Razões ocultas?: Iraque, o euro, Espanha e o Sara Ocidental

Publicado em A Nosa Terra

São sabidas bastantes das causas para este ataque do regime dos EUA sobre o território e os recursos desse país agora chamado Iraque. Também, do apoio do governo do Reino Unido a esta agressão. Menos entendida é, porém, a decisão do governo espanhol, até nas próprias filas do Partido Popular. O cisma entre a direita francesa e a direita estadunidense quanto à política bélica internacional (representadas nas posturas respectivas de Chirac e de Bush) também surpreende. Há alguns factos para mim significativos desta guerra que nos poderiam dar pistas para compreender uma complexa situação.

Facto número 1: O dólar e o euro. Em Novembro de 2000, Iraque adoptou o euro como moeda de troco para a venda de petróleo. Naquela altura, o euro valia 80 centavos de dólar. Hoje, vale sobre 105, uma revalorização considerável. Ou, com outras palavras, o dólar depreciou-se. Isto foi uma aposta do regime iraquiano polo euro, aposta que lhes estava a sair bem, e que com o final do bloqueio económico sairia-lhes ainda melhor. As petroleiras americanas temem que esta viragem do “petrodólar” ao “petroeuro” se poda estender a toda a OPEP, especificamente a Irão primeiro. Significativamente, a intervenção no Iraque é levada a cabo por dous países sem euro (EUA e RU), mas oposta polos governos das principais economias do euro, França e Alemanha.

Facto número 2: Alasca: Recentemente o Senado EUA rejeitou começar as prospecções petroleiras na grande reserva natural de Alasca. O voto republicano foi fundamental para esta surpreendente decisão. Decidir não utilizar o próprio petróleo significa que há mais aí fora, mais barato de conseguir. Iraque é um desses lugares.

Facto número 3: As “razões de Estado” de Aznar. De todo o discurso e contradiscurso entre o governo espanhol e a oposição política (especificamente o PSOE), a mim pessoalmente surpreenderam-me dous factos: a) Em mais duma ocasião (uma vez Aznar, outra vez Arenas), o governo interpelou cripticamente ao Partido Socialista sobre a sua oposição à guerra dizendo-lhes: “Se vocês estivessem no poder estariam fazendo o mesmo que nós”. Não houvo réplica nem tentativa de esclarecimento por parte do PSOE. Isto é destacável na medida em que a linha entre governos defensores e opositores desta guerra não segue linhas partidistas “esquerda/direita”. Porque deveria a “esquerda” do PSOE ter a mesma postura do que a “direita” do PP se aquele estivesse no poder? Deve haver poderosas razões que desconhecemos. b) O secretário geral do PP de Galiza, Palmou, numa entrevista na Cadena SER o domingo 23 disse que “Deve haver razões de estado” que Aznar sabe e nós não. O mistério sobre estas afirmações de destacados membros do PP, e do silêncio do PSOE, esvoaça sobre a operação de extermínio em Iraque.

Facto número 4: O Sara Ocidental, o grande ausente. Surpreende também o silêncio do governo espanhol, e especificamente da carteira de Exteriores, sobre o problema do Sara Ocidental. Em Março 31 deve adoptar-se uma (outra) resolução sobre a situação do Sara. E Espanha está temporariamente representada no Conselho de Segurança da ONU. James Baker, comissionado especial da ONU, e ex-secretário de Estado dos EUA, quem representa os interesses do governo (portanto, das oligarquias) desse país, pode estar mudando a sua posição anterior sobre a autodeterminação do Sara. Baker estava conectado também a interesses petroleiros. É possível que a administração EUA queira apoiar agora uma solução “intermédia” que conceda soberania talvez só à parte sul do Sara, enquanto a norte ficaria sob administração de Marrocos. Isto poderia não ser à partida aceitável para o Frente Polisário, mas ao parecer tampouco o Polisário estaria em condições de recomeçar a luta armada, e no Sul poderia formar-se um estado independente suficientemente auto-sustentável. Porque, que acontece nas zonas norte e sul do Sara Ocidental? No norte, estão os fosfatos. No sul (nas águas jurisdicionais correspondentes à não reconhecida República Árabe Sarauí Democrática) estão a fazer-se explorações petrolíferas por várias companhias, entre elas uma australiana (governo que apoia a guerra do Iraque). Os seus informes iniciais indicam que há petróleo comercializável. Também há uma concessão do governo marroquino de 2001 à companhia francesa TotalFinaElf e outra à estadunidense Kerr-McGee para a prospecção e comercialização do petróleo que se encontrasse. Mas expertos legais de vários países consultados pola União Europeia coincidem que um novo governo saído dum referendo no Sara não teria porque respeitar os acordos contraídos por Marrocos, ocupante ilegítimo do Sara Ocidental.

