A recente reforma das normas escritas da Real Academia Galega para as falas galegas é sem dúvida um ponto de inflexão no conflito linguístico, queirámo-lo ou não. A série de perguntas que nos assalta, porém, é: Um ponto de inflexão para que? Para quem? Há uma vitória e uma derrota? Vitória ou derrota de que e de quem? Futuro melhor ou pior do galego para que ou para quem?
A quantidade de citações, opiniões, manifestos, declarações, textos, posicionamentos e análises que poderíamos aduzir para justificar uma crítica frontal a esta reforma, procedentes do campo do galeguismo cultural, encheria páginas. O denominador comum destes discursos seria que, sem recuperação efectiva da unidade linguística do tronco galego-português, não há futuro para o galego. Porém, nem estes discursos poderiam responder as perguntas anteriores. Porque no meu modesto entender está ainda por explicitar, contudo, qual projecto cultural, linguístico, social e portanto político acompanhava e acompanha todas as proclamas unitaristas, quer dizer, lusistas e reintegracionistas. O projecto do campo hegemónico, declarado ou não, já o conhecemos: É o degredo das falas galegas ao estatuto dum ser linguístico inferior, precário, em constante diagnose, com constantes operações cosméticas mínimas, em situação de sobrevivência constante, enquanto se afasta mais e mais da hipótese de Língua Nacional (e desculpem as maiúsculas, que explicarei) no território onde nascera, há demasiados séculos como para que a inútil nostalgia histórica deva embaçar o nosso realismo.
É evidente que o pacto entre o nacionalismo espanhol e um sector do nacionalismo linguístico galego (BNG, ASPG) nesta reforma significará para os segundos importantes renúncias. Ilegalizadas agora certas práticas escritas, os que as tinham como símbolos deverão deixar de utilizá-las nas suas aulas e publicações, nas aras dum consenso que soa, sabe e cheira a derrota dos nacionalistas. E se soa, sabe e cheira a derrota deles, provavelmente seja uma derrota. Durante anos, alguma intelectualidade e posição política enarvorou hífenes, acentuações portuguesas e outras formas como estandartes dessa essência linguística galego-portuguesa, descafeinada por um possibilismo ortográfico populista. A par da norma institucional, nos liceus e poemas ensinavam-se ou praticavam-se também esses Amínimos@, inserindo-se essas excrescências (Ahistória@, Aamar-te@) como manifestos de resistência. Para nós os lusógrafos, apenas um par de símbolos nunca foram suficientes, certo. Mas o seu uso significava algo, algo ou várias cousas sem dúvida sempre negociáveis, e polo menos significava uma declaração de diferença: estando estes praticantes Adentro@ da Norma, estavam Afora@. Ou isso diziam. Agora ninguém poderá negar que a desaparição por decreto desses símbolos situa este sector do nacionalismo linguístico galego numa difícil situação. Já ninguém deles poderá argumentar que formas como Ahistória@ ou Aamar-te@ são galego. Os nacionalistas defesores do Novo Oficialismo deverão riçar o riço da argumentação para justificarem a legalidade dos Areitores@ mas a ilegalidade dos Aleitores@, a galeguidade da Apuberdade@ frente à estrangeirice das Afaculdades@. Curiosos exercícios pedagógicos e de renúncia. Negociou-se com as palavras da língua como se fossem fichas num jogo de póquer, ou ofertas num tira-puxa de feira semanal. Isto não é grave em si (não essencializo a Língua): o que move à piedade é que se justifique tudo isto na Adocumentação@ do galego, como se a escrita historicamente defeituosa dum idioma fosse um critério científico de peso. Pacto político recoberto de Filologia, isso é o que foi e o que é.
Para nós os lusógrafos, nos nossos diversos graus de analfabetismo (que não fazem mais do que revelar o hipócrita exercício de apropriação da língua, pois ninguém dos analfabetos como eu poderia chegar a publicar um texto numa sociedade linguisticamente normal, quer dizer, onde imperasse a naturalização das hierarquias linguísticas), esta reforma deles tanto não nos afecta como não nos afecta. Se tivéssemos claro o objectivo, poderíamos avaliar se a derrota de certo nacionalismo linguístico galego representa a vitória de outro sector do mesmo campo. Mas, assim como o programa isolacionista é claro desde os começos (e este pacto normativo não é recuo não, mas hábil coopção), e foi respaldado por conivências e votos variados durante décadas, o programa unitarista é, no meu sentir, muito mais incerto.
Para começar, os isolacionistas têm claro que a língua está por construir. Toda a sua prática vai orientada nesse sentido. As absurdas correcções paulatinas à norma, com a incorporação de palavrinhas aqui e lá ao Diccionario Perpetuo de Galicia, lembram as situações militares de assédio, os contextos pré-constitucionais dilatados indefinida e artificialmente para manter o statu quo, as longas Transições Democráticas que só dão como fruto a reprodução do domínio sob outra forma. Para o isolacionismo, a língua que está por construir é, evidentemente, uma variante social e regional do espanhol.
