“Osmose” e redes sociais na transmissão da língua: O papel dos locais sociais

Publicado no Portal Galego da Língua

Assistim ontem a parte do interessante I Fórum da Língua organizado polo Movimento Defesa da Língua, com a presença de numerosos colectivos luso-reintegracionistas do país. Estivem como público nas sessões sobre ensino obrigatório da língua, e sobre locais sociais. Uma das preocupações condutoras do que ali se falou referia-se, naturalmente, à questão central do luso-reintegracionismo: como espalhar o uso da língua! Isto foi explícito na intervenção de Ignácio Orero, o representante da Fundaçom Artábria na mesa sobre locais sociais: ele perguntou retoricamente pola (inexistente) “fórmula mágica” para promover a ré-galeguização. A experiência comum relatada por várias associações é que a tímida transmissão do idioma entre os jovens espanhol-falantes ou neo-falantes que acodem aos locais se dá por “osmose”, e que uma “osmose” semelhante se dá também entre os próprios activistas da língua nos locais, que vão incorporando-se ao luso-reintegracionismo gradualmente, por pura “naturalidade”.

Com efeito, esta “osmose” é parte consubstancial no processo de naturalização social do idioma. Mas, em que consiste exactamente este processo, do ponto de vista sociolinguístico? Como se pode incidir nele? Como se pode acelerar a transmissão no trabalho de base?

Para abordar este processo, é fundamental compreendermos, focarmos e privilegiarmos a noção de rede social ou retícula social, e compreendermos também o valor da língua como recurso transmitido socialmente. Uma rede social é um conjunto de pessoas ligadas por relações sociais mais ou menos habituais, e conectada com outras redes por linhas mais ou menos fortes ou débeis de relação também social. Cada pessoa faz parte de múltiplas redes sociais interligadas. Teoricamente, cada um(a) de nós pode ser concebido/a como o centro de uma rede, que conecta com outras. Frente à noção de grupo, que destaca o indeterminado (um “grupo” é como um conjunto de pontinhos movendo-se soltos dentro dum círculo, dum “conjunto boleano”), a noção de rede destaca a relação e a troca e circulação de recursos: materiais (como objectos, bens) e simbólicos (valores culturais, ideologia, língua). Uma rede pode ser vista, assim, como um conjunto de pontinhos (pessoas) ligados por linhas que simbolizam a sua interacção mais ou menos habitual ou mais ou menos frequente. A maior interacção entre as pessoas, maior reforçamento das linhas de relação. E, enquanto o solapamento de “grupos” consiste na sobreposição desses círculos, desses “conjuntos boleanos” a que algumas pessoas “pertenceriam” e outras não (como se “pertencer” a um “grupo” consistisse em levar um boletim de identidade no cérebro), a ligação (mais ou menos débil ou forte) entre redes descansa no agir dos indivíduos em mais de um esquema de relações bi-direccionais. Contrastem-se estas duas representações dos “grupos” e das redes:

Representação de dous "grupos" sociais
Representação de duas redes sociais

A transmissão da língua e da cultura ao longo destas redes só ocorre e só pode ocorrer a meio das práticas sociais, que são sempre, práticas de intercâmbio de algo: actividades conjuntas, conversas, o empréstimo dum objecto cultural (livro, revista, música, software), que adquire assim um valor simbólico: não é só o livro físico o que se troca, mas o que contém, e até parte da história do seu itinerário de circulação. Por exemplo, amiúde estamos tentados a aceitarmos mais facilmente um objecto cultural que chega de uma pessoa “de confiança” do que o mesmo objecto se chegasse dum desconhecido ou dum “adversário”, porque o objecto transporta com ele o simbolismo duma cadeia de relações. Certas seitas religiosas sabem isto muito bem!: deixam-che na casa um livrinho, que nem lês, mas que é pretexto simbólico para a breve conversa que tivestes na porta e para futuras conversas esperáveis sobre o mesmo pretexto. A Opus Dei totemiza o seu Camino como objecto de troca, e nos grupos dos partidos marxistas circulava e/ou circula o Livro Vermelho de Mao, o Que Fazer, o Marta Harnecker…

A “osmose” na naturalização social da língua é fruto, portanto, da circulação de recursos (incluída a língua) entre participantes duma rede social, e da sua eventual passagem para outras redes. Por isso, a presença de materiais lusófonos e lusógrafos nos locais sociais (já não materiais “galegos”, mas galego-portugueses) é, como veremos, crucial para a transmissão do reintegracionismo.

