Literatura Zonal

Publicado n’O Pica-folla, Maio 1998

Imagino que, duma vez mais, será a minha uma das poucas vozes discordantes a respeito de como se vê o idioma galego e a cultura feita na Galiza. Não me importa muito, estou afeito. Não me importa “ter razão” ou “estar errado”: o que me importa é como se vai impondo o silêncio sobre as mentes, e importa-me, ainda que for, apenas porque parte da minha nutrição perante a desídia quotidiana é duvidar da obviedade das cousas. Se esse libertador exercício de debate interno se nos nega, pouco nos resta já. Por isso, vencendo o crescente cepticismo que ameaça com descebralizar-me ainda mais, aceito o convite a contribuir para esta celebração, espero que crítica, do chamado “Dia das Letras Galegas” de 1998.

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Exilados sem querê-lo

Publicado em Çopyright 24, 15 Dezembro 1996 • N’A Nosa Terra 761, 16 Janeiro 1997, p. 27

Por primeira vez na minha vida, olhando para a corunhesa rua São Andrés desde a janela da sala, tive a clara sensação de ser um exilado, um habitante dum país inexistente que desfaz a linha das fronteiras como uma enorme e suave língua geológica. Não me refiro a essa alienação que muitos sentimos às vezes por vivermos numa Galiza indistinta, rota, apenas suturada temporalmente pelos esforços pontuais duns poucos resistentes que sabem que morrerão no esquecimento: os marinheiros que trocam uma esmola de sardinhas por pneus queimados nas estradas, os poucos políticos que com constância percutem nos volumosos muros interiores das instituições espanholas, os insubmissos ou os desorientados que desde a Praça da Quintana de Compostela contemplam com nostálgica heroína nas veias o crescimento das Pátrias oficiais como grandes aves de artifício. Refiro-me a outra e confessadamente estranha sensação: a de ser um visitante temporal na Galiza chamada moderna, enquanto outro país sem bordas nem monarcas que também poderíamos chamar a Galiza, ou Portugal, ou longa língua de terra onde todos os Setembros vão morrer de idêntica maneira os sargaços, fica em parte oculto por uma névoa de séculos e em parte oculto pelo discurso dos mais fortes.

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Elites lusófonas? Oui, merci

Publicado em A Nosa Terra 653, 22 Dezembro 1994, p. 28

Hoje fui ao Corte Inglês e comprei os quatro compactos do cativante grupo português Madredeus. Não sei que me satisfaz mais: a sua música ou o elitismo de saber que, entre escrito e escrito ou entre cigarro e cigarro, ainda tenho tempo de escutar. Enquanto sigo as letras impressas, encanta-me também pensar que não lhe se entende tudo à solista de primeiras porque é cantado. Deve ser a mesma sensação de iluminada reverência que tinham as nobrezas proto-alemãs do XVIII ao escutarem o bel canto italiano, ou os aristocratas russos finisseculares ao escutarem as lições de francês das filhas, ou a que sentiam os latifundiários autóctonos da Índia ao escutarem um recitado em inglês de Cambridge. Esse foi sempre o problema das elites da Galiza: não olharem para fora. Cada país precisa olhar para fora. Os catalães, para a França. Os japoneses, para a China. Os portugueses, para a Espanha.

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“Acento galego” e resistência cultural

Publicado em A Nosa Terra 554, 28 Janeiro 1993, p. 25

A medida que nos envolve cada vez mais provavelmente a maior contradição cultural da era moderna (a suposta unificação dos povos de Europa, que contrasta com o ressurgir das identidades locais), surpreende-me também cada vez mais viver num país que esquece gradualmente não como é, senão mesmo como era ontem, antontem, nesse longo período preto mas precisamente por isso intenso da repressão cultural da pós-guerra. A escusa para as minhas reflexões surge esta vez duma notícia dum sucesso aparecida na imprensa local mas com duvidosas miras universalistas que às vezes não temos mais remédio que comprar.

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Nós, os extraviados

Escrito em Berkeley, EUA • Publicado em A Nosa Terra

A minha geração nasceu do frio exílio das cidades. À noite baixávamos com fachos acesos por túneis improváveis, caminhávamos de espaldas à procura de sombras míticas descritas em tratados de luta, e ao sair críamos repartir o pão e a palavra dum combate que já mais havemos de ganhar. Por enquanto, esquecíamos na casa essa continuidade de pais que apesar das décadas se amavam, e, por vivermos sem lhe dar cara a um hábito que víamos alheio, no decurso da nossa ingenuidade perdemos a maneira de querer-nos. Durante anos cultivámos cegamente noites húmidas, beijos que sabiam cada vez mais a quotidiano pergaminho, essa inverniça tradição de saudar-nos em pares à entrada duma casa que inutilmente quigera reproduzir a nossa infância, e mesmo alguns cometemos a falta de crer-nos intemporais nos nossos filhos de cor imaginária. Agora, de novo em roupas de pouca consistência, com o peso de tantos manuscritos que fingimos, alheios no desesperado coração dum tráfico de dias, descemos como antes a figuradas tobeiras clandestinas onde o fumo desenha fantasmas que já nem sequer podemos reconhecer sem medo. Mas hoje não procuramos o Mito senão algum pretexto.

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Viet-Nam, 1936

Publicado em A Nosa Terra 353, 8 Setembro 1988, p. 20

O Horror só tem um nome múltiplo mas idêntico que levamos inscrito na pele da mão, que espero que jamais desapareça da memória, que merece permanecer, e doer, e fazer que às noites nos ergamos de súbito dum pesadelo de fogo e fumo e rebúmbio infernal de gigantescos insectos bombardeando com morte corpos sem defesa. Esse nome idêntico é mil novecentos e trinta e seis, é Viet-Nam, é a odiosa guerra suja da Argentina, é o Golfo Pérsico onde os rapazes impúberes são enviados a acribilhar velhos sem esperança de voltar. O nome de Viet-Nam, simplesmente, resume uma era monstruosa. Os milhões que dalguma maneira vivemos um viet-nam pessoal composto de experiências ou memória temos a necessidade íntima e a obriga histórica de lembrá-lo, para que os monicreques imberbes que exibem os atributos sexuais dos seus ciclomotores em frente das cafetarias da cidade não esqueçam jamais de onde vêm, quê devem à nossa história assassina, como se mataram as famílias numa alvorada preta que só aos ingénuos lhes parece ridículo lembrar.

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Falar espanhol em galego: A ave e o mito

Enviado ao diário Atlántico; não publicado

Dizem as fontes mitológicas que cada vez que um fénix renascia das suas próprias cinzas era já um tipo de animal distinto.  Desconhecemos as aparências concretas do animal ressuscitado, a sua morfologia e hábitos, o seu voo.  Às vezes esta ave reencarnava em algo semelhante a um cisne e talvez antes de morrer de novo cantasse.  Em cada transmigração, o único que realmente conservava do passado era a sua natureza de ave e, sobretudo, o nome.

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