Publicado em Vieiros
O movimento linguístico-cultural galego está na altura numa encruzilhada mais evidente do que jamais antes na nossa história sociolinguística. O movimento linguístico-cultural, que leva anos ultrapassando na prática (polas suas iniciativas, o seu dinamismo e o seu compromisso activo) a actividade institucional e pára-institucional que promove a fragmentação cultural da Galiza, debate-se entre uma lealdade a certa tradição essencialista e diferencialista, e a absoluta e inevitável submissão à lógica das Línguas Nacionais na sociedade ocidental, burocratizada, capitalista, de classes. Não há vias intermédias na recuperação da língua como veículo de coesão social, de reconhecimento identitário, e de chamado “avanço” material dentro da lógica do mercado de símbolos. Estejamos ou não estejamos na Europa, o português é que está na Europa, minoritário dentro do Estado Espanhol, mas dominante quantitativamente na Galiza. Sobejam mais argumentos, mais definições, mais filologizações do conflito sociolinguístico, mais apelações às essências. A nação constrói-se, as classes constroem-se, as percepções sobre a língua constroem-se, as práticas linguísticas, culturais e literárias constroem-se. As redes de elites constroem-se, e, sobretudo, ré-constroem-se. Estamos a entrar, definitivamente, numa nova geração da língua, onde é fundamental a renúncia aos mitos e às letras, porque o tempo joga dia a dia contra nós, contra todos e todas os que, por origem, adscrição, vontade ou trâmite profissional fazem e fazemos da língua objecto, via, motivo, instrumento de trabalho e de acção.
A encruzilhada em que se debate o movimento linguístico-cultural galego é singela de descrever: Ou é promovida, regularizada, oficializada e naturalizada uma visão e versão do português galego que recolha elementos de uma recente tradição que teve e ainda tem o seu lugar na nossa resistência (basicamente, a proposta actual representada pola Associaçom Galega da Língua), ou abraça-se com o inevitável temor do novo a unidade linguística internacional como a única maneira de construirmos Língua Nacional. E há fortes valores ligados com cada uma destas opções, valores em oposição que sempre jogaram um papel fundamental nos movimentos sociais galegos. A nação não é uma declaração de intenções, mas uma prática teimosa e insidiosa de classificar-nos. A nação é o conjunto de práticas onde se reproduzem as formas do domínio. E seria absolutamente ingénuo procurarmos construir Língua Nacional sem construirmos os protocolos da classificação que a Língua implica. Devemos estar, em todos os níveis, em igualdade de condições contra a Lengua Española e o que simboliza, e junto a outros países, nomeadamente o mais próximo a nós, Portugal. Devemos construir e manifestar a nossa identidade cultural a respeito de Portugal e do Brasil, não da Espanha. Porque na história das nações o “nós próprios” nunca existe: só existe a diferença. Mas só se pode fazer isto se é com as mesmas regras e instrumentos simbólicos de jogo que o nosso país paralelo, os mesmos procedimentos de inclusão e exclusão, de intelectualização (a tradição é a invenção dela mesma polas letras), de lenta cocção da cultura. O mesmo tipo de símbolos, de máquinas produtoras de metáforas, o mesmo tipo de rigor arcano da linguagem. Devemos renunciar ao populismo como método.
É evidente qual postura defendo eu: a renúncia decidida a construirmos uma língua “distinta” na Galiza só porque e para que seja “distinta”. É inútil e nocivo lutar contra a língua. Mas reconheço, sem dúvida, a legitimidade do diferencialismo representado hoje pola posição actual da AGAL e algumas associações de base. Eu sou sócio da AGAL, a única associação profissional da língua existente na Galiza, com mais de vinte anos de vicissitudes, como tudo quanto se move. Precisamente polo seu carácter, é a AGAL que representa a tábua de salvação para muitos dos que ainda praticam a norma linguística institucional na Galiza. E é dentro da AGAL que se deve fazer a reunião de sectores. Eu sou contra a proposta actual da AGAL a respeito da língua, mas é essa e não qualquer outra proposta a que quero contestar. Porque é essa a encruzilhada real do projecto emancipador do movimento linguístico-cultural galego: ou língua portuguesa, ou língua portuguesa com algumas diferenças. O resto das práticas linguísticas e culturais disgregadoras que se dão na altura já são posições. E, como posições (institucionais ou pára-institucionais), o seu papel dinamizador e mobilizador cultural está a extinguir-se.
Mas o regresso de sectores na altura institucionalistas é possível. Intuo que grande parte do movimento linguístico-cultural estaria disposta a renunciar à defesa retórica da noção de “lusofonia”, se isto fosse necessário para o regresso da lucidez política a uma parte considerável da intelectualidade agora institucionalista, prisioneira de um discurso que não pode controlar. Este é, portanto, um convite ao raciocínio: Quando estão em jogo a necessária lucidez política para a unidade, e a cultura do país polo que se diz trabalhar, nunca é tarde para abandonar voluntariamente uma íntima e inconfessada sensação de derrota.