Acho que é fácil, portanto, compreender a função da circulação de recursos quando estes são materiais. Ora bem, como entra especificamente o recurso e prática da fala neste processo? Visto que a fala não é “material” (as palavras têm uma base física acústica, claro, mas não são permanentes), como se “distribui” então a fala ao longo das redes? E para que serve?

Com efeito, quando eu falo em galego-português (“galego reintegrado”) não transmito materialmente nada: depois de escutar-me, o meu ouvinte não “possui” materialmente nada novo. Se era dominantemente espanhol-falante, não deixa de ter esta competência em espanhol. E, sim, se era também galego-falante, aspectos da minha competência –um uso linguístico, uma construção, um pedaço de calão– podem ser assimilados por ele/a, e repetidos posteriormente. Mas nada disto é material. Em função de que processo social, então, podem estes actos de fala contribuir para espalhar o idioma entre falantes não habituais, se, afinal, a escolha de um ou outro idioma vai continuar a ser um acto individual? Um livro em português que nos emprestaram há que devolvê-lo, e contribuir assim para o reforçamento das relações de rede. Mas, uma conversa escutada em português há que devolvê-la também?

É aqui onde entra a noção de prática social, e da fala como prática. Frente a um acto individual (como escovar-se os dentes, por exemplo), uma prática social é um acto que manifesta valores colectivos, sempre interpretáveis no contexto (modernidade ou “tradição”, utilidade ou inutilidade, camaradagem ou hostilidade, normalidade ou anormalidade, urbanidade ou ruralidade, resistência ou acomodação, poder ou subalternidade), manifesta também ideologias e fragmentos de identidade(s), relaciona indivíduos e portanto cria e reforça redes, e (de maneira fundamental) cria expectativas sobre as próprias formas das relações futuras, incluída a língua utilizada. Por exemplo, se certa conversa de grupo se desenvolveu maioritariamente em galego, a língua associa-se de maneiras subconscientes a outros componentes da situação: as pessoas, o lugar, o momento, o tema, o tom ou “humor” geral, os objectos manipulados como recursos (bebida ou comida, revistas), etc.

Neste sentido, é frequente –e por isso é fundamental para a naturalização do idioma– o facto de a língua utilizada numa primeira interacção com uma pessoa ser com frequência a língua dominante dessa relação, quer dizer, desse fragmento de rede. O interlocutor associa aspectos da prática do falante com o contexto, e também com aspectos da “identidade” do outro falante e da sua “ideologia” (dos valores que dão certo tipo de coerência aos seus actos). Certo, a “identidade” não pré-existe: não somos o que “somos”, mas o que fazemos que somos (“somos” muitas cousas à vez, mas fazemos-ser algumas destas cousas selectivamente). E, certo, a “ideologia” não se vê: faz-se também, através das práticas. Mas, precisamente por isso, na mente do nosso interlocutor (que é onde se constrói o social), geram-se expectativas não só sobre como nos vamos comportar no próximo encontro (que práticas vamos levar a cabo), mas também sobre quais serão as próprias práticas sociais mais adequadas dele ou ela. E assim, em encontros posteriores, o que se vai “trocar” entre as pessoas vão ser também as palavras que se ajeitem a essas expectativas de conduta. Inclusive nos casos em que ambas pessoas sejam no fundo (por extracção linguística) espanhol-dominantes, se a sua primeira conversa foi em galego, é muito possível que esta prática do galego se mantenha entre eles… se o contexto continua a ser favorável.

