Vítimas do terror

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O terror não consiste apenas em encontrar-se de súbito rodeado duma floresta obscena de carne humana ensanguentada e metralha. Não consiste apenas em sentir o frio do metal na caluga e aguardar, aguardar a bala eternamente. Não consiste apenas na escuridão do calabouço, esse zulo democrático, esse anti-útero do Estado. Nem na ignomínia do fato laranja, da tortura com cães, das mãos infantis talhadas com machete, das praias bombardeadas, do corredor da morte. O terror começa na mente masculina, na quotidianeidade das cozinhas, na primeira labaçada, no primeiro insulto, na violação diária da dignidade. O terror é a mais poderosa fantasia sexual dos varões que levam mísseis entre as pernas e grandes facas erectas para matar, sempre para matar, para roubar, possuir e depois matar a carne usada que já não serve.

Todo o terror é político, como a mente. A mesma mente que agora faz reconstruir o cenário do assassínio é a mente que o concebe antes, como um plano estratégico de conquista. Desde há milhares de anos, o exército mundial dos varões planifica o lento genocídio. Seduzir, induzir, enganar, atrair com palavras ou com gestos, e depois possuir, violentar, utilizar, exterminar. O corpo da mulher está em usufruto do terror. Cada vez que o terror mata uma mulher, a mesma vesânia histórica reproduz-se. O terror mata-as na casa, na rua, num deserto em guerra, num prédio desabitado, com luz, às escuras. Mata-as com gasolina, com facas, com metralha, com as mãos. O varão mata-as protegido pola lei, legitimado pola propaganda, justificado pola exaltação universal do corpo que ele não tem. A mente do varão sofre o corpo que não tem. Porque, no fundo, a mente do varão terrorista só se vê a si próprio como corpo. Todo o mundo é carne para o terror do varão.

Mas as vítimas do terror não se organizam. Não saem em brigadas de voz a encurralar o terror. Não exercem a sua força, a da metade da humanidade, em armas contra o varão, contra o terror. O terror inflecte nas suas possíveis vítimas indignação e ira, mas não induz à revolta. Porque a revolta, a revolta verdadeira, consistiria numa insurreição de classe muito mais poderosa do que todas as que a História contemplou. E a mente masculina do terror que rege o mundo não pode permiti-lo. Assim, cada poucos dias, surge a notícia do assassínio. Lemos os jornais, sentimos a náusea, a ânsia de vingança. Mas o tempo passa, o tempo fundado por um deus atroz continua a passar, enganoso, enganando a memória. O varão dosifica o terror como um preparado homeopático contra-natura. E as vítimas suportam a regulada barbárie do terror como se fosse esporádica, não um fiel produto da mente masculina.

Todo o terror é politico, como a mente. A política do terror mora nos actos mais miúdos, no sagrado seio triangular da Família, no sagrado seio dos Partidos, no seio do Trabalho e da miséria. Hostes de mulheres levam dentro corpos futuros para o prazer do terror, nova carne para o longo genocídio. Varões desenham em mapas militares, jogos eléctricos e hormonadas conversas os seus planos de conquista. De novo no Verão os números sexuais soam sem controlo. Nos televisores refulgem líquidos limpadores de corpos, de cozinhas. Mulheres continuam a esmolar trabalhos provisórios, nutrir o corpo do varão, coser o uniforme do varão, cuidar o filho do varão, sempre lavar os fluídos espessos do varão. Lustrosos generais ejectam enormes pénis de metal que sobrevoam os desertos. Estoura o sémen. E no calabouço dum prédio desabitado aparece uma outra vítima do terror.

Para o Terror, todo o mundo é carne feminina.

Matar mulheres pobres com palavras

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Vi várias vezes o vídeo do assassínio de María Rosario Endrinal Petit a mãos de Ricard Pinilla, Oriol Plana e Juan José M. em 16 Dezembro 2005 em Barcelona, para procurar compreender melhor os signos da barbárie. No acto, paradigmático de uma vesânia diária assumida polos mentecaptos como “incidentes isolados”, concentram-se três contrastes básicos de sentidos que articulam a dominação na sociedade do Capital (polo menos nesta; talvez noutras também, dirão os ultraliberais; mas eu não vivo noutras, e outras barbáries não exculpam esta). Um cabeçalho assim resumiria os eventos: Três homens jovens de classe meia-alta assassinam uma mulher maior pobre. Três contra uma, homens contra mulher, juventude contra madurez, mais ricos contra mais pobre. Maiorias, guerra de género, guerra de classe, guerra de corpos. Números, testosterona, força, armas: tudo encaixa. Só falta o elemento étnico, presente noutros ataques nas ruas das metrópoles do Reino.

Dous jovens entram num caixeiro automático de La Caixa, baluarte do capital nacional catalão, onde a mulher se dispunha a dormir. Insultam-na, agridem-na, um terceiro mercenário incorpora-se ao ataque, e finalmente os três matam-na prendendo-lhe lume com dissolvente. A câmara de “segurança” vigia que ninguém roube euros: está desenhada para proteger a propriedade. A vítima, sem dúvida, cometera muitos delitos: Era mulher, era desapossada, não ia limpa, e okupara com o seu corpo o recinto sagrado do caixeiro automático. Durante um tempo, ela conseguiu refugiar-se dos atacantes fechando-se por dentro. Mas enganaram-na, fingindo que um terceiro jovem queria entrar para levantar dinheiro. Cash, recendente cash. Ela acedeu ao inviolável direito (era, também, ex-trabalhadora de La Caixa) e abriu. Isso foi a sua tumba. As imagens revelam o rosto mirrado da assassinada, os rostos límpidos e penteados de dous dos homens. O terceiro rosto, de 16 anos, é mantido oculto informaticamente. Será por “respeito à imagem do menor”, é lógico: O pretenso assassino tem pretenso rosto. Os verdadeiros terroristas, de rosto em cartaz, são sempre estrangeiros, bascos e “moros” infiltrados no corpo nacional. E, além, aos 16 anos não se mata: brinca-se. Mostrar o rosto do assassino seria vulnerar os seus direitos. O cadáver, porém, já não os tem.