Os reintegracionistas, por contra, dividimo-nos entre quem pensa também que a língua está por construir (mas de outra maneira) e quem pensa que já está construída, diversamente, noutros países, e também aqui, nas margens do sistema. Que este texto poda ser lido fora da Galiza (Portugal, Brasil, Moçambique, até Espanha) com algo de estranhamento polos seus erros e peculiaridades e muito mais de reconhecimento pola sua forma demonstra o segundo: que a língua já está construída e só temos que aprendê-la. Mas que o mesmo texto nem seja lido na Galiza por culpa do alto muro sionista que o isolacionismo está a erguer em todo o mundo da palavra prova, complementarmente, o primeiro: que a construção social da língua portuguesa na Galiza, da língua galego-portuguesa, da língua galega chamada portuguesa, não é apenas um assunto de desejos. Para começar, que um só dos colectivos que compõem o nosso campo, a Associaçom Galega da Língua, se queira erigir em árbitro normativo criador de Língua, embora legítimo projecto, roça a altivez. A vontade reitora da AGAL não supre a evidência da nossa diversidade interna. A assembleia geral do campo linguístico unitarista na Galiza (aquele que sabe que temos uma língua comum a muitos países) ainda está por fazer (ofertas recentes houvo neste sentido, e ainda não calharam). Só um campo efectivamente unificado estará em melhores condições de exercer a interlocução: não uma interlocução vazia para chegarmos a novos pactos por um ridículo acento (não quero pensar como se sentem internamente os bons filólogos nacionalistas Ade mínimos@ que pactaram durante meses e aceitam agora o massacre ortográfico espanhol; eu, com certeza, não gostaria de estar no seu lugar), mas uma interlocução para demonstrarmos que estão em jogo duas concepções tão distintas da língua que só o reconhecimento da posição do outro nos poderá salvar a todos da iminente desfeita.
Se soubéssemos qual é o objectivo do campo unitarista, poderíamos portanto desenhar tácticas orientadas a uma tarefa simples: Que o objecto que não me dá medo chamar Agalego@ se constituísse em Língua Nacional, e é aqui onde retomo as linhas do começo. A Língua Nacional não é necessariamente, embora poda parecê-lo, a língua de uma Nação: é o hierárquico instrumento de poder e de saber, de disciplinamento e de liberdade, de poesia e grosso prosaísmo, de criação, projecção exterior, identificação, cultura, relações sociais, jogos, reflexividade e espontaneidade duma sociedade estatalizada que quer, de uma vez por todas, deixar de gastar enormes energias em decidir como há-de falar e escrever, e começar a distinguir-se internamente e a combater polos espaços sociais mais polo que se diz e escreve que polas letras como se escreve. Tenho a impressão de que o cansaço por esta tarefa introspectiva de desmiudarmos o significado dos simbolinhos escritos não se dá só neste campo unitarista: é um cansaço que se dá também no outro campo, embora se disfarce aí de Redenção Científica. Porque a esquizoglossia que sofremos não serve para exercermos a distinção mútua: Não há maneira de sermos melhores ou piores do que outros como galegos se não escrevemos a mesma língua. A única língua continuará a ser o espanhol, e no seu mercado até os ganhadores actuais são perdedores. Por isso os unitaristas não queremos escrever o espanhol que está a inventar a RAG, mas o nosso português como Língua Nacional. E nas sociedades democráticas, adquirir a Língua Nacional é um direito (um direito que só reproduz a desigualdade, como tantos outros, mas um direito). Quanta mais gente aprenda e pratique esta lógica, quanta mais cresça o campo unitarista, melhor para todos.
Porém, o reconhecimento deste cisma, e da necessidade da unidade para continuarmos a roubar a língua ao inexistente Povo, não é suficiente para qualquer dos dous campos ceder e escrever da outra maneira. Não, a hipótese da cedência total é impossível. Portanto, sem interlocução real dirigida ao reconhecimento, a máquina do movimento perpétuo continuará, continuará a estabelecer no nosso seio duas sociedades de cultura (uma galego-espanhola, outra galego-portuguesa) igualmente distanciadas do Inexistente Povo ágrafo, operaçãotriunfista, alheio a estas letras e às outras, afogado no piche político, votante dos medíocres, cativo da propaganda, envelhecido de mente e de atitude, e profundamente espanhol. Por isso este pactinho normativo é, como sempre, a derrota de quase todos, e a entranhável vitória duns poucos, que com arrogância proclamam o falso fim das diferenças, decretam a Verdade Linguística e repartem privilégios porque, simplesmente, estão a fazer o seu trabalho, que entre todos pagamos porque no-lo ordena a Monarquia.