Mas, o que fazer precisamente para que esse contexto continue a ser favorável? Porque, o que acontece numa situação bastante gueotizada do galego, é que as ligações entre o conjunto de redes jovens galegófonas e o conjunto de redes sobretudo hispanófonas são muito débeis. Quer dizer: Existe uma “fronteira” na ordem sociolinguística que consiste em que amiúde as práticas galegófonas dos locais sociais e outros âmbitos restritos não transcende para outros âmbitos porque não há suficiente fluidez e sobreposição de redes: numa cidade, os poucos jovens galegófonos reintegracionistas são simultaneamente membros da mesma associação cultural, do mesmo grupo de amigos, do mesmo grupo político. Fazem-se, portanto, redes densas (e intensas), mas pouco ligadas com outras. Os contactos com outros tipos de pessoas são mais débeis e ocasionais. E, embora a prática monolingue continue fora da rede “guetoizada” por parte dos indivíduos, não existe Aí Fora (fora das paredes do local social) suficiente densidade de práticas galego-falantes como para produzir a “osmose”. Por contra, os outros “guetos” dos jovens espanhol-falantes que se reúnem noutros lugares não são tão guetos: as suas práticas (a língua) encontram-se e contribuem para consolidar outras redes sociais: familiares, profissionais, do mundo público, e, sobretudo, da grande rede social que é o imaginário colectivo de “España”.

A questão fulcral, portanto, é como ampliarmos gradualmente as mais escassas redes jovens onde domina o galego, e conseguirmos que a fala e os recursos de língua associados (escrita, música, cinema, software) ultrapassem essa fronteira invisível. A questão não é só que os locais sociais cresçam por dentro, mas que as suas práticas e significados saiam fora. Estas duas gráficas poderiam representar idealmente o começo do processo:

Uso das línguas em duas redes
Transmissão da língua ao longo de redes

Em circunstâncias favoráveis, com o estabelecimento de novos contactos pola rede lusófona, a prática da fala deveria estender-se. Nas circunstâncias mais desfavoráveis, não aconteceria nada novo. Mas uma cousa é evidente: a fluidez entre redes não pode ser negativa para a lusofonia, pois em geral a prática monolingue entre essas redes está tão assente que, a partir desses centros de irradiação da língua, não haveria risco de experimentar o processo contrário (assimilação ao espanhol).

Para favorecer este processo ideal, a circulação de recursos que acompanha a fala lusófona deve ser suficientemente cativante para os membros das outras redes como para que, de pouco a pouco, poda ser alternativa efectiva às culturas anglófona e hispanófona dominante. Deve produzir-se uma identificação crescente entre estes recursos lusófonos e o imaginário da “Galiza”, e, mais ainda, da “Galiza jovem” (e mais ainda, duma Galiza internacional!), sem por isto exigir uma total viragem na adscrição social (identificação) dos neo-falantes. O negativo “efeito gueto” reforça-se quando determinada prática (a fala lusófona) vai indefectivelmente unida a uma dada “ideologia” e a uma dada “identidade” que se tornam em contra-senhas de adscrição. Por exemplo, quando um neo-falante potencial não compartilha aspectos importantes das “ideologias” e “identidades” dos seus interlocutores numa rede galegófona fechada, e quando estes valores estão ferreamente unidos à prática da língua, pode ser mais fácil para o neo-falante potencial assinalar e destacar o seu posicionamento não mudando de língua: mantendo-se no espanhol. E, de maneira complementar (ainda que poda soar paradoxal), em circunstâncias específicas a prática monolingue em galego sem fissuras perante um neo-falante potencial pode não ser a melhor táctica para um necessário reconhecimento mútuo e posterior convergência na lusofonia: falar a linguagem da outra pessoa às vezes transcende falar numa língua dada, e certos usos muito pontuais e simbólicos do espanhol podem favorecer uma inicial linguagem comum.