Os cépticos dirão que, mais uma vez, leio demais nos actos sociais. O assassínio poderia ter acontecido noutro lugar. O morto poderia ter sido um homem. Os assassinos poderiam ter sido também esfarrapados. A vítima poderia ter sido rica. Isto também acontece. Certo. E esses actos também significam. Mas há neste crime uma sobredose de sentidos sociais que o singulariza. Ele materializa com cheiro a carne queimada as palavras que amiúde escutamos e lemos, em distendidas conversas de café no trabalho, em jocosos comentários jornalísticos que se permitem dar a volta aos discursos progressistas como se estes já estivessem superados pola história, ou em nojentas mensagens nos foros de grilos da Internet, incluído este portal. Embora as palavras não causem o mundo, há quem diga, de ópticas diversas (Teun Van Dijk, , Ruth Wodak, Noam Chomsky, George Lakoff, Naomi Klein), que elas abrem as portas aos actos mais brutais. Ou que, polo menos, a relação entre actos, ideias e palavras é densa, e merece ser examinada. Localizemos onde localizarmos a fonte do assassínio (na cognição, nos discursos, nas relações materiais, em todos estes lugares), o facto é que a misoginia violenta, o classismo e o racismo proliferam cá e lá disfarçados de crítica pós-crítica, como se hoje em dia ser inteligente consistisse em, torpemente, esforçar-se por ir além dos discursos da igualdade. E os ultradireitistas do sociodarwinismo liberal esgrimem estúpidas etiquetas acusatórias, como a de “buenismo”, com que pretendem conjurar o seu monstruoso modelo económico e social, recriminando às vozes críticas de que estão a lamentar-se inutilmente. De que não vale a pena gritar. De que colocar-se eticamente apenas de um lado da geometria da dominação social é outra forma de paternalismo, porque (supõem os liberais) a glória da sofisticação na análise é mais importante. Já sabemos: para eles, é a pretensa sofisticação, não a crítica ética, que confere esse triste brilho fálico que procuram. Porque, afinal, sempre haverá mulheres pobres, e sempre haverá quem as mate. Afinal, algo teria feito a vítima. Afinal, os homens também são vítimas. Afinal, as mortas também são culpáveis.

Esse falso cepticismo, esse cinismo, é nazismo em estado puro. Ele proclama a supremacia dos corpos (masculino contra feminino, rico contra pobre, “branco” contra “preto”, “guapo” contra “feio”, “macho” contra “afeminado”), distorce o sentido da diferença, e glorifica a desigualdade económica e social a apresentá-la como uma insuperável evidência histórica. Também os três assassinos de Barcelona faziam piadas xenófobas, classistas, misóginas e homófobas nas suas conversas quotidianas. Faziam-nas como se aqui não se passasse nada, como se houvesse que rir sempre as graças dos nazis de qualquer origem, as que lemos amiúde cá e lá. Daí a assassinatos como o de Rosario Endrinal só há um par de passos. Hitler começou com palavras deglutíveis para a sua sociedade. Ser nazi não é só levar uma esvástica tatuada no peito: é também não ter mais nação nem mais língua do que um ódio de macho amargurado contra o poder da diferença, um projecto de extermínio. Nazis fora da História, já.

Hospital do Reino

Cheira a hospital. Nos arrabaldes da Espanha cheira a hospital sujo, barato, de corredores onde sobrevivem durante décadas os mesmos eivados. A luz dos hospitais de urgências é sempre cansa, mais amarela, incapaz de chegar até ao final do percorrido. As ruas da Espanha são os corredores deste hospital barato: vencidos prédios provisórios onde ardem de frio os refugiados. No último dia do ano cheira a esse formol usado dos hospitais de campanha, que são sempre os desta guerra. E os cirurgiãos percorrem rápido os corredores a amputarem velhas mãos que já não trabalham, a alimentarem com elas os distantes cemitérios, sempre distantes da terra onde nascera o corpo. Os uniformes dos cirurgiãos e os dos soldados, e os dos capatazes, e os dos catedráticos, e os dos financeiros, e os dos generais, são todos iguais sob a luz negra da pobreza. E os uniformes correm entre as salas de urgência deste hospital que é um reino em sombras. A luz da Espanha é um mito. Os eivados e idosos aguardam nas beirarruas da metrópole, e os soldados baixam das ambulâncias e amputam as mãos e a língua, como então, como sempre, como sempre que existe um antigo hospital de campanha que é um estado em ruínas. E os cirurgiãos botam os restos amputados no calabouço ou no fundo das usinas, dia e noite, noite sem dia nos camarotes de urgência. E os velhos pervagam polas ruas do hospital com a esmola de poucas moedas enrugadas, em irregulares batas sem lavar, e as mães solitárias prematuramente mirradas rebuscam no lixo urbano restos de órgãos para comerem na última noite do ano, como se acabasse o mundo entre as bombas que continuam a cair. Cheira a hospital em guerra, e é difícil afastar esta tenra náusea constante da consciência. De olhos estranhamente abertos polo sono, nos corredores deste hospital que é a Espanha procuramos com ânsia sempre os corpos familiares, os eivados nossos, a quem levarmos da mão fria respirando a sua pele que cheira a leite azedo até a uma tumba designada para deixarmos lugar a mais doentes, a mais velhos eivados, com uma miserável moeda do reino na algibeira da lenta bata sem lavar. E cada ano recomeça o ciclo, cada ano refornecem-se cárceres e obscuras usinas e hospitais do reino, tanta carne, tanta devoração oculta por proclamas. Cheira infinitamente a Espanha, a matadouro.

