catalã é e será susceptível de anticonstitucionalidade e, portanto, de nulidade jurídica.
Portanto, a definição de “nació” para Catalunha é (como talvez chegue a ser no caso galego) um nominalismo acadado como efectiva cortina de fumo para desviar o assunto fundamental do Estatut: a renúncia de facto ao direito de auto-determinação e de secessão. Decerto, Catalunha não renuncia aos seus “direitos históricos” (Disposició Addicional Primera do Estatuto). Mas a eventual actualização destes direitos fica subordinada à Disposición Adicional Primera da Constitución, que impõe o quadro da própria Constitución como limite para estes direitos. E a Constitución monárquica impede a secessão. Só após uma reforma da Constitución poderia Catalunha reclamar legitimamente a independência. Em resumo: Que melhor cenário para a direita espanholista que desenhou o regime monárquico como tampa para a secessão do que uma “nació” que, podendo reclamar a independência, renuncia à soberania para continuar fiel à Coroa?
Claro que, sabemos todos, o assunto de fundo não é a Nación nem a Nació nem a Nação, mas a pela, os quartinhos dos grandes dominadores. No Estatut, o complemento de um detalhado articulado em defesa de todo tipo de direitos dos espanhóis catalães a que nenhum verdadeiro liberal se poderia opor é, por uma parte, a definição do papel do governo catalão, claramente intervencionista em todos estes aspectos como suposto garante destes direitos. Vamos, nada novo: exactamente como o papel molhado da Constitución Española e de outras constituições liberais. Mas o verdadeiro contraponto é o articulado final relativo ao financiamento e aos tributos, onde “Catalunha” reclama o lógico direito liberal de contribuir para o Estado geral em função da sua população, do seu “esforço fiscal” e outros critérios, mas sem comprometer a sua posição económica. Com outras palavras: se sobrarem quartos, a empresa “Catalunha” será “solidária” com as outras companhias do Estado, mas o “nivelamento” não poderá rebaixar em nenhum caso a posição relativa de “Catalunha” no ranking das rendas per cápita do Estado (Artigo 210.d). Com efeito, por quê deveria sob o capitalismo uma “nação” muito produtiva do Estado pagar ou manter outras empresas-nação que produzem menos? De novo, “Catalunha” não poderia ser uma empresa mais liberal: para cada pessoa, uma série de direitos, um voto, um pedacinho de imposto, e que não no-los roubem outros. E os benefícios colectivos, para dentro (isto é, para os proprietários da “Nació”). Nem mais, nem menos. É isto o que assusta a improdutiva Caverna espanhola que quer continuar a chuchar fundos de todos roubados polo Capital sob a escusa da “solidariedade” e o “nivelamento”. O resto são farrapos de gaita.
Quanto a “Galicia”, talvez vá por um caminho semelhante: ser nación para continuar a ser empresa de España. Jogada mestra nesta longa baralhada: voltará a triunfar o Rei de Ouros e de Sabres. Os liberais do PSOE e do BNG estarão contentes. E os independentistas socialistas deverão repensar a que jogam ainda dentro deste partido. Romper o baralho real deveria ser o prioritário.