Em conclusão, é tarefa das associações de base e locais sociais desenharem as tácticas concretas para a consolidação, alargamento e ligação das redes lusófonas habituais, também fora dos locais. Para começar, precisa-se, acho eu, duma quantidade maciça de materiais lusófonos e lusógrafos atraentes que veiculem as relações sociais, face a obter-se uma maior visibilidade da língua como referente natural das culturas urbanas. É importante, por exemplo, que destes materiais se vá destilando e utilizando a necessária linguagem específica (o calão jovem) que veicule novas relações de rede. Estas utilizações simbólicas das gírias luso-brasileiras, inseridas na fala galega e até no espanhol, invocam inconscientemente um distinto imaginário.

E para isto também se precisa, sem dúvida, da articulação efectiva com outras redes lusófonas sólidas ali onde se dão com toda naturalidade: em Portugal (por pura proximidade geográfica e social). O intercâmbio de actividades e visitas de pessoas com outros locais sociais e associações de base de Portugal, por exemplo, seria um bom instrumento para as associações contribuírem para a construção dum novo imaginário com base real (não apenas mítica), talvez mais efectivo do que qualquer umbiguista acto minoritário no que estão ou estamos os de sempre.

Apesar de que dalgumas perspectivas se queira negar, do que estamos a falar é em definitivo do contributo “de abaixo” para a construção duma língua nacional, até quando por ideologia se recuse chamá-la assim. Porque uma língua nacional não é a língua duma “nação”: é uma língua internacional. Evidentemente, sem trabalho de elite “de acima” por parte das instituições, partidos e “grupos” (quer dizer: redes!) dirigentes, nunca haverá língua nacional neste país. Mas, se por acaso se está a caminhar nessa direcção, quando a situação madurar (digamos, daqui em vinte anos), se não houvo antes caldo de cultivo “de abaixo”, poderá existir tal vazio de língua portuguesa nos grupos mais jovens que se encontrará maioritariamente ainda mais resistência a ela do que agora.

Mas esse é um segundo capítulo por escrever. Se há interesse, também o podemos debater.


Do Iraque a São Tomé: Preparando uma longa resistência

1. A crise energética mundial

Temo-me que este texto poderia ter sido escrito há anos (talvez décadas), ou poderá ser ré-escrito no futuro por vir. O projecto de controlo dos recursos energéticos mundiais polas oligarquias ocidentais -sobretudo as que só tangencialmente se podem chamar “dos Estados Unidos”, pois as principais Raças que dividem o mundo são a classe e o género, não a nação– é logicamente longo, detalhado, cuidadoso, consciente, sério e evidentemente responsável. Ao longo da história, nenhum grupo dominante deixou de preservar por todos os meios possíveis os seus interesses já não para eles próprios, mas para os seus descendentes e herdeiros sociais. A iminente escassez dos recursos energéticos pesados é uma evidência tão clara que só uma cegueira colectiva pode levar a subsumir os motivos de muitas “guerras” actuais sob escusas ideológicas. Diversas fontes indicam que, ao ritmo actual de produção petrolífera, e para as reservas que se conhecem, ao planeta lhe restam uns 50 anos de petróleo. As reservas dos EUA durarão 10 anos; as do Reino Unido, 5. As de Arábia Saudita, mais de 100. Mas, em toda lógica, uma vez acabadas as reservas num lugar, e com o crescimento económico exponencial, a produção dos jacimentos restantes deverá aumentar, e esses 100 anos da Arábia Saudita ficarão em menos. Mesmo se se acharem novos jacimentos e se melhorarem as técnicas de extracção (na altura aproximadamente a metade do petróleo é desaproveitado no processo), estamos a falar só de décadas (não séculos) de reservas. Nas páginas excelentemente documentadas de Planetforlife (http://planetforlife.com/OilPeak.htm ) mostra-se como a curva de reservas mundiais de petróleo e gás descerá a partir de 2010, e em 2050 as reservas estarão à altura, aproximadamente, das de 1965:

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Mas, reparemos, as necessidades energéticas mundiais em 2050 serão muitíssimo maiores do que em 1965! Estes são arrepiantes factos, não uma alucinação dos ideólogos da conspiração. O horizonte da “segurança energética”, como o discurso económico conservador o denomina, está muito próximo: a escassez de petróleo atingirá, se não os meninhos de agora, sim os seus filhos. Planetforlife situa este horizonte em 100 anos: “Um mundo sem petróleo não é o futuro que imaginam a maioria dos americanos, mas é um facto. Precisa-se uma visão de longo prazo: sobre 100 anos”. “Longo prazo”, cem anos? 100, 70, 50 anos, pouco importa: isso não é nada na história duma classe. Quantos séculos durou a nobreza feudal? E quantos poucos levamos de capitalismo industrial?