A rapidez do Discurso

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Em 48 horas, a Guardia Civil espanhola deteve dez membros da Assembleia da Mocidade Independentista vulnerando locais sociais de base, os detidos e detidas foram acusados de figuras estranhas, os jornais publicaram nomes e fotografias, as rádios arejaram análises e entrevistas, os políticos fizeram declarações das quais não se arrependerão, a web da AMI foi sequestrada pola Guardia Civil, outras foram obstaculizadas (como fechar o microfone a um orador; como faz a Radio Martí dos EUA interferindo as emissoras cubanas), a Internet e os correios electrónicos encheram-se de notícias, comunicados e protestos, houve concentrações, cartazes, panfletos, os dez detidos foram libertados provisoriamente, as rádios anunciaram-no sucintamente, e hoje é Quarta-Feira e continuam as nuvens. A rapidez do Discurso, que é também acção, ultrapassa a medida humana do tempo necessário para reflectir sobre os significados. Campanha político-policial-mediática, cortina de fumo diante do processo 18/98 do juiz Garzón, criminalização do nacionalismo, interferência nos processos de reforma estatutária, criação de fissuras no crescente soberanismo galego, em definitivo alti-baixos emocionais nesta versão distorcida da Política a que o Reino e ocidente nos têm habituados. Táctica deliberada, improvisação ou erro, já ninguém o sabe. Há tempo que o determinismo histórico morreu. Mas os factos e os efeitos estão aí, e não deveriam minimizar-se nem, muito menos, ridiculizar-se. Seria tentação qualificar a “Operación Castiñeira”, com Ñ espanhol, de absurdo fiasco. Se assim fizermos, estaríamos absorvendo (mais uma vez) o discurso hegemónico sobre a necessária Seriedade das forças da ordem: Olha aí, a polícia espanhola nem deter sabe, e são os salvadores juízes os que por fim situam as cousas no seu ponto, pois não há tais indícios de “terrorismo”, que alívio. Até Nós-UP se congratula da libertação dos detidos, como se esta libertação indicasse liberdade. Calculo que ré-encontrar companheiros é sempre gratificante, mas Madrid não é o único exílio. Esta ré-legitimação do sistema judicial espanhol pode ser calculada, pode não sê-lo. Em todo o caso, a arbitrariedade no disciplinamento foi sempre uma das características políticas do fascismo. Literalmente, do fascismo. Com Franco nunca se sabia quem podia ser detido ou não, nem por quê. Guantánamo não é apenas um reino remoto, mas uma ordem mental. O meu telemóvel pode estar em lista negra ou intervido, e eu sei por que facto trivial. O teu também. Não me preocupo grandemente, mas não estou habituado a dar as chaves das minhas gavetas a um estranho de uniforme. A imunidade do corpo, que é a nossa mente, onde reside a gloriosa Liberdade de Expressão, é já assunto do passado. E nós, a vê-las vir, porque os números eleitorais já nos cegam a necessária lucidez visionária. Sim, visionária (espero pacientemente os insultos), porque, chegados a este nível de cegueira, sermos visionários consiste simplesmente em vermos exactamente o que existe: uns empregados do Estado com passa-montanhas irrompem na sagrada propriedade privada a roubarem papéis, computadores e dinheiro. Levam dez pessoas para Madrid sem o seu consentimento. Acusam-nas de fazer cousas, em linguagens que os detidos talvez nem compreendam: a noção de “delito” remete para uma ordem total compartilhada, e assumir a noção pressupõe inscrever-se voluntariamente nessa ordem. Não se pode exigir que a mente do Reino entre na mente da AMI, é excessivo. Até os ultraliberais sabem intimamente isto, embora amiúde ajam como polícias. O que se pode exigir, sim, é que a arma do polícia não me mate, porque eu não pedi ingresso nesta guerra, neste tipo de guerra. Nem que a bomba de gasolina estoure no teu nariz, porque tu não pediste entrar neste tipo de guerra. Claro que somos também culpados, mas este tipo de guerra não se merece. Mas, que fazer, se o terror é semeado ocultamente, polos bispos, contra uma infância forçosa em cárceres educativos teocráticos. Que fazer se o terror adquire mais tarde a máscara de uma bomba de fósforo branco que monstruosamente abrasou corpos, de outra bomba que felizmente não cortou a carne, ou de um sequestro legal na manhã cinzenta de Compostela. Tudo é o mesmo terror, senhores polícias: não foram as vítimas quem inventaram as bombas. O Modelo foi criado por vós, e ainda vos funciona. Parabéns, tristes parabéns: bem sabedes que isto não é só um telefilme. Por isso, desde a distância do Discurso, eu creio compreender o que é um ataque físico de terror, deixar de respirar, e intuo que Maria A. nunca o perdoará. Porque ainda resta futuro, e exércitos de vários lados quererão forjar mais cicatrizes para medalhas. E a gente continuará a sofrer um excesso de abnegados funcionários da bala, heróis, salvapátrias. Saber isto não ajuda a compreender-nos politicamente, mas é quase o único que podemos constatar. Em toda lógica, daí à soberania da mente deveria restar pouco. Mas, alguém confia nesta frase?

