“Mi terrorismo”: Como as palavras denunciam a verdade

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Numa entrevista feita por Federico Jiménez Losantos em la COPE na manhã do 12 de Março passado, quando se propagandizava ainda sobre a autoria de ETA do massacre de Madrid, ao então candidato do PP Mariano Rajoy escapava-lhe um significativo lapsus linguae, que ele auto-corrigiu, mas que explica muito sobre o tratamento do “terrorismo” em Espanha. O tema era, como não! (uma vez “cancelada” a campanha eleitoral) por quem votariam os espanhóis o 14 de Março:

“Y éste [a eleição de voto] es un problema de confianza sobre el que se debaten los españoles, de a ver en quién puedo dejar… en manos de quién dejo esto: mi país, mi bienestar y mi terrorism- y y y y mi libertad y mi vida” (Arquivo sonoro: http://www.cope.es/audios/manana/entrevista2_120304.wma ).

“Mi terrorismo”. Com efeito, no confronto eleitoral entre “ETA” e “Al-Qaeda” em Espanha entrou em jogo a questão da delimitação do que é “próprio”: do que é o “nosso” terrorismo (e o que lhe convém ao Estado Espanhol) e o que é “alheio”. Não para só Rajoy, mas para a grande maioria dos habitantes do Reino, existe a convicção de que ETA representa o “nosso” terrorismo, o interno, enquanto Al-Qaeda representa o terrorismo alheio, o estrangeiro, e, assim, é denominado às vezes “terrorismo internacional”. A falácia desta dicotomia é evidente, mas funciona para reforçar a ideia de Espanha. Farei-me temporariamente espanhol e farei-me parte dum “nós” inexistente para explicá-lo.

Para começar, tanto os bascos como os árabes estão entre “nós”, em Espanha. Nas notícias sobre o 11-M distingue-se significativamente entre os detidos “marroquinos”, “árabes” ou “sírios” e os “espanhóis” (como se um árabe não pudesse ser espanhol, ou um espanhol árabe), às vezes com detalhadas etiquetas, como a de “hispano-sírio” aplicada a um cidadão espanhol desde há anos que nascera num lugar que se dá em chamar Síria. Se se argumenta que os atentados, nos que morreram tantas pessoas com passaportes estrangeiros, foram contra “Espanha”, é lógico concluir que os ataques por residentes e cidadãos espanhóis também vinheram desde dentro de “Espanha”: também foram feitos por “Espanha”. Com efeito, alguns dos implicados na matança são residentes legais de Espanha desde há muitos anos. Três deles têm um DNI expedidinho por procedimentos idênticos ao DNI de Rajoy, de Zapatero, de Otegi, ou o meu próprio. Portanto, ou “Al-Qaeda” é também em parte espanhola, como a ETA (e portanto é o “nosso” terrorismo), ou nenhuma é “nossa”: as duas são exteriores (Euskal Herria, o Islão) e atacam o estado que as ataca. Se ao nacionalismo liberalista espanhol lhe importassem um figo os estados (o Estado só deveria ser um gestor e garante da “liberdade”, sobretudo a económica), por que negar-lhe a espanholidade ao espanhol “de origem síria”, ou por que negar-lhes o seu contributo para o fabuloso progresso do país a esses residentes legais árabes, que durante décadas pagaram obedientemente os seus impostos na nossa sociedade de mercado? Semelhantes aparentes contradições deram-se nos EUA após o 11-S, para apresentar sempre o “terrorismo islâmico” como uma ameaça “externa” contra um Estado natural, essencial e nacionalmente infalível. Mas a evidência é que o atentado de Al-Qaeda foi um atentado espanhol, isto é: tão espanhol como os da ETA.