No massacre de Cosova e Jugoslávia não transparentaram tão claramente os interesses económicos, também conectados dalguma maneira ao acesso ao petróleo de Ásia Central. Mas, no rosário de simulacros cada vez mais sofisticados em que consiste o imperialismo militar ocidental, o capital chegou ao seu mais alto grau de transparente cinismo. O necessário consenso popular constrói-se agora polo reconhecimento explícito das causas das invasões militares. Enquanto na segunda guerra do Golfo, perpetrada polo pai de Bush simplesmente como representante da óleo-garquia americana, o motivo explícito era a “libertação” dum país (Kuwait) patentemente invadido polo exército doutro tirano, nesta terceira “guerra” de Iraque que continua, as conexões com os interesses económicos saem à luz da maneira mais evidente.

Ignoram-se ainda as intenções exactas da atrocidade das Torres Gémeas de Nova Iorque. Sabe-se que os fundos para essas acções vinham da Arábia Saudita, e que o entramado principal que suporta a metáfora de “Ben Laden” é também a Arábia Saudita, país extraterrestre no seu ordenamento jurídico e na coalescência entre a religião, o estado, a classe e a enorme família dos Saud, e paradigma do fascismo petro-monárquico. Sob o chão expoliado polo estado de Arábia Saudita acha-se a maior reserva de petróleo do mundo. Sob o chão expoliado polo sempre militar estado de Iraque acha-se a segunda. A economia dos EUA depende na altura num 54% de petróleo estrangeiro. Em 25 anos (se ainda há mundo) dependerá num 70%. O panorama é apavorante, não nos enganemos. Um pergunta-se em que medida se podia sentir de pressionada a oligarquia saudita sabendo que era a principal fornecedora do seu regime aliado americano. Até quando poderiam continuar a subministrar petróleo? E quanto restaria para eles próprios, para a perpetuação da sua casta? Embora pareça irónico, tanto o ataque de Nova Iorque como a conquista de Iraque para a libertação das suas grandes reservas de petróleo resultam positivos para Arábia Saudita: no jogo do capitalismo, o melhor que podes ter é um bom competidor, que será o novo petróleo de Iraque quando saia maciçamente ao mercado, agora pago em dólares. Voltará a baixar o euro.

2. O novo cenário de África Ocidental

Quanto à visão do actual regime norte-americano, a sua lógica não tem fissuras. É o pensamento conservador de sentido comum mais enraizado nas masculinas hierarquias familiares: Há escassez de arroz entre os vizinhos do teu prédio. Se tu tens mais poder, e observas que o teu vizinho tem mais arroz, mas vende-lhe-lo (em euros, não em dólares) aos outros vizinhos (Europa), por acaso não entrarás na sua casa, capturarás o chefe de família que os curdos escondem drogado num zulo e apropriarás-te do arroz para a tua família? Não quererás que os netos da tua casta continuem a manter os teus privilégios, para o qual devem comer desse arroz? E não considerarás que é injusto esse reparto desigual do arroz no teu mundo? Substitua-se arroz por petróleo, e vizinho por Iraque, e obtemos o panorama.