Matar a Guerra: Em memória de quatro vítimas

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Quem isto escreve nunca morrerá fulminantemente asfixiado numa manhã de nuvens dentro dum depósito de metal sem oxigénio. Nunca será sepultado dentro de uma máquina de ferro por uma montanha de lixo urbano. Nunca cairá funâmbulo dum telhado onde andava a colocar tijolos para os prédios de milhões de euros. Nunca será intoxicado por insecticida utilizado na limpeza duns grandes armazéns. Quem isto escreve só morreria no seu trabalho esbarrando ridiculamente num papel de exame esquecido no chão, nos polidos corredores do seu edifício oficial, enterrado debaixo duma culta livraria após um enorme terramoto, electrocutado polo estouro dum teclado plástico, infectado pola tinta duma estilográfica deficiente.

Eu nunca serei vítima da Guerra. A maior parte dos que me leiam, tampouco. A maior parte dos outros que escrevam, tampouco. O deputado que perguntará sobre estas mortes nos parlamentos tampouco morrerá de afonia. A polícia do parlamento não matará o deputado díscolo. Os responsáveis das empresas homicidas não serão executados. A Guerra pagará com ouro o sacrifício das suas vítimas, e depois a vida, imagem especular da morte, continuará. E nós continuaremos a pagar os barcos da Guerra. Continuarão a crescer os altos edifícios, os parques de lixo urbano. Continuará a asfixiar-se a força do trabalho em tarefas inumanas. E continuarão a nascer corpos, a imigrarem corpos, para limparem por duas moedas as entranhas das bestas metálicas de Ocidente, para limparem sempre os detritos dos poderosos.

A Guerra produz as suas primeiras vítimas na casa própria, no seu contorno mais próximo, e observa as respostas. É o seu calculado experimento. A Guerra é um preciso projecto, não um acaso. E a morte é um efeito colateral do trabalho assalariado. Desde que a Guerra é isto, foi sempre assim, e sempre continuará a sê-lo enquanto haja Guerra. Porque corpos há muitos. Há milhares, milhões de corpos dispostos a se arriscarem para alimentarem outros corpos. A Guerra sabe que a matéria prima do trabalho nunca é escassa. A Guerra pode escolher a carne, a melhor carne: para as minas de metais preciosos, para as vindimas de frutos circulares, para a construção dos refulgentes prédios, a Guerra escolhe sempre os corpos. E os corpos escolhidos entram nos furados da terra e nos intestinos dos navios para limparem o sangue das feridas. E às vezes os corpos devem suicidar-se por pão, e a Guerra sabe-o.

Por isso a Guerra ganha sempre. Até que a matemos.

Devastação do corpo

Publicado em Novas da Galiza 26, Janeiro 2005, p. 2

Confesso-o: há semanas começara a escrever para esta publicação um ordenado texto sobre a nação, sobre as nações, quando uma súbita doença de uma pessoa da família e um confinamento quase diário em hospitais fez-me pensar na dura evidência do corpo. Da fragilidade do corpo. Da sua essencialidade. Da sua inapelável realidade. E agora, poucas horas antes do prazo para este artigo, dias depois de corredores de hospital, de contemplar em quartos carentes infinitas tosses de anciãos, inacabáveis laios nocturnos, rostos decaídos, enormes soidades dentro da casca seca da velhice, compreendim que tudo revolve em torno do corpo, que contém a mente, que contém aquele falido artigo sobre as nações que felizmente nunca existirá. E compreendo que a política é a expressão do corpo, que a clara ligação entre um tsunami assassino e a miséria dum trabalho nos sujos arrabaldes da cidade reside na dimensão incombustível do corpo, a nossa única propriedade: a que nos forçam a oferecer como escravos, a que lanceiam os doutores e modernos druidas, a que é matada nas guerras, a que decai nas minas de carvão, nos prostíbulos onde jovens injectadas de morte são penetradas por armas de carne e depois sangram pequenos corpos clandestinos nas lixeiras. Tudo (o amor, a raiva, o trabalho, o sexo, o fruto que chamam a poesia) é a mesma massa de corpo, a mais elementar matéria que possuímos, a que eu alimento para ela alimentar os meus escritos. A humanidade é a matéria universal que é violada a diário por si própria. O corpo, casa do ser, cárcere e campo simultâneos, o corpo que limita.

Por isso, observar desde a mente do corpo o que acontece hoje no mundo só pode entristecer-nos. Algo está profundamente errado quando a mente se cega à miséria do mundo, que é simplesmente a miséria de milhares de milhões de corpos: quando a mente se nega a ver o roubo de uns corpos por outros, o tráfico de cadáveres em vida em que consiste o mundo. Alguma horrível cegueira nos invade quando não compreendemos em que consiste o espólio da força de trabalho, a soidade da pele da velhice que cheira a leite azedo, a penumbrosa prostituição como método, o brutal assassínio nas cozinhas de azeites requeimados e monótonas sopas amarelas. Dia após dia matando-nos o corpo e a mente da humanidade. Dia após dia renunciando à utopia, ferindo a massa orgânica do mundo. Eis a doença inacabável, eis o terror. E nós, cegos, silenciosos.