Ou, se não, tão pouco espanhol: Ou jogamos todos, ou rompemos o baralho. Com efeito, as duas redes assassinas surgem fora do país Espanha (a ETA, em Euskal Herria e Bélgica; Al-Qaeda, nos EUA e Afeganistão). Mas seguramente é mais próxima a Espanha (mais “nossa”) Al-Qaeda do que a ETA. E com isto quero dizer que o ideário (?) de Al-Qaeda é muito mais semelhante à ideologia cristã conservadora do que o ideário (?) da ETA. É curioso constatar o descenso brutal do terrorismo do fundamentalismo cristão não estatal nas últimas décadas em todo o mundo, excepto, por exemplo, nas recentes matanças em Uganda polo chamado Exército de Resistência do Senhor. Os terrorismos do estado de Israel, dos Estados Unidos e desse “actor não estatal” (como o caracterizam os think-tanks ultraconservadores) que é “Al-Qaeda” compartilham muito mais que as bombas. Compartilham sobretudo três cousas: o monoteísmo como inspiração ou justificação propagandística, a meta da expansão territorial, e a guerra santa como método para estes fins. Lembremos que a noção de “cruzada” é apenas adaptação duma interpretação parcial da noção muçulmana de jihad, que significa guerra contra outros, sim, se é necessário, mas também guerra interna (“revolução interior”) contra o Mal. Para o sionismo expansionista (não todo sionismo o é), o território de Israel deverá chegar até ao Éufrates e Tigris, em pleno Iraque actual. O Islão é nem mais nem menos que todo o imenso território do planeta onde há muçulmanos. E o território a conquistar pola cruzada capitalista cristã é o da “globalização”, pois já sabemos que o capitalismo é só a expressão moderna e genuína do cristianismo, particularmente do protestantismo. As três formas de terror, portanto, são a táctica que têm os três fundamentalismos político-religiosos principais do planeta para levarem adiante as missões dos respectivos povos elegidos. E resulta que “nós”, os espanhóis (repito o truque retórico), somos fruto destas três visões monoteístas do mundo. Israel, Al-Qaeda, EUA, deus uno e trino: Pai, Filho e Espírito Santo da trindade, em competência mútua polo papel a jogarem no planeta.

Porém, esta explicação ideológica a três bandas não satisfaz um importante aspecto da realidade: o económico. E a realidade é que o mundo em conflito na altura (o mundo a conquistar) é sobretudo as terras e mares sob os quais há ouro negro, um território que se estende do Sara Ocidental até Indonésia, passando por várias zonas “geo-estratégicas”. É assim de simples. Como podemos esperar que fenómenos da transcendência como o terror selectivo estejam desligados desta realidade económica? É lógico então que pensemos num jogo mixto de conflitos e conivências entre estas três variantes fundamentalistas polo controlo de recursos essenciais. Porque, quando a história de classes pus as suas cartas mais duras sobre a mesa, por exemplo durante o período hitleriano, demonstrou-se que os interesses económicos se sobrepõem à pretensa ideologia religiosa: judéus ricos colaboraram com os cristãos nazis ricos, muçulmanos ricos deram-lhes as costas muçulmanos palestinianos pobres, cristãos americanos ricos mataram cristãos alemães ricos e pobres, e assim por diante.

Entre o 11 e o14 de Março passados, à direita liberal e conservadora espanhola convinha-lhe que o inimigo fosse “interno” (mi terrorismo). À direita social-democrata, convinha-lhe que fosse visto como “externo”, só por necessária hidráulica eleitoral. Mas resulta que não há nada externo nem interno nestas duas formas de morte programada: as ordens para matar sempre vêm em última instância do capital. Se ETA sempre foi a escusa para a nacionalismo liberal estatal contra os interesses dos nacionalismos liberais subestatais por construírem estado, “Al-Qaeda” é o braço armado dum poderoso capital oleogárquico transnacional para atacar selectivamente estados, quer dizer, grandes corporações económicas.

Na entrevista citada, Rajoy tinha razão, mas devia ter-se auto-corrigido doutra maneira. Evidentemente, uma eleição “democrática” consiste em depositar o voto naquele grupo de poder que vai gerir melhor “mi terrorismo”. Rajoy deveria ter dito: “mi país, mi bienestar y mi terrorism– quiero decir, mi Estado”.