Mas o panorama continua. Outro vizinho com muito arroz é Irão, que o vende sobretudo à China. Também haverá que entrar dalguma maneira na sua casa (com cuidado, porque a China é nuclear e espreita) para que no-lo “venda” a nós (que casualidade que um membro do clã Bush é alto cargo num importante Comité de relações sino-americanas). E mais tarde ou mais cedo haverá que controlar Síria. E, logo, haverá que ir procurando o arroz dos outros vizinhos ainda pobres, quase desconhecidos, que ignoram que têm grandes recursos nas suas alazenas fechadas: o ocidente africano, por exemplo, novo “teatro” da expansão militar norte-americana. Informes dos conservadores Programa para África do Center for Strategic & International Studies dos EUA ou do grupo AOPIG (African Oil Policy Initiative Group) do Institute for Advanced Strategic and Political Studies, baseado em Israel mas com actuação também nos EUA, falam explicitamente da necessária “diversificação” das fontes de energia dos EUA, por “segurança energética”, e do carácter estratégico de África e África Ocidental especialmente (ver p.ex. “U.S. Oil Stakes in West Africa“, por Jessica Krueger). Outras fontes falam da possibilidade dum novo Golfo Pérsico em África em termos de reservas. O petróleo do ocidente africano, de bastante boa qualidade, é mais ligeiro e mais barato de transportar aos EUA. Além, a maioria acha-se sob a plataforma continental, não na terra firme, que é sempre motivo de conflito. Em África não há grandes exércitos que poderiam molestar. Há, sim, “corrupção” e lutas “tribais” que convém destacar, para impor a necessidade de certa ordem e estabilidade, com as quais a maquinaria capitalista funciona melhor. Em troca da intervenção americana em África Ocidental, e de bons acordos comerciais para a “ajuda” na exploração deste petróleo, estabelecerão-se regimes democráticos “estáveis”, desenvolverão-se minimamente as comunicações internas, e impulsará-se um sistema de ensino “universal” e “democrático” comparável ao que sofremos em Ocidente, requerimento ineludível para o disciplinamento ideológico e para a reprodução da classe política. Polos hoteis de luxo dos países de África Ocidental pululam de cada vez mais executivos americanos do petróleo, procurando acordos para um futuro próximo. Obviamente, precisará-se estabelecer também bases americanas de controlo e para treinamento militar para os caducos exércitos africanos. Depois, haverá que “modernizar” os exércitos africanos com armamento pesado: haverá que lhe-lo vender em troca de petróleo. Esta “diversificação energética” reduzirá também a dependência dos EUA do petróleo de zonas “geo-estratégicas” conflituosas, como Oriente Médio.Um claro exemplo de como isto já se está a cumprir encontra-se no acontecido em São Tomé e Príncipe. Um informe da AOPIG de Janeiro de 2002 para a administração Bush falava explicitamente de

“Declarar o Golfo de Guiné área de “interesse vital” para os EUA; estabelecer um sub comando regional semelhante ao US Forces Korea; esse sub-comando regional deveria considerar decissivamente o estabelecimento duma base regional, possivelmente nas ilhas de São Tomé e Príncipe“.

Apenas sete meses mais tarde, em Agosto de 2002, o presidente eleito de São Tomé e Príncipe, Fradique de Menezes, um rico homem de negócios, anuncia planos para estabelecer uma base naval dos EUA no país. Em Outubro de 2002 De Menezes substitui o primeiro ministro Gabriel Costa, do Movimento para a Libertação de São Tomé e Príncipe, a quem meses antes encarregara formar governo por o MLSTP ser o partido mais votado. Em Julho de 2003, um golpe de estado militar com elementos de antigos combatentes depõe De Menezes e o seu governo sob acusações de corrupção e passividade perante a injustiça social. Após uma semana de negociações e conversas entre a facção golpista, o embaixador dos EUA Kenneth P. Moorefield e representantes de Nigéria, Gabão e outros países, De Menezes é restituído na presidência. Moorefield, um condecorado militar texano que lutou no Vietname, fora delegado comercial em Venezuela durante o mandato de Bush pai, e tivera outros cargos diplomáticos. Em Novembro 2003, Moorefield anuncia que o exército dos EUA colaborará com a “reestruturação” do exército são-tomense. Embora São Tomé e Príncipe ainda não explorou uma gota de petróleo, espera-se que a extracção comece em 2007. As companhias ExxonMobil, ChevronTexaco, Royal/Dutch Shell e TotalFinaElf têm indicado interesse nas explorações. Ao meter as mãos também em São Tomé e Príncipe, os EUA quer previr a possibilidade deste estado cair na órbita da mais poderosa Nigéria (com quem compartilha a exploração do petróleo da zona), sob crescente influência islámica.

