Enviado a A Nosa Terra; não publicado
Rodeada polo Passeio da Luz Universal do invito alcaide, que rompe a unidade histórica da terra com o oceano, a majestosa cidade da Corunha esconde entre as ruelas provisórias de Monte Alto, dos Castros, dos Malhos, um silêncio infinito. O que se conhece desde fora da Corunha é a epiderme assoalhada da praça imperial de Maria Pita, dos jardins onde os limpos passeantes traduzem o domingo em conversas sorridentes no idioma único que nos legou Espanha. Mas no interior dessa casca civil e luminosa, nos bairros decaídos do Orzã, apenas a uns passos da palavra, impõe-se o som escuro e rouco dos desamparados, aquele que não consiste em línguas mas em derrotados sonhos de poderem descer, nalgum momento da sua vida, às cândidas praias construídas com areias dum país que já não é nós mesmos. A Corunha é o epítome da glossolália, o falar em línguas em trance proletário para um deus que não nos atende. Percorrer a rua de Hércules, a encosta de Santo Tomás, as vielas de Trabajo, Libertad ou Progreso é um exercício de amargor. A língua pública dos cartazes, dos sinais, das precárias tendas de alimentos, revela-nos estarmos dentro de Espanha. Na beira-rua os rapazolos jogam com palavras de telefilme a construírem casas de cartão, a emularem os enormes enxames de chabolas onde se reproduzem em caló os ciganos, numa sorte de experimento de cultivo realizado pola supremacia branca.