E como podem encaixar estes factos, então? Que se lhe perde à direita económica espanhola na guerra de Iraque? Um cenário possível é o seguinte:

1) O controlo ao acesso e aos preços do petróleo do Iraque por parte de petroleiras EUA daria-lhe às óleo-garquias estadounidense e à grande indústria pesada que depende dele (entre elas, a indústria do aço e portanto a armamentística) vantagens substanciais sobre as de outras zonas, nomeadamente Europa. São precisamente estes sectores os que não se podem reconverter facilmente a outras fontes energéticas. Por outra parte, esvaeceria-se o perigo da “eurização” do petróleo. O grande capital americano estaria em condições de repartir as reservas petroleiras ora no seu próprio benefício (sem ter que explorar as próprias), ora para países industrializados selectos (Espanha, por exemplo), ora para países em subdesenvolvimento onde se precisa a criação de capacidade aquisitiva para criar mercado. Durante muitas décadas a vir, as oligarquias EUA e algumas ocidentais estariam em condições ainda mais claras de decidir o destino económico de grande parte do planeta. O acesso ao petróleo do Iraque favoreceria à “economia” espanhola (quer dizer, ao capital), frente à francesa e alemã, maiores competidores para os EUA do que Espanha. Significativamente, os governos de “países menores” europeus apoiam os EUA.

2) Claramente, a administração EUA não precisa do governo de Aznar nem do PP para os propósitos imperialistas do capital. Mas a aliança com “Espanha” ajudou-lhe ao governo EUA a criar o cisma com os governos francês e alemão. Que mais obtém “Espanha” em troco disto?: A defesa dos “seus” interesses económicos no Sara Ocidental. E a situação especial que se dá agora, e não há alguns anos, é que Espanha está no Conselho de Segurança da ONU, uma circunstância que entre alguns sectores independentistas sarauís é vista como uma “grande oportunidade” para “Espanha pagar a sua dívida histórica”. Portanto, o cisma entre França e EUA/Espanha a respeito de Iraque estaria em paralelo com o seu cisma a respeito do Sara (França continua a apoiar a actual anexação por Marrocos, e um regime de “autonomia” para o Sara).

O petróleo seria a principal e quase única fonte económica do novo estado sarauí, suficiente para o seu desenvolvimento. Um novo estado saraui poderia rescindir os acordos de exploração petroleira às companhias francesas e conceder-lhe-las a petroleiras americanas. Uma recente informação da BBC de 4 Março 2003 afirma que “Agora as reservas de petróleo do país tornaram-se já um factor nesta luta quando as companhias petroleiras estadunidenses, francesas e australianas começam a informar dos seus primeiros achados”. E, significativamente, outra informação da BBC tomada de Le Quotidian d’Oran de 8 Fev. 2003 diz que: “É de destacar que os espanhóis se alinharam sem reservas com Washington relativamente ao assunto de Iraque. Portanto, os americanos poderiam pedir-lhe a Madrid que fosse menos ‘rígido’ no tema do Sara Ocidental, com a promessa de que os seus interesses serão tidos em conta“. Que significam estas expressões?: “Ser menos rígido” significa aceitar e promover na ONU o plano de Baker sobre a independência da parte Sul do Sara. “Ter em conta os interesses de Madrid” significa que “Espanha” levaria uma parte do pastel dos recursos energéticos do novo Sara. “Os interesses” também pode significar a pesca. Por enquanto é “França” a que perderia com tudo isto, e, em menor medida, “Alemanha” (quem também tem um projecto de exploração de energia eólica em toda a costa ocidental de Marrocos e o Sara).

Em resumo: O governo espanhol e José María Aznar obteriam do seu apoio à administração EUA na invasão de Iraque, além doutras cousas que nem sabemos: 1) Acesso a petróleo iraquiano, sem dúvida. 2) Prestígio internacional pola sua defesa, desde o Conselho de Segurança da ONU, duma solução intermédia para os sarauís promovida por Baker-EUA, alinhando-se de novo com os EUA mas sem romper os vínculos com Marrocos (que conservaria o norte do Sara). E 3) Mantimento dos “interesses de Espanha” (os das petroleiras espanholas também?) no novo foco geo-estratégico mundial da África Ocidental. Tudo isto significa que qualquer governo espanhol (PP ou PSOE), por pressões do grande capital e por defesa destes “interesses”, provavelmente teria agido igual a respeito da guerra do Iraque, como a misteriosa mensagem de Aznar sugere: “Vocês os socialistas fariam o mesmo se estivessem no poder”.

E não sou analista político, nem economista, e tudo isto, claro, é bastante especulativo. A situação é mais complexa. A resolução da ONU deste 31 de Março pode pospor-se mais uma vez. O tempo dirá, quando o tema do Sara Ocidental saia de novo à luz pública, e quando se veja se o governo resultante da imperial conquista do Iraque retorna ao dólar para vender o seu petróleo.

(Algumas fontes: http://groups.yahoo.com/group/Sahara-Update/message/1082
http://groups.yahoo.com/group/Sahara-Update/message/1063
http//www.rebelion.org/imperio/040303clark.pdf)