3. O discurso e os factos

Mas, porque o petróleo? Se os maiores recursos energéticos mundiais ainda por explorar estão no gás natural, porque ainda o carácter estratégico do petróleo? Cada vez se está a utilizar mais o gás natural e o gás em estado liquado (que ocupa 600 vezes menos que o natural –melhor para o transporte– mas que é muito mais perigoso de manipular). Sectores crescentes da economia capitalista (telecomunicações, informática) podem se reconverter a outras fontes energéticas, até a solar. Mas a indústria pesada não é reconvertível não: precisa de fuel, de derivados do petróleo. E a indústria pesada (a do aço, por exemplo) é a que fabrica, entre outras cousas, as armas que se empregam na conquista dos territórios onde se acha o petróleo para fabricar as armas. É também com maquinaria pesada que se fabricam muitos outros bens de consumo: precisa-se petróleo. O círculo vicioso é interminável.

Portanto, não se prevê no futuro imediato saída a esta lógica do grande capital industrial, do que Chomsky chama o “complexo militar-industrial”. Parte desta lógica é transparentemente articulada no discurso das oligarquias industriais (os EUA, Europa, Japão e outros países). Os think-tanks ultra-conservadores norte-americanos, que nutrem o pensamento dos “falcões” do Pentágono (muitos deles filhos, por certo, de judéus liberais que sofreram o nazismo ou o exílio), expressam as metas com uma clareza que não precisa tradução. O Project for the New American Century (Projecto para o Novo Século Americano), ao que pertenciam o intrigante Dick Cheney e Wolfowitz, elaborou em Setembro de 2000 (antes das Torres Gémeas!) o informe Rebuilding America’s Defenses (“Reconstruindo a Defesa Americana” http://www.newamericancentury.org/RebuildingAmericasDefenses.pdf ) que explicita sem lugar a dúvidas o lugar militar dos novos EUA no mundo:

«O liderado global de América (sic), e o seu papel como garantia da paz actual entre os grandes poderes, depende da segurança da pátria americana; da preservação dum equilíbrio favorável de poder em Europa, no Oriente Médio e a região circundante produtora de energia, e no Leste asiático; e da estabilidade geral do sistema internacional dos estados nacionais relativamente aos terroristas, ao crime organizado, e a outros “actores não estatais”».

Em breve: não estamos a falar só de interesses pontuais tácticos (eleitorais ou de hegemonia cultural), mas duma estratégia geral de colonização (num recente artigo em EL PAÍS, Carlos Taibo desmonta o mito da “globalização” económica e caracteriza o processo actual como de pura americanização), envolvida, sim, numa nauseabunda retórica cristã megalómana e messiánica, comparável à dos sionistas, os fanáticos islâmicos ou os fundamentalistas hindus, mas que não é mais do que retórica. E o que contam são os factos: as armas, não as metáforas. Seria ingénuo pensar que as actuais elites industriais e as petromonarquias árabes não planificam a longo prazo o futuro das suas castas, sobretudo quando este futuro está tão próximo. Para eles, trata-se duma questão de sobrevivência.