A transmissão da língua na família e nas classes

Publicado no Portal Galego da Língua

Se, como se descreveu num texto anterior ( “‘Osmose’ e redes sociais na transmissão da língua’: O papel dos locais sociais” ) a língua é um recurso (cultural, simbólico, material) que se transmite e circula por redes sociais, a pergunta básica é como abordarmos a sua transmissão nas redes centrais na organização do corpo social: a família. A família é a estrutura que reproduz (em vários sentidos da palavra) a hierarquia. As sequelas da família como experiência duram toda a vida, até gerações: arrastamos os cadáveres familiares como os povos arrastam a sua história. Nações inteiras arrastam o seu cadáver, até que o fedor pesa de mais e uns iluminados cortam o saco vitelino dos mortos e nasce algo novo. Quisera poder dizer que a transmissão da língua galega portuguesa que no nosso país está a perder o apelido é algo crucial para a emancipação social. Mas provavelmente não o seja. A transmissão intergeracional da língua, e a sua necessária revolução formal, são simplesmente sintomas de resistência. Quando um colectivo é incapaz de levar adiante o seu ideal, algo substancial fracassa. Não é obrigatório que essa utopia seja assumida por todos ao começo: pode-se construir nação dentro da nación, língua dentro da lengua e da lingua, e resistir confiando que os cépticos que ficaram fora escolham esta opção como a menos má para a sua pervivência. Mas, como fazer isto, desde que âmbitos, com que tácticas sociais, com que discursos? Eis a múltipla pergunta que nenhum activismo linguístico da Galiza aborda na altura, provavelmente porque não sabe como.

Ignoro muito sobre a estrutura social da Galiza e sobre a própria estrutura da família como para oferecer, até para mim próprio, qualquer dica plausível sobre essas perguntas. Mas alguns fáceis razoamentos sobre as relações entre língua e sociedade, e algumas fáceis metáforas, podem ajudar a compreender a situação.

Nas sociedades de classes, a língua é sempre um instrumento para o que se deu em chamar “avanço social”. O “avanço social” consiste simplesmente na mobilidade social ascendente, que se dá quando, na hierárquica geometria da sociedade, um próprio ou, sobretudo, os seus filhos, chegam a alcançar uma situação “mais alta” em termos de recursos económicos, capacidade aquisitiva, reconhecimento social e símbolos de status. Estes recursos (dinheiro e símbolos) são de distinta natureza e circulam de maneiras distintas, mas no circuito de mercado -explica Pierre Bourdieu- são até certo ponto formas intercambiáveis de capital: eu exibo língua (uma língua dada), e obtenho posição social. Como, exactamente? Uma via é através do valor de troco específico da Língua (reflectido, por exemplo, em títulos académicos de valor estandardizado) em certos âmbitos ocupacionais (ensino, burocracia, serviços de tradução, “indústrias da língua”, etc.). Outra via muito importante é através do reconhecimento dos outros, em redes específicas, da minha exibição de Língua como símbolo legítimo, e, portanto, através da abertura de possibilidades de trabalho, casamentos “ascendentes”, etc.

É lugar comum dizer que, na Galiza, a aculturação e assimilação à língua espanhola (que chamarei La Lengua para não confundir-nos) têm funcionado segundo esta lógica desde, polo menos, começos do século XIX: a perda de falantes de galego explica-se comumente como um processo polo qual La Lengua foi “descendo” desde as capas altas (burguesia – classes meias – classes trabalhadoras), que tentavam emular e aproximar-se das superiores. Mas esta explicação não pode dar conta de tudo do que está a acontecer. Como pode “baixar” socialmente uma língua desenhada para subir? Acho que algo falha ou algo falhou ao longo do processo, e tentarei expor por quê.

Distingamos, em primeiro lugar, os âmbitos rural e urbano. No âmbito rural, relativamente imóvel e estável durante séculos em termos de sistemas ocupacionais e de relações entre as estruturas sociais básicas (família e paróquia), o uso do galego era exclusivo ou muito dominante nas redes sociais densas (muitas pessoas interligadas por contactos frequentes), fechadas (sem novas incorporações habituais à rede) e multiplex (ligações estabelecidas em função de múltiplos tipos de relação social). Assim, o indivíduo A relacionava-se com B em galego porque eram simultaneamente membros da mesma família, do mesmo grupo de trabalho na exploração rural, da mesma paróquia. As fortes funções relacionais da língua no seio da família transferiam-se assim às redes do trabalho ou da paróquia. O objectivo do ascenso social limitava-se a melhorar as condições económicas de geração em geração, a enviar algum filho ao exército ou ao sacerdócio, ou a emigrar. Mas não havia verdadeiramente muitas expectativas de “avanço social” a meio de uma Lengua espanhola que era materialmente estrangeira e, além de uns poucos usos rituais, materialmente desconhecida.

