Enviado a A Nosa Terra; rejeitado
Estamos a viver provavelmente o momento mais transparente da história quanto às relações entre a “liberdade de expressão” (essa velha noção anglo-saxona) e o disciplinamento colectivo. A privatização do pensamento, e portanto da liberdade, acada inusuais níveis de clareza. Só têm liberdade de expressão aqueles que possuem os meios de expressá-la. O pensamento crítico é praticamente inexistente nos foros principais onde se forjam mais nitidamente os sentidos sociais que, através de complexos destilados ideológicos, se transformam depois em voto democrático. Se nos EUA é impensável criticar nos principais média os massacres militares contra tantos grupos humanos, no Estado Espanhol é impensável questionar o nacionalismo espanhol (quer dizer, defender consequentemente os nacionalismos “periféricos”) em espaços oficiais como El País ou El Mundo, e a cerimónia da exclusão repete-se a escalas progressivamente inferiores. Em La Voz de Galicia está vetada a crítica a Francisco Vázquez e a Fraga Iribarne, e ao que eles representam. O nacionalismo galego dispõe quase exclusivamente do foro de A NOSA TERRA, e neste, por sua vez, o espaço para a dissensão política, linguística e cultural é de cada vez mais reduzido.
Por que digo que esta situação é agora mais transparente do que, por exemplo, no franquismo? Durante a ditadura orgânica era naturalmente lógico que um não se pudesse expressar criticamente contra ela nos órgãos oficiais. Por sua parte, as empresas privadas de informação estavam sempre ameaçadas de duras sanções, e o exercício da filigrana retórica era praticamente o único cauce possível para a dissidência. Mas existia certa esperança (agora provadamente errada) de que estas empresas algum dia se abririam até o limite do possível. Porém, sob o actual regime monárquico, a miragem democrática chegou a se instalar tão hábil e comodamente nos capitais e nóminas mensais das classes detentoras dos meios de produção simbólica que estas simplesmente são incapazes de conceberem um pensamento que as questione, quer dizer, que questione o seu pensamento. Singelamente, na Galiza os meios de comunicação verdadeiramente públicos, os que contribuiriam para o debate racional na chamada “esfera pública” habermasiana, não existem. Quanto às empresas privadas, jornais e semanários defendem a sua cota de mercado mesmo contra esses princípios liberais fundacionais da “liberdade de expressão” que o marxismo gramsciano atinadamente converteu em recurso programático para a construção da famosa hegemonia. Não podemos esperar que o ABC ou El País respeitem estes princípios e acedam a doar partes até ínfimas do seu território simbólico para o pensamento verdadeiramente crítico. Mas era de esperar que o jornalismo liberal surgido do marxismo compreendesse o lugar crucial da dissidência para a consolidação racional dessa hegemonia ideológica: Só o debate, não o silêncio imposto sobre os Outros, dá a razão a quem a tem.
Digo tudo isto porque a recente viragem ideológica de A NOSA TERRA — como semanário paradigmático do nacionalismo galego, índice portanto dos nossos tempos — a respeito da questão linguística na Galiza agoira ainda piores momentos para o pensamento crítico. E o pensamento crítico, em questão de língua, dentro do campo de resistência no que (ao parecer) também se move certo nacionalismo galego, reside na altura (na altura histórica, sempre contingente) no que se dá em chamar “reintegracionismo” ou “lusismo”, etiquetas em cujo desmiuçamento semântico declino entrar neste escrito. A defesa a ultrança por parte de ANT da proposta de reforma normativa (e portanto reforma ideológica), junto com a negação do espaço para a dissidência, provoca essa ilusão de consenso no Campo da Língua que tantas vezes joga péssimas passadas aos seus próprios construtores. Não existe consenso nem concórdia em torno da língua na Galiza, nem é previsível que exista com qualquer reforma normativa sobre as bases actuais. O reconhecimento deste facto indiscutível deveria ser o rico material com o que um médio preocupado com a cultura operasse para, polo menos, preservar o debate, o liberal confronto de ideias, em momentos quando até o materialismo dialéctico dá a mão institucional ao fascismo impertérrito de Fraga Iribarne.
E digo tudo isto também, simplesmente, porque em 15 de Dezembro de 2001 se reuniram em Compostela um número considerável de organizações e associações (que agrupam literalmente centenas de pessoas), e mais alguns presentes a título individual, que defendem a unidade linguística galego-portuguesa, tanto na sua legítima visão da língua quanto na sua prática escrita. Após amplo e bastante organizado debate, redigiu-se um imperfeito comunicado, chamado Manifesto 15D, que foi enviado a esta publicação, com o apoio de muitas organizações e, quando se enviou (apenas três dias depois da reunião), mais de 80 adesões individuais. O Manifesto é inócuo, como quase todos, porque não questiona as bases da dominação de classe em função da língua, o contributo essencial das elites intelectuais e políticas na manutenção da desigualdade, na Galiza e alhures. Por isso mesmo é transparente e compreensível que A NOSA TERRA, nesta altura de finais do 2001 quando escrevo, dous números mais tarde, ainda não tenha publicado tal breve comunicado. Qualquer empresa privada de opinião tem todo o direito de rejeitar textos não solicitados, e amiúde até os solicitados, se não se atêm aos princípios que a empresa defende. Não se deve esperar que qualquer empresa ou projecto político atire pedras contra o seu próprio telhado. Mas de algumas empresas de opinião, pode-se esperar a inteligência de compreenderem que, por contra, reservarem um espaço jornalístico para a dissidência reforça as traves do seu telhado ideológico. Se me apuram, em última instância, a tolerância com os distintos talvez atire pedras é contra o telhado dos próprios dissidentes, expostos assim na sua incapacidade, por falta de recursos materiais (sintoma do seu fracasso na masculina acumulação de capital; sintoma do seu trasnoitado idealismo político) ou humanos (sintoma da atomização forçada de toda resistência), de gerarem e gerirem espaços de opinião próprios de notável difusão social. O Manifesto, porém (como se isto fosse suficiente), encontra-se em vários lugares da Internet, como http://br.groups.yahoo.com/group/manifesto15D , ou o canal Galego.org de Vieiros, http://www.vieiros.com , e portanto tem já o seu lugarzinho nesse Lugar onde se pode dizer quase tudo mas não se lê quase nada.
O panorama do conflito linguístico entre grupos e elites parece tão claro que é lógica mas espanta (surpreende) a transparente inamabilidade de A NOSA TERRA em não publicar a palavra dos distintos, esse benigno Manifesto 15D onde, entre outras cousas, se afirmam obviedades como a seguinte: “Enquanto a visão galego-portuguesa da língua não seja considerada como um interlocutor válido na planificação do idioma, qualquer reforma normativa deixará sem resolver o problema linguístico”. Acho que até os proponentes da reforma normativa concordariam com esta afirmação. O que está em jogo e discussão, claro, é o alcance, a dimensão social, a relevância desse presente e previsivelmente futuro problema linguístico, as conexões entre ele e os muitos procedimentos de exclusão social no capitalismo democrático. Da Língua ou da Lingua (que são a mesma cousa diferente) não se morre: só se vive. Portanto, que ninguém espere a que morram os Outros, ou que da noite para a manhã todos e todas mudem de mente, que as mutações são cousa darwinista. O assunto é muito mais fácil: publique-se também aqui esse Manifesto, e que a miragem democrática continue. Porque, se já sabemos que afinal nem a razão (de quem a tiver) conta, para que gastar tanta energia promovendo o silêncio?