O Capital, fera imortal como todos os tumores, compra em grandes saldos os corpos, devora-os, devolve-os com outras formas no fumegante caldeiro das usinas, dos talheres clandestinos de lâmpadas poeirentas, no patamar de pensões esfregadas de joelhos com ressessa lixívia. O Capital compra corpos de escravos nas filas do desemprego, nas sonoras praças públicas, nas canteiras onde meninhos de raças magras batem pedras por centavos, nos gabinetes povoados de máquinas plásticas, nos campos arados por antiquíssimo ferro, nos bous que soçobram pálidos cadáveres de olhos muito abertos entre um mar de água e outro de ar. O Capital abre-nos diariamente a mente do corpo e inocula vírus como ideias. E pouco a pouco vamos pensando como Ele. E julgamos que sobrevivermos décadas assim é suficiente para chegarmos vivos até à morte. E assim ao longo da vida o corpo que nos contém vai supurando imperceptivelmente a sua dignidade, e vamos arrojando membros em cada trabalho provisório, e a nossa mente vai ficando em esqueleto de si própria. E o Capital cresce e impõe com a nossa conivência novas cirurgias. E um dia inesperado somos velhos, e nenhum humano lembra já que esse frágil resíduo de nós também faz parte do seu corpo, do corpo e da mente histórica da humanidade.

Por tudo isso, e por muito mais, é obsceno e cínico falar política sem pensarmos no corpo. Sem repararmos no diário latrocínio. Mas não resta muito tempo para ressuscitarmos. Estão a envelhecer todas as utopias. Se não resgatamos o valor do corpo e da mente que contém, se o mundo não reclama com unhas essa mínima dignidade de habitarmo-nos a nós próprios, então por favor não pidamos contas a ninguém, a nenhum dos nossos profetas de artifício. Não protestemos qualquer política, não nos sintamos legitimados a qualquer combate. Pois, se continuarmos assim, com tal docilidade, estaremos comendo-nos a nós próprios mas engrossando apenas a monstruosa anatomia do Capital. A nossa força de trabalho vive só no corpo e na mente que temos, que é um só, que é unicamente uma: provavelmente seja mais digno morrer que malvendê-los. Por isso sempre contra Espanha. Contra a ávida Europa que já espreita. E sempre contra esta forma de Galiza.

Eucaristia

Publicado em Vieiros • No Blogue de Esquerda

O fedor dos corpos apodrecendo começou a fazer-se insuportável quando não havia ninguém para os enterrar. Nos pequenos jardins dos pátios interiores, os débeis sobreviventes cavaram fossas orientadas para Meca até que nem os seus braços aguentavam o trabalho. Por fim, a última pessoa viva da família aguardava num canto escuro da casa a entrada dos soldados estrangeiros com enormes botas, berros e palavrões de salvação cristã. Meninhos magros bebiam água suja dos esgotos, comiam farinha crua, descompunham os seus ventres em qualquer lugar enquanto enxames de helicópteros sobrevoavam as ruínas da cidade. Extramuros, polindo fuzis e tanques, grupos de cruzados entoavam canções ao Salvador, oravam força para o combate. Dentro dos muros, abraçados a fuzis e lança-granadas, mujahedins entoavam canções ao Salvador, oravam força para o combate. Alá era grande e Deus era grande, e polo Leste, polo Oeste, exércitos de esfarrapados que comiam farinha nas ruas furadas da cidade deixavam as famílias para se unirem aos exércitos de suicidas. Porque não havia nada que perder. Nem que ganhar.

Fallujah é apenas um dos nomes actuais que compõem o rosário de massacres em que consiste o latrocínio. Fallujah são três sílabas metafóricas. Anos mais tarde, quando continuemos a redigir estas crónicas desde a velhice que se impõe como uma cobra (depois de décadas de perceber o fracasso, depois de décadas de não querer termos nascido aqui para, simplesmente, ficarmos em frente do ecrã e gritarmos contra todo tipo de mortes), Fallujah lembrará-se clandestinamente entre as poucas pessoas videntes que ainda existam. Mas Fallujah já nunca se poderá conjurar. Como tantos outros lugares na Palestina, nas Américas, no Camboja. Em Mauthausen. Em Cabul. Em Burundi. No Kosovo. Em Sarajevo. No colapso das torres de Nova Iorque. Num comboio de Madrid ou Moscovo. Numa escola da Ossétia. Em todo Nagasáqui. Não há possível comparança para estes nomes. Não se trata dum cômputo de cadáveres: nego-me a justificar rios de sangue com oceanos de sangue, ou o contrário. A quem agora esteja a fazer o cômputo das mortes de um e outro lado, que são o mesmo lado, lembro-lhes o procedimento da metralha nas entranhas: entra tão feroz e tão ardente que a dor não se nota. Em poucos segundos o sangue detém-se nas artérias, o coração pára. Alguém pode contar o que é sentir o próprio coração parado? Provavelmente nuns instantes transcorre toda a vida desgraçada de uma pessoa perante a olhada agonizante. Nesse momento a mente pensará no porquê de tudo isso. Verão-se mitologias salvadoras, túneis de luz ou paraísos. Verá-se um outro inferno, tão semelhante ao quotidiano. E depois mais nada: só uma outra cavidade na consciência dos restantes. Multipliquemos a morte, e multipliquemos assim a vesânia. Mas cada cadáver é idêntico: a maior aberração de que a espécie humana pode ser agente. Cada cadáver morre exactamente no último segundo. E depois absolutamente nada.