Com a urbanização (desruralização), porém, vão-se modificar substancialmente as funções relacionais do galego e da Lengua espanhola. Na cidade interage-se sobretudo em redes abertas pouco densas (contactos mais ocasionais) e simplex (relacionamo-nos com alguém em função de apenas um tipo de papel social: amigo/a-amigo/a, empregado/a-chefe/a, etc.). E a língua neutra por excelência para estas redes urbanas é o espanhol. A emigração à cidade significa a possibilidade de “avanço social”. E para avançar não só há que falar espanhol, mas, sobretudo, há que falar espanhol aos filhos, na esperança, tipicamente, de que os varões consigam um trabalho melhor e de que as mulheres “casem bem” (em inglês diz-se “casar para acima”, to marry up), quer dizer, casem com um membro dum estrato superior que já fala espanhol (é reconhecido o papel mais avançado das mulheres na mudança sociolinguística, até para -evidentemente- a assimilação à língua dominante). Portanto, para estes propósitos, no novo âmbito urbano pode-se manter em galego a comunicação “horizontal” entre pai e mãe, mas a comunicação “vertical” entre pais e filhos deve ser em espanhol para estes adquirirem os recursos dos quais os primeiros carecem.

Ora bem, se este mecanismo de ascenso e selecção social funcionasse na Galiza (se La Lengua tivesse sido e fosse um instrumento para o “avanço social” ascendente), realmente não se estaria a dar a situação actual, com tal penetração maciça do espanhol nos estratos baixos. É paradoxal que uma língua dominante “baixe” quando a sua função social é facilitar que a gente “suba”. Tentarei de expor uma explicação possível a este aparente paradoxo.

Numa sociedade galega com mobilidade social real, idealmente, se a maior parte dum estrato ou classe galego-falante inicial educasse os seus filhos em espanhol para emular as classes urbanas superiores e para permitir os seus filhos se relacionarem em (fictícia) igualdade com elas, é de imaginar que muitos destes filhos ascenderiam socialmente: obteriam trabalhos melhores, ou “casariam bem”. Agora as classes meias, já espanhol-falantes, seriam algo mais largas. Mas como a mobilidade social continua “para acima”, os estratos superiores das classes meias espanhol-falantes também ascenderiam. Quanto mais arriba, mais acumulação de capital (de vários tipos) se dá, mas não mais Lengua. Assim, o resultado da função mobilizadora ascendente do espanhol poderia ser uma ligeira ampliação das capas meias espanhol-falantes, mas não uma acentuada penetração da Lengua para “abaixo”, pois o grosso dos falantes desta língua (La Lengua) estariam de cada vez mais “arriba”.

Continuando com a idealização, uma minoria das classes trabalhadoras assimiladas ao espanhol não ascenderiam, claro, e manteriam o status dos seus pais, mas falariam já espanhol. Mas o influxo galego-falante do campo à cidade deveria manter em proporções mais ou menos constantes a distribuição das línguas no seio destas classes trabalhadores: maioritariamente galego-falantes. (Além, não todo mundo se assimila: continuaria e continua a haver galego-falantes que transmitem o galego na família). Porém, evidentemente a distribuição estável por classes não é o caso actual: não há nem manutenção da língua nas classes trabalhadoras, mas perda gradual. No âmbito urbano, o uso do galego com os filhos é terrivelmente minoritário em todas as classes sociais. Mesmo entre os pais, as cifras de galego-falantes são muito baixas.

