Corunha, a cidade sem língua

Enviado a A Nosa Terra; não publicado

Rodeada polo Passeio da Luz Universal do invito alcaide, que rompe a unidade histórica da terra com o oceano, a majestosa cidade da Corunha esconde entre as ruelas provisórias de Monte Alto, dos Castros, dos Malhos, um silêncio infinito. O que se conhece desde fora da Corunha é a epiderme assoalhada da praça imperial de Maria Pita, dos jardins onde os limpos passeantes traduzem o domingo em conversas sorridentes no idioma único que nos legou Espanha. Mas no interior dessa casca civil e luminosa, nos bairros decaídos do Orzã, apenas a uns passos da palavra, impõe-se o som escuro e rouco dos desamparados, aquele que não consiste em línguas mas em derrotados sonhos de poderem descer, nalgum momento da sua vida, às cândidas praias construídas com areias dum país que já não é nós mesmos. A Corunha é o epítome da glossolália, o falar em línguas em trance proletário para um deus que não nos atende. Percorrer a rua de Hércules, a encosta de Santo Tomás, as vielas de Trabajo, Libertad ou Progreso é um exercício de amargor. A língua pública dos cartazes, dos sinais, das precárias tendas de alimentos, revela-nos estarmos dentro de Espanha. Na beira-rua os rapazolos jogam com palavras de telefilme a construírem casas de cartão, a emularem os enormes enxames de chabolas onde se reproduzem em caló os ciganos, numa sorte de experimento de cultivo realizado pola supremacia branca.

No coração da Corunha, em torno de um escutam-se sem dúvida falas diferentes. Mas esta poliglossia não é a fértil balbordo das megápoles multiétnicas, nem o produto natural do respeito, nem a consecução da igualdade das condutas: a polifonia diária das nossas cidades, que esmorecem enquanto lhes cresce uma côdea imposta de progresso, é a máxima expressão do silêncio do povo, enganado por um fulgor de edifícios com antenas que nos conectam aos órgãos sexuais da Espanha nas longas tardes em que vamos matando a nossa origem de pão e terra viva. As falas dos exilados internos não são “galego” nem são “espanhol”: são gritos crematórios, ou réplicas de hit-parades flamencos, cantos dum sonho de identidade inalcançável arrojados ao eco dos pátios interiores. Às vezes não entendo o que conversam dous jovens a acarinharem incessantemente a seringa ou a garrafa no chão da parada dum autobus que nunca chega. Não compreendo as sílabas da meninha colorida que ri o seu aniversário para uma mãe embelezada diante do Children’s Garden ou Jardín de los Niños, que é o mesmo. No entanto, nos bares emparrados das esquinas legitima-se a tragicomédia da nossa identidade, exibem-se os nossos restos, os novos estandartes materiais que substituem a língua: comida à feira, vinho local, o que ficará da desfeita na Ementa do domínio universal. Somos turistas de nós mesmos, contemplamos as nossas próprias curiosidades, atiramo-nos fotos vestidos de gallegos.

A Corunha é uma cidade sem língua. Sob a sua pele ríspida como a muda duma serpe ruge um exército de seres sem palavra. Num jardim público aterra sem signos prévios um autocarro com viageiros portugueses. Em ritual preciso estendem as suas mesas, os panos, as refeições exactas para uma tarde de ar frio. Dos sumidoiros, dos talheres, dos terraços de despintado concreto acodem rapidamente os habitantes da cidade, como um rio de barulho inarticulado, a contemplarem com assombro os Estrangeiros, a tocarem-lhes as roupas para ver se são humanos, a abrirem os ouvidos ao seu estranho linguajar. De súpeto todo indício da visita é engolido pola massa galega, e fica só no chão um garfo primitivo e a esquina dum jornal de letras raras que sobreviveu à absorção polo Progresso. E o povo inteiro da Corunha, da Galiza, retira-se às suas casas carcerárias a repetir o berro a-verbal dum jogo de futebol, dum concurso de coplas andaluzas, duma recitação de fórmulas cristãs.

Nenhum destes sons faz parte da Língua: nem da uma, nem da outra que não nos deixam nomear. São apenas formas de silêncio.