Porque os cadáveres de um lado e os cadáveres do outro lado apodrecem exactamente no mesmo lado: no lado escuro da História. São os assassinados por Deus, o carrasco intraduzível. O cadáver de Fallujah é produto do deus imperial que o mundo leva dentro. Acabar com deus consiste em recuperar, íntima e definitivamente, o lugar da espécie humana no planeta. Não um destino transcendente, não um alvo pré-escrito: sim uma utopia contingente mas de todo necessária, a revolta quotidiana que só pode ser fruto do mais elementar raciocínio. E Fallujah é um pesadelo. Ainda um outro pesadelo. Ou acordamos, ou os próximos cadáveres cairão cada vez mais perto, nos portais das nossas casas esfregados por umas moedas com semanal lixívia, dentro dos frigoríficos onde coabitam os nomes de alheias beberagens, nas nossas estantes rescendentes a madeira onde repousam as veneradas sentenças dos poetas. E os mortos petarão à nossa porta e colunas de sangue salpicarão o nosso limpo ecrã e não poderemos nem escrever esta raiva. E então, de joelhos, prepararemos água de esgoto para beber e farinha crua para comer, sangue e corpo de profeta armado, em obscena eucaristia.

“Mi terrorismo”: Como as palavras denunciam a verdade

Enviado a Vieiros

Numa entrevista feita por Federico Jiménez Losantos em la COPE na manhã do 12 de Março passado, quando se propagandizava ainda sobre a autoria de ETA do massacre de Madrid, ao então candidato do PP Mariano Rajoy escapava-lhe um significativo lapsus linguae, que ele auto-corrigiu, mas que explica muito sobre o tratamento do “terrorismo” em Espanha. O tema era, como não! (uma vez “cancelada” a campanha eleitoral) por quem votariam os espanhóis o 14 de Março:

“Y éste [a eleição de voto] es un problema de confianza sobre el que se debaten los españoles, de a ver en quién puedo dejar… en manos de quién dejo esto: mi país, mi bienestar y mi terrorism- y y y y mi libertad y mi vida” (Arquivo sonoro: http://www.cope.es/audios/manana/entrevista2_120304.wma ).

“Mi terrorismo”. Com efeito, no confronto eleitoral entre “ETA” e “Al-Qaeda” em Espanha entrou em jogo a questão da delimitação do que é “próprio”: do que é o “nosso” terrorismo (e o que lhe convém ao Estado Espanhol) e o que é “alheio”. Não para só Rajoy, mas para a grande maioria dos habitantes do Reino, existe a convicção de que ETA representa o “nosso” terrorismo, o interno, enquanto Al-Qaeda representa o terrorismo alheio, o estrangeiro, e, assim, é denominado às vezes “terrorismo internacional”. A falácia desta dicotomia é evidente, mas funciona para reforçar a ideia de Espanha. Farei-me temporariamente espanhol e farei-me parte dum “nós” inexistente para explicá-lo.

Para começar, tanto os bascos como os árabes estão entre “nós”, em Espanha. Nas notícias sobre o 11-M distingue-se significativamente entre os detidos “marroquinos”, “árabes” ou “sírios” e os “espanhóis” (como se um árabe não pudesse ser espanhol, ou um espanhol árabe), às vezes com detalhadas etiquetas, como a de “hispano-sírio” aplicada a um cidadão espanhol desde há anos que nascera num lugar que se dá em chamar Síria. Se se argumenta que os atentados, nos que morreram tantas pessoas com passaportes estrangeiros, foram contra “Espanha”, é lógico concluir que os ataques por residentes e cidadãos espanhóis também vinheram desde dentro de “Espanha”: também foram feitos por “Espanha”. Com efeito, alguns dos implicados na matança são residentes legais de Espanha desde há muitos anos. Três deles têm um DNI expedidinho por procedimentos idênticos ao DNI de Rajoy, de Zapatero, de Otegi, ou o meu próprio. Portanto, ou “Al-Qaeda” é também em parte espanhola, como a ETA (e portanto é o “nosso” terrorismo), ou nenhuma é “nossa”: as duas são exteriores (Euskal Herria, o Islão) e atacam o estado que as ataca. Se ao nacionalismo liberalista espanhol lhe importassem um figo os estados (o Estado só deveria ser um gestor e garante da “liberdade”, sobretudo a económica), por que negar-lhe a espanholidade ao espanhol “de origem síria”, ou por que negar-lhes o seu contributo para o fabuloso progresso do país a esses residentes legais árabes, que durante décadas pagaram obedientemente os seus impostos na nossa sociedade de mercado? Semelhantes aparentes contradições deram-se nos EUA após o 11-S, para apresentar sempre o “terrorismo islâmico” como uma ameaça “externa” contra um Estado natural, essencial e nacionalmente infalível. Mas a evidência é que o atentado de Al-Qaeda foi um atentado espanhol, isto é: tão espanhol como os da ETA.