Portanto, por que não se dá a situação típica de função da Lengua para o ascenso social? Será porque as classes meias assimiladas e já espanhol-falantes “descem” de status de geração em geração? Ou será, antes, porque, apesar da tentativa de ascenso através do idioma, as classes originariamente galego-falantes que se assimilam simplesmente não ascendem? Os pais educam os seus filhos em espanhol para lhes fazer a vida social mais fácil. Mesmo quando a língua da casa é o galego-português, a vida na escola, claro, faz com que os meninhos adquiram o espanhol como língua de relação com seu grupo geracional. Mas os filhos, relativamente falando, afinal não ascendem socialmente. Alguns poderão ter, em termos absolutos, mais recursos e uma vida mais cómoda do que os pais. Mas, como grupo, vão ocupar o mesmo lugar social subalterno relativo e ocupações comparáveis às das gerações passadas. Não “baixa” o espanhol não: deixam de “subir” os novos espanhol-falantes! La Lengua prometida oferece-nos um famoso provérbio que resume cruamente esta situação: Aunque la mona se vista de seda, mona se queda. Esta miragem de falso ascenso social através do idioma reproduz-se em todos os níveis. E os poucos galego-falantes que ainda mantendo o idioma ascendem, não fazem massa suficiente como para se constituir em pontos de referência social para a emulação de condutas por parte dos que permanecem em estratos inferiores: a experiência dos galegófonos “com sucesso” também é excepcional, não paradigmática dum processo social.

Portanto, a causa primeira da perda acelerada do idioma na Galiza não é o próprio mecanismo nocivo e universal de selecção social a meio do idioma: é a falta de mobilidade social real, de dinamismo económico (e disto há dados macro-económicos evidentes), até dentro da lógica capitalista. A lógica capitalista na Galiza leva décadas, se não um par de séculos, a jogar com o famoso fraude comercial da “pirâmide” a grande escala: oferece socialmente investir em Lengua prometendo o ascenso, mas os que ascendem já tinham Lengua e posição alta de antemão.

Em contraste, em qualquer sociedade verdadeiramente “de mercado” onde existe dinamismo, grupos sociais definidos e coeridos por cultura, origem e/ou língua podem chegar a construir o que se chamam sistemas ocupacionais próprios: redes económicas, comerciais, empresariais levadas por membros do grupo, com reprodução da divisão vertical do trabalho, com elites ou proto-elites, com hierarquias sociais internas (como de facto ainda se dá no âmbito rural), com alianças comprometidas entre elas, e portanto com potenciais económicos que se estendem além das fronteiras da “minoria”. São estes grupos que podem ameaçar as “essências nacionais” dominantes, porque os estratos inferiores não precisam emular as condutas das elites da cultura hegemónica: já têm as próprias. Em certas zonas dos Estados Unidos, por exemplo, a língua espanhola chegou nos últimos anos a constituir-se em “ameaça” para a anglofonia dominante (até o ponto de se promulgarem leis restritivas tipo English Only) só quando os hispanos imigrantes e filhos de imigrantes (e descendentes de populações hispano-mexicanas originarias antes da anexação polos EUA) chegaram a constituir, com os instrumentos da sociedade de mercado, sistemas ocupacionais próprios coeridos pola origem, cultura e língua comuns. Não me refiro ao caso (também excepcional) do Miami dos cubanos exilados ou auto-exilados, mas ao de cidades como San Antonio, em Texas. Por contra, mencione-se na Galiza algum sector económico (além da indústria editorial e editorial) onde a língua de relação seja o galego-português, onde trabalhem maioritariamente galego-falantes, onde se dê “lealdade” em termos de alianças económicas endógenas , e onde tanto a força de trabalho como a do capital falem em galego e falem aos seus filhos em galego. Mencione-se algum fragmento de cidade galega onde se poda dizer que, económica e socialmente, isso é a Galiza, não España. Compostela, tal vez? E essa é Galiza, ou “Galicia”?

Em resumo, sem sistemas ocupacionais próprios galegófonos, lusófonos, onde as gentes trabalhem, sejam contratadas e se relacionem em função de relações próximas, familiares, de vizinhança, etc., e que funcionem com capital “galego” e identificação “galega”, as poucas experiências das empresas “galeguistas” (as que se apresentam “graficamente” como tais) ficarão em ilhas folclóricas que emitem as facturas em dialecto, sim, mas nas quais a língua que continuará a ser um vínculo e um recurso é La Lengua. E essa é na prática a língua nacional (la lengua nacional, evidentemente), não o totem idealizado e ideologizado do Galego.