Não tento psicologizar nem personalizar: cumpre entender esta lógica para tratá-la como uma verdadeira encruzilhada económica e política global. Não compartilhar (naturalmente) o modelo económico capitalista e lutar por outro(s) não resolve o dilema energético. As diferenças entre o Capital da “velha Europa” e o dos EUA neste assunto são de táctica, não de filosofia geral. Portanto, muitas das futuras guerras, invasões, massacres e outras violações do triste “direito internacional” serão de novo uma função da tensão entre os blocos económicos, e das oportunidades pontuais dos seus regimes. Por exemplo, a decisão de intervir proximamente em Síria ou no Irão de uma maneira ou outra dependerá de se não é mais rendível intervir, por exemplo, no Chad, no Sudão, ou em Nigéria, onde “lutas tribais” (dizem as notícias periodicamente) obstaculizam a produção petrolífera. Esta dinâmica poderá ter o hiato duma administração americana do partido Democrata (mas, lembremos, foi Clinton também quem em 16 Dezembro 1998 ordenou atacar objectivos civis de Iraque), ou de outros dirigentes republicanos que representem interesses doutras famílias económicas. Mas a lógica é imparável, e os detalhes do processo são contingentes. Por exemplo, o ex-candidato democrata Al Gore também tem interesses na Occidental Oil, que passa um importante gasoduto por Colômbia. Colômbia, portanto (sob a escusa da guerrilha terrorista e do narcotráfico) poderá ser mais um próximo objectivo. Devemos por isso estar alertes aos avisos retóricos dos dirigentes dos regimes económicos ocidentais contra os países do “terrorismo”, simplesmente porque esse discurso pode dar dicas sobre os possíveis lugares de intervenção próxima: a legitimação da barbárie precisa do anúncio prévio às massas. As frequentes viragens na delimitação do “eixo do mal” internacional podem expressar interesses tácticos cambiantes: poucas semanas depois de Líbia deixar de pertencer ao “eixo do mal” por “pregar-se” à condição de não produzir “armas de destruição em massa”, a ministra espanhola Ana Palacio visita o ditador Gaddafi. Repsol já tem contratas em Iraque. Mais petróleo, é a guerra. O mesmo se pode dizer sobre os cambiantes apoios de regimes políticos e partidos a determinadas “causas” ou “povos”, oprimidos ou não.

4. Uma longa resistência

Em resumo: devemos estar preparados para uma longa resistência, uma resistência que pode durar toda uma vida. E aqui o dilema está em se é possível ainda proclamar a utopia e fazê-la compatível com o protesto pedestre. É evidente que os estados assentes em territórios que, por pura coincidência, possuem o petróleo, não têm o direito legítimo de fazer o que queiram com um recurso que é de todo o planeta. Os povos que ali vivem, sim, têm o direito e a obriga de administrá-lo, mas há que economizá-lo e reparti-lo. A utopia é que, se compreendéssemos que estamos no mesmo barco que afunde, fariam-se desnecessários os estados fragmentados, perante a iminência do desastre (económico, ecológico, sanitário, humano). A realidade é, porém, que o desastre ainda é selectivo, e igual que se matam ratos que poluem os “nossos” esgotos, se é necessário exterminam-se colectivos inteiros que se interpõem no “nosso” labor de latrocínio.

Por isso, a alternativa é procurar negociar os termos do privilégio de classe sobre o petróleo. As organizações internacionais, partidos, grupos de pressão, ou o próprio Foro Social Mundial devem tentar negociar no âmbito mundial e local, nos mais altos níveis e instâncias, os termos e condições em que se pode efectuar o controlo de classe dos recursos. Desde a resistência anti-colonial deve procurar-se a interlocução sobre uma politica energética mundial que evite os genocídios e o império militar, e devem explorar-se com inteligência as fissuras naqueles regimes económicos (a “velha e caduca Europa”, por exemplo) que ofereçam outras “soluções” internacionais, igualmente antidemocráticas por capitalistas, mas menos sanguentas. A resistência humana em favor duma nova sociedade será longa, muito longa (e sem garantias de que nunca vaia dar frutos!). Poderá desaparecer George W. Bush do panorama mundial, sujeito a contingências eleitorais. Poderá oscilar Europa entre períodos mais negros e mais grises. Mas o projecto de apropriação dos recursos por parte do capital não tem volta atrás. E, dentro do ódio ideológico que lhe professemos às oligarquias, uma resistência o mais ampla e organizada possível deve tentar compreender a lógica delas para tentarmos minimizar o sangue, para tentarmos erradicar o massacre como método. Afinal, só se trata de conjurarmos o cinismo: porque aqui em Ocidente reside a resistência privilegiada, a quem seguramente nunca lhe cortarão a luz dos computadores enquanto haja um iraquiano ou um nigeriano a quem voar em pedaços para garantirmos o oleoduto que nos nutre.