Ou, se não, tão pouco espanhol: Ou jogamos todos, ou rompemos o baralho. Com efeito, as duas redes assassinas surgem fora do país Espanha (a ETA, em Euskal Herria e Bélgica; Al-Qaeda, nos EUA e Afeganistão). Mas seguramente é mais próxima a Espanha (mais “nossa”) Al-Qaeda do que a ETA. E com isto quero dizer que o ideário (?) de Al-Qaeda é muito mais semelhante à ideologia cristã conservadora do que o ideário (?) da ETA. É curioso constatar o descenso brutal do terrorismo do fundamentalismo cristão não estatal nas últimas décadas em todo o mundo, excepto, por exemplo, nas recentes matanças em Uganda polo chamado Exército de Resistência do Senhor. Os terrorismos do estado de Israel, dos Estados Unidos e desse “actor não estatal” (como o caracterizam os think-tanks ultraconservadores) que é “Al-Qaeda” compartilham muito mais que as bombas. Compartilham sobretudo três cousas: o monoteísmo como inspiração ou justificação propagandística, a meta da expansão territorial, e a guerra santa como método para estes fins. Lembremos que a noção de “cruzada” é apenas adaptação duma interpretação parcial da noção muçulmana de jihad, que significa guerra contra outros, sim, se é necessário, mas também guerra interna (“revolução interior”) contra o Mal. Para o sionismo expansionista (não todo sionismo o é), o território de Israel deverá chegar até ao Éufrates e Tigris, em pleno Iraque actual. O Islão é nem mais nem menos que todo o imenso território do planeta onde há muçulmanos. E o território a conquistar pola cruzada capitalista cristã é o da “globalização”, pois já sabemos que o capitalismo é só a expressão moderna e genuína do cristianismo, particularmente do protestantismo. As três formas de terror, portanto, são a táctica que têm os três fundamentalismos político-religiosos principais do planeta para levarem adiante as missões dos respectivos povos elegidos. E resulta que “nós”, os espanhóis (repito o truque retórico), somos fruto destas três visões monoteístas do mundo. Israel, Al-Qaeda, EUA, deus uno e trino: Pai, Filho e Espírito Santo da trindade, em competência mútua polo papel a jogarem no planeta.

Porém, esta explicação ideológica a três bandas não satisfaz um importante aspecto da realidade: o económico. E a realidade é que o mundo em conflito na altura (o mundo a conquistar) é sobretudo as terras e mares sob os quais há ouro negro, um território que se estende do Sara Ocidental até Indonésia, passando por várias zonas “geo-estratégicas”. É assim de simples. Como podemos esperar que fenómenos da transcendência como o terror selectivo estejam desligados desta realidade económica? É lógico então que pensemos num jogo mixto de conflitos e conivências entre estas três variantes fundamentalistas polo controlo de recursos essenciais. Porque, quando a história de classes pus as suas cartas mais duras sobre a mesa, por exemplo durante o período hitleriano, demonstrou-se que os interesses económicos se sobrepõem à pretensa ideologia religiosa: judéus ricos colaboraram com os cristãos nazis ricos, muçulmanos ricos deram-lhes as costas muçulmanos palestinianos pobres, cristãos americanos ricos mataram cristãos alemães ricos e pobres, e assim por diante.

Entre o 11 e o14 de Março passados, à direita liberal e conservadora espanhola convinha-lhe que o inimigo fosse “interno” (mi terrorismo). À direita social-democrata, convinha-lhe que fosse visto como “externo”, só por necessária hidráulica eleitoral. Mas resulta que não há nada externo nem interno nestas duas formas de morte programada: as ordens para matar sempre vêm em última instância do capital. Se ETA sempre foi a escusa para a nacionalismo liberal estatal contra os interesses dos nacionalismos liberais subestatais por construírem estado, “Al-Qaeda” é o braço armado dum poderoso capital oleogárquico transnacional para atacar selectivamente estados, quer dizer, grandes corporações económicas.

Na entrevista citada, Rajoy tinha razão, mas devia ter-se auto-corrigido doutra maneira. Evidentemente, uma eleição “democrática” consiste em depositar o voto naquele grupo de poder que vai gerir melhor “mi terrorismo”. Rajoy deveria ter dito: “mi país, mi bienestar y mi terrorism– quiero decir, mi Estado”.

Golpe económico de ‘Al-Qaeda’?

Publicado em Vieiros

Os resultados das eleições gerais espanholas podem ser fruto dum golpe do terror económico internacional. Uma série de circunstâncias faz pensar num plano detalhado de obscuros interesses, em última instância ligados à crise energética mundial e à luta (verdadeiramente) polo controle dos recursos: o petróleo é absolutamente crucial para a indústria pesada, incluída a armamentística. Dentro da obscena lógica do capitalismo internacional, a matança de Madrid é um sintoma de que, na guerra económica, as oligarquias devem respeitar certas regras de jogo, polo seu próprio benefício. Enumero apenas alguns dados e hipóteses, para que quem tiver mais inteligência, as ligue e extraia conclusões. Tudo isto é tão especulativo como grande é a minha ignorância de muitos factos. Em todo o caso, quando se dão eventos históricos desta magnitude é legítimo perguntar-se: A que interesses beneficia a nova situação?