Qual a tarefa, então? A tarefa é expandir essas redes urbanas de classes meias (comerciais, pequeno-burguesas) lusófonas, quer dizer, abrir uma cunha social ascendente que, como a famosa faixa central da “língua sande” que é o catalão (comprimido tradicionalmente entre duas talhadas de pão espanhol: uma, a alta burguesia e aristocracia urbanas hispanófilas, e outra as classes trabalhadoras imigrantes), sirva de ponto de referência para o avanço social. Não são as Zaras as que fazem país, mesmo se fossem galego-falantes: é o famoso tecido social e económico urbano. Estamos (se estamos!) polo menos vinte anos por detrás de países como Catalunha nesta tarefa. E é duvidoso que a Galiza poda fazê-lo com a força económica própria, sem relacionamento efectivo transfronteiriço com as redes económicas lusófonas onde a língua (quer dizer, agora sim A Língua) sim que funciona -dentro da aborrecível lógica que faz as nações- como instrumento para o “avanço social”: Portugal.

Em definitivo, é o âmbito da família, como principal canal de transmissão intergeracional da língua, que o activismo linguístico lusófono deve abordar com uma seriedade que até agora está ausente. Mas tentei dizer que a “família” é sobretudo um agregado primitivo de corpos cinzelados para o trabalho assalariado: uma fábrica que fabrica operários a base de Cola-Cao. E a “família” falará a Língua que lhe prometa, eleitoralmente (nacionalmente), o pão para os filhos.

Golpe económico de ‘Al-Qaeda’?

Publicado em Vieiros

Os resultados das eleições gerais espanholas podem ser fruto dum golpe do terror económico internacional. Uma série de circunstâncias faz pensar num plano detalhado de obscuros interesses, em última instância ligados à crise energética mundial e à luta (verdadeiramente) polo controle dos recursos: o petróleo é absolutamente crucial para a indústria pesada, incluída a armamentística. Dentro da obscena lógica do capitalismo internacional, a matança de Madrid é um sintoma de que, na guerra económica, as oligarquias devem respeitar certas regras de jogo, polo seu próprio benefício. Enumero apenas alguns dados e hipóteses, para que quem tiver mais inteligência, as ligue e extraia conclusões. Tudo isto é tão especulativo como grande é a minha ignorância de muitos factos. Em todo o caso, quando se dão eventos históricos desta magnitude é legítimo perguntar-se: A que interesses beneficia a nova situação?

Concorrem nestes acontecimentos vários factos recentes. Podem ser coincidências, ou pode ter sentido ligá-los. Em 5 Dezembro 2003, dous dias antes das eleições parlamentares russas, uma potente bomba estourou num trem de proximidades em Yessentuki, em semelhantes circunstâncias às do massacre de Madrid. Eram as 7:45 da manhã. No ataque morreram mais de 40 trabalhadores e estudantes. A explosão destroçou parte do trem em maneira semelhante à das bombas de Madrid. Discutiu-se se fora um ataque suicida ou uma acção por controle remoto. Putin atribuiu o atentado a “separatistas chechenos”. Nunca se soubo quem fora. Dous dias depois, Putin ganhou esmagadoramente as eleições. Em 29 Dezembro foi detido um tal Israpilov como implicado nos ataques. Encontraram-se-lhe explosivos e material para estourar bombas por controle remoto. Em 2001, o Ministério de Interior espanhol informava que alguns dos detidos de “Al-Qaeda” tinham ligações com o terrorismo checheno. Há pouco detiveram-se ainda mais membros de “Al-Qaeda” (dos quais se falou muitíssimo menos que dos da ETA). Em 12 de Março informava-se que agora mesmo o exército EUA está a realizar operações em Algéria contra as brigadas salafistas, que têm membros residentes em Grã Bretanha, França e Espanha. O massacre de Madrid tivo lugar no dia 20 Muharram 1425 no calendário religioso islâmico (de base lunar, não solar), exactamente no aniversário islâmico das grandes manifestações em Espanha e todo o mundo contra a invasão de Iraque (23 Março 2003, isto é, 20 Muharram 1424). Curiosamente, o vídeo de Abu Dukhan Al-Afgani (“Pai do Fume, O Afegão”; Gebel Abu Dukhan é o nome duma montanha em Egipto) que reivindica o atentado, refere-se a um aniversário cristão (“Dous anos e meio depois” do 11 S), o qual faz duvidar do carácter fundamentalista religioso dos autores, da verossimilhança do vídeo, ou de ambas cousas. Em qualquer caso, ao dia seguinte do massacre, milhões de pessoas saíam de novo à rua no Estado Espanhol contra o terrorismo, quer dizer, contra a guerra. Dous dias depois, as eleições espanholas forçavam um novo governo.

