“Nós, de verdade, unicamente temos
a palavra. Só a palavra verdadeira
pode traduzir a fecha
e insondável soidade do nosso ser”.
Manuel Maria, A luz ressuscitada
No pensamento normativo dominante, muitas reivindicações de direitos identitários ou sociais (os económicos decretam-se inexistentes) são construídas como veleidades, caprichos que só uma generosa “tolerância” do sistema permitirá honrar e defender… ou não, porque onde manda o material, o reconhecimento cultural é discricionário. O casamento entre pessoas de chamado “mesmo sexo” (esse atavismo), por exemplo, é ainda muito limitadamente reconhecido, numa altura em que já crescem mundialmente as lutas por uma concepção das identidades de género como algo irredutível a categorias funcionais, e muito menos biológicas. No pensamento normativo dominante, ainda não se concebe que a biologia é apenas um dos aparelhos em que os humanos refugiamos a nossa complexidade, e que a descrição “homem com pénis” é exatamente tão trivial como “mulher transgénero com pénis”, por exemplo, sem entrar-nos na trivialidade de cada uma das subetiquetas componentes (“homem”, “mulher”). O estado de Carolina do Norte nos EUA aprovou recentemente legislação aberrante (a lei HB 2) que proíbe que pessoas chamadas transgénero possam utilizar as casas de banho correspondentes às etiquetas do género com que se sentem identificadas. Para evitar tal blasfémia (uma transmulher urinando porta com porta junto a uma cismulher!), não é claro se aquele estado instalará nas entradas das casas de banhos detetores de pénis e vaginas marca ACME. O governo federal EUA já interpôs uma demanda contra esta legislação troglodita e, além, contraditória até para as bíblias de que provavelmente emergeu (imagine-se um urinário para homens onde de súbito irrompa uma convencionalmente feminina transmulher-com-pénis a urinar líquidos idênticos aos dos cisvarões-com-pénis; calcula-se que, logo que mostre o pipi, já acreditará documentalmente que está a cumprir a lei e não será expulsa). O absurdo desta lei só convencerá, como costuma acontecer, aqueles cárteles ideológicos que sempre têm a perder com o progresso humano no caminho da libertação: as famílias binaristas alicerçadas simultaneamente na divisão cromosómica do trabalho e das identidades, na naturalização duma interpretação simplista da concorrência darwiniana, e — portanto — na concepção de que a selvagem ordem económica surge também “naturalmente” duma “natureza (bis) humana” cujos atributos exatos, na sua inerente contradição (os humanos amamo-nos e matamo-nos, até simultaneamente), curiosamente nunca conseguem explicar.
Mas resulta que a pulsão de autodeterminação da consciência é muito mais poderosa do que todas as restrições que a base material impõe. Essa pulsão sim que é candidata a pertencer à “natureza humana” que reside no desenho singular do cérebro, ainda que por qualquer mágica razão a normatividade dominante classifique as pessoas pola diversidade dos seus genitais, não pola igualdade da sua mente. A pulsão pola soberania é comum a muitos outros desafios da normatividade, que cobram expressões diferentes nos diversos contextos sociais, mas que consistem basicamente na mesma resistência pré-racional a submeter-se a imposições de qualquer construção uniformizadora de rango moral pretensamente superior mas na prática histórica presente só nas situações de totalitarismo. A realidade é que a unidade de condutas, identidades, práticas e disposições só teve e tem lugar nos períodos históricos e espaços em que negar-se a ela acarretava e acarreta a morte imediata, a tortura ou a escravatura. Esta evidência deveria ser suficiente labazada ideológica para quem esgrime um pretenso desenho natural da espécie e portanto das sociedades e da sua ordem económica. Na verdade, se tal desenho existir, radica na complexidade evolutiva da própria mente, que imagina poderosamente formas máximas de liberdade e utopia, e consegue que o ser caminhe face a elas, até arriscando-se à morte ou a uma dura repressão.
A mesma vontade emancipatória subjaze a concepções sobre a sociedade, a cultura e a língua que se concebem e experimentam como próprias, longe de qualquer debate inútil sobre a essencialidade se “o são” ou não. A identificação com uma dada maneira de conceber o instrumento próprio de falar o mundo, o que sai da mente até à boca ou às mãos em frações de segundo, pode ser também tão forte como qualquer outra forma de identidade, esse processo relacional que consiste em a pessoa se orientar positivamente face a um dado grupo humano, com a expetativa de ser reciprocamente reconhecida nele e como parte dele. Seria infrutuoso suster, como faz o mais tosco liberalismo, que tais identificações não existem, e que o desejo de emancipação da consciência e do ser é puramente individual, cego ao entorno. A evidência é que as formas de conceber o imaterial das línguas e das culturas, e de agir para elas, são também coletivas, a variados níveis de generalidade. A ninguém lhe ocorreu individual e iluminadamente a necessidade histórica de reintegrar uma língua e uma cultura com o amplo âmbito social onde nasceu e se desenvolveu (isto é, de transitar dum estado cultural para outro), de igual maneira que a íntima necessidade de reintegrar-se com uma identidade de género distorcida pola fisionomia e/ou o polo que se concebe como um diacrítico genital não foi nunca uma invenção puramente individual, mas um agir coletivo em movimento, fruto do desejo emancipatório humano.
Portanto, trans ou reint? Qual (pseudo)prefixo refletiria melhor as dimensões de trajeto, mudança e reencontro na passagem entre dous estados? Por acaso reintrans? Generalizar sobre o enquadramento e a expressão mais acaída não só seria banal, mas contraditório, porque a atribuição duma única etiqueta para o que são numerosos projetos de anagnórise com o género ou com a língua — essas maneiras de simbolizar o tormentoso engranzamento pessoal com a natureza social — representaria, paradoxalmente, uma outra forma da normatividade que se quer combater. Temos é línguas, universos conceptuais, identidades linguísticas, e temos é corpos, sensualidades, e géneros ocupando o mesmo corpo, tantos como nos permitir a nossa própria regulação interna que emerge da ética de existir, e que afinal escapa, felizmente, qualquer regulação externa, por muito de “sentido comum” que parecer. Nenhuma Lei Nacional vai matar nunca os seres de palavras e de prazer que levamos dentro. Todxs somos trans e todxs somos reint, todxs temos uma convicção de que, se fracassarmos na consecução do que procuramos intimamente porque sentimos que nos constitui, não será porque errávamos em procurarmos esse trânsito, como a pragmática do disciplinamento nos quer convencer. No caminho, bojudos e normativos varões (quase sempre), sim, poderão rir de nós e sorrir deles próprios por acreditarem ter alcançado as máximas alturas epitómicas do desporto capitalista do sucesso (a estabilidade de levar “a razão”, sobretudo a Nacional). Mas nunca saberemos quanto há nesta posição deles de genuína sensação de sucesso ou de consensual histrionia subproduto dum longo tempo de triste possibilismo. Nós, ao nosso, a falarmos e a falar-nos por dentro, que assim crescerão, naturalmente (socialmente) as redes humanas da palavra e do ser nos nossos sinónimos trans, reint, e outros vários. Reintrans.