As circunstâncias políticas dos países da “aliança” também merecem comentário. Parece que, pouco antes dos atentados, o Partido Popular estava a perder pontos e até a maioria absoluta. Mas para nada estava assegurada tal vitória do PSOE. Por sua parte, o Partido Republicano dos EUA já começara a sua campanha eleitoral capitalizando a mensagem antiterrorista até com imagens do remoto 11 de Setembro 2001. Mas existe também a impressão de que pode ganhar o candidato democrata, John Kerry. Portanto, de cumprir-se alguns prognósticos, sem o atentado de Madrid poderíamos encontrar-nos com um binómio Kerry-Rajoy, não já com o tandem Bush-Aznar. E Blair está também debilitado. Bush representa a possibilidade duma nova intervenção em oriente médio (Irão, Síria) polo controle dos recursos energéticos. Kerry pode significar um hiato táctico na campanha de terror contra o Golfo Pérsico, um hiato no qual, sem abandonar o Iraque, os interesses se dirijam agora a África Ocidental, com grandes reservas de petróleo ainda sem explorar (sem dúvida um novo “golfo pérsico”, como alguns analistas o chamam, mas sem as turbulências daquele). África pode ser, por uma série de razões, um alvo militar e económico muito mais fácil para o capital ocidental.

A presença de tropas ocidentais em Iraque garante o estabelecimento duma “constituição democrática” que ameaça as famílias oleogárquicas do Golfo. O “efeito dominó” dos ataques de Madrid pode acelerar a retirada de tropas ocidentais de Iraque, uma situação mais aproveitável para o “fundamentalismo islâmico” (quer dizer, os oligarcas sauditas, “Bin Laden” incluído). Certo, a possível presença de tropas conjuntas da ONU no Iraque não elimina totalmente o risco de ataques em países ocidentais. Mas é possível que a nova constituição definitiva (?) que surgir das eleições em Iraque (não antes de finais de 2004) tenha muito pouco a ver com a provisória actual. Em todo o caso, uma “democracia” no Iraque debilitaria a autocracia saudita, por exemplo, e certos opressivos valores do “Islão” em que se escuda a sua forma de dominação.

A tragédia de Madrid e o resultado eleitoral em Espanha podem precipitar uma reconfiguração das peças na guerra económica internacional. A retirada das tropas espanholas poderia relaxar a ameaça de mais atentados em território espanhol: simplesmente, o terror é uma táctica, não um estado permanente de cousas. Mas é claro que outra parte beneficiada é “Al-Qaeda”. O ataque demonstra que, quando se vulneram flagrantemente as regras da guerra santa entre as grandes famílias económicas (uma vulneração que começou muito antes do ataque do 11 S 2001, que pode ser interpretado como uma advertência perante um plano já pré-desenhado dos EUA para invadir o Afeganistão) pode haver terríveis consequências. A capacidade de pressão do “terrorismo islâmico” é, neste sentido, muito grande. O petróleo está fundamentalmente sob os “seus” territórios, nos “seus” países. Os interesses de “Al-Qaeda” não são só recuperar os “seus” territórios (todo o Islão!, incluindo o Iraque) para reestabelecer um regime teocrático medieval, mas também ter bons clientes petroleiros entre os países industrializados: a China, cliente de Irã; Europa e Rússia, clientes do Iraque; EUA, cliente de Arábia Saudita. Donos do seu petróleo, os oligarcas poderiam negociar mais facilmente com uma Europa mais dócil militarmente (Alemanha, França, uma Espanha reincorporada, uma Rússia de Putin) do que o fazem com o ávido eixo anglo-saxão. E a sua mensagem é que, se a voracidade do grande capital industrial de Ocidente deseja este petróleo, agora que só restam tão poucas décadas dele, deve aprender a pedi-lo e a negociá-lo, sobretudo quando as famílias oligárquicas da região têm de garantir também a sua distribuição para os próprios interesses da sua classe. O capital industrial americano, por exemplo, deverá diversificar os seus alvos de “segurança energética” (algo explícito, além, nas próprias recomendações dos think-tanks conservadores americanos), olhando para a África e para a América do Sul. Por isso, espero atinar com a hipótese de que “França” ou “Alemanha” não são objectivos de “Al-Qaeda” na altura. E espero que esteja errada a hipótese de que sim que o são “Grã Bretanha”, “Itália”, “Polónia”, “EUA” e “Austrália”, estes dous últimos, com próximas eleições em finais de 2004.

Com a invasão de Iraque, o sector hegemónico do capital espanhol (“Aznar”) apontou-se a uma viragem arriscada: favorecer-se dos EUA para as contratas petroleiras em Iraque, e talvez para a exploração do possível petróleo das Ilhas Canárias e do seguro petróleo frente à costa do Sara Ocidental, calculando que dentro do clube de Europa não poderia competir com economias mais fortes polo reparto dos recursos. Numa ocasião, dantes da invasão de Iraque, Aznar disse-lhe a Zapatero no parlamento: “Se você estivesse no meu lugar, faria o mesmo”. O apoio de “Espanha” aos “EUA” era, portanto, uma questão de Estado: de assegurar-se o acesso aos decrescentes recursos por décadas por vir. Essa política está a fracassar tragicamente, com milhares de mortes no Iraque, Marrocos, Turquia, Espanha. Agora o relativamente modesto capital industrial espanhol deveria restaurar alianças com o europeu, sem pretensões de grandeza económica, e com muita cautela perante os actuais e futuros detentores do petróleo mundial.

Mas provavelmente ainda restem muitas décadas de tragédia: até que dure o petróleo. No entanto, como sempre, será a gente de toda parte quem continuará a pagar o piche com sangue.

Aquelarre

Publicado no Semanário Transmontano • No Portal Galego da Língua

Depois da Grande Finale eleitoral de hoje, há jogo o domingo em España. Eu vou jogar, vou votar, vou introduzir entintadas papeletas num féretro pequeno donde sai o fumo dos ausentes. São féretros que cheiram a Iraque, Palestina. Levam as letras de Alá em tinta de petróleo. Os versículos do Al-Corão chegam à tua casa em recolhidas papeletas. Cada profeta canta as suas virtudes na única Língua do universo. São todos enormes ídolos masculinos, representados sem imagens, representados por palavras sagradas. Vou votar no dia 23 do mês de Muharram do ano 1425 após a Hégira do profeta, no sonoro 14-M 2004 após a Morte do profeta, que era o mesmo ser monstruoso. Vou votar contra mim próprio, pois cada partido ao que vote é contra mim próprio, cada brigada de Abu Hafs Al-Masri reencarnada em brigada eleitoral, ou viceversa, que são todos o mesmo ser monstruoso, com várias cabeças comparáveis e uma única devoração unánime. Vou votar a parte desse monstro, aquele que ainda não me devore a ilha de utopia que sobrevive no meu centro. Vou votar contra a palavra, com o absoluto silêncio dos altivos vencidos, vou votar na silenciosa língua portuguesa que hoje representa por puro acaso o mar dessa inútil utopia: vou votar sem língua, como as alimárias primitivas. No dia 23 do primeiro mês de Muharram quando Mohammed se expulsou a si próprio da Mecca como um Cristo do deserto para maior glória da vesânia, vou alimentar orgulhoso as filas do silêncio, orgulhoso da inútil resistência. Porque não quero ser esse dia ainda mais resto de mim próprio. Vou votar em preto, em piche e sangue, que são as duas cores das entranhas dos seres primitivos. E essa noite celebrarei com ânsia o banquete das cifras, e trocarei sons guturais com os outros amigos derrotados, e celebraremos o aquelarre, e esperaremos pacientes outra guerra refugiados debaixo dos tanques que são as casas, as garagens clandestinas, onde naufraga o amor, o sexo, que são o mesmo prelúdio da morte. E serei feliz, como hoje, como todos os seres primitivos. Aberta a boca ao alimento, enfrente do ecrã e dos pálios, aberta a boca enorme ao alimento.