Concorrem nestes acontecimentos vários factos recentes. Podem ser coincidências, ou pode ter sentido ligá-los. Em 5 Dezembro 2003, dous dias antes das eleições parlamentares russas, uma potente bomba estourou num trem de proximidades em Yessentuki, em semelhantes circunstâncias às do massacre de Madrid. Eram as 7:45 da manhã. No ataque morreram mais de 40 trabalhadores e estudantes. A explosão destroçou parte do trem em maneira semelhante à das bombas de Madrid. Discutiu-se se fora um ataque suicida ou uma acção por controle remoto. Putin atribuiu o atentado a “separatistas chechenos”. Nunca se soubo quem fora. Dous dias depois, Putin ganhou esmagadoramente as eleições. Em 29 Dezembro foi detido um tal Israpilov como implicado nos ataques. Encontraram-se-lhe explosivos e material para estourar bombas por controle remoto. Em 2001, o Ministério de Interior espanhol informava que alguns dos detidos de “Al-Qaeda” tinham ligações com o terrorismo checheno. Há pouco detiveram-se ainda mais membros de “Al-Qaeda” (dos quais se falou muitíssimo menos que dos da ETA). Em 12 de Março informava-se que agora mesmo o exército EUA está a realizar operações em Algéria contra as brigadas salafistas, que têm membros residentes em Grã Bretanha, França e Espanha. O massacre de Madrid tivo lugar no dia 20 Muharram 1425 no calendário religioso islâmico (de base lunar, não solar), exactamente no aniversário islâmico das grandes manifestações em Espanha e todo o mundo contra a invasão de Iraque (23 Março 2003, isto é, 20 Muharram 1424). Curiosamente, o vídeo de Abu Dukhan Al-Afgani (“Pai do Fume, O Afegão”; Gebel Abu Dukhan é o nome duma montanha em Egipto) que reivindica o atentado, refere-se a um aniversário cristão (“Dous anos e meio depois” do 11 S), o qual faz duvidar do carácter fundamentalista religioso dos autores, da verossimilhança do vídeo, ou de ambas cousas. Em qualquer caso, ao dia seguinte do massacre, milhões de pessoas saíam de novo à rua no Estado Espanhol contra o terrorismo, quer dizer, contra a guerra. Dous dias depois, as eleições espanholas forçavam um novo governo.

As circunstâncias políticas dos países da “aliança” também merecem comentário. Parece que, pouco antes dos atentados, o Partido Popular estava a perder pontos e até a maioria absoluta. Mas para nada estava assegurada tal vitória do PSOE. Por sua parte, o Partido Republicano dos EUA já começara a sua campanha eleitoral capitalizando a mensagem antiterrorista até com imagens do remoto 11 de Setembro 2001. Mas existe também a impressão de que pode ganhar o candidato democrata, John Kerry. Portanto, de cumprir-se alguns prognósticos, sem o atentado de Madrid poderíamos encontrar-nos com um binómio Kerry-Rajoy, não já com o tandem Bush-Aznar. E Blair está também debilitado. Bush representa a possibilidade duma nova intervenção em oriente médio (Irão, Síria) polo controle dos recursos energéticos. Kerry pode significar um hiato táctico na campanha de terror contra o Golfo Pérsico, um hiato no qual, sem abandonar o Iraque, os interesses se dirijam agora a África Ocidental, com grandes reservas de petróleo ainda sem explorar (sem dúvida um novo “golfo pérsico”, como alguns analistas o chamam, mas sem as turbulências daquele). África pode ser, por uma série de razões, um alvo militar e económico muito mais fácil para o capital ocidental.

A presença de tropas ocidentais em Iraque garante o estabelecimento duma “constituição democrática” que ameaça as famílias oleogárquicas do Golfo. O “efeito dominó” dos ataques de Madrid pode acelerar a retirada de tropas ocidentais de Iraque, uma situação mais aproveitável para o “fundamentalismo islâmico” (quer dizer, os oligarcas sauditas, “Bin Laden” incluído). Certo, a possível presença de tropas conjuntas da ONU no Iraque não elimina totalmente o risco de ataques em países ocidentais. Mas é possível que a nova constituição definitiva (?) que surgir das eleições em Iraque (não antes de finais de 2004) tenha muito pouco a ver com a provisória actual. Em todo o caso, uma “democracia” no Iraque debilitaria a autocracia saudita, por exemplo, e certos opressivos valores do “Islão” em que se escuda a sua forma de dominação.

A tragédia de Madrid e o resultado eleitoral em Espanha podem precipitar uma reconfiguração das peças na guerra económica internacional. A retirada das tropas espanholas poderia relaxar a ameaça de mais atentados em território espanhol: simplesmente, o terror é uma táctica, não um estado permanente de cousas. Mas é claro que outra parte beneficiada é “Al-Qaeda”. O ataque demonstra que, quando se vulneram flagrantemente as regras da guerra santa entre as grandes famílias económicas (uma vulneração que começou muito antes do ataque do 11 S 2001, que pode ser interpretado como uma advertência perante um plano já pré-desenhado dos EUA para invadir o Afeganistão) pode haver terríveis consequências. A capacidade de pressão do “terrorismo islâmico” é, neste sentido, muito grande. O petróleo está fundamentalmente sob os “seus” territórios, nos “seus” países. Os interesses de “Al-Qaeda” não são só recuperar os “seus” territórios (todo o Islão!, incluindo o Iraque) para reestabelecer um regime teocrático medieval, mas também ter bons clientes petroleiros entre os países industrializados: a China, cliente de Irã; Europa e Rússia, clientes do Iraque; EUA, cliente de Arábia Saudita. Donos do seu petróleo, os oligarcas poderiam negociar mais facilmente com uma Europa mais dócil militarmente (Alemanha, França, uma Espanha reincorporada, uma Rússia de Putin) do que o fazem com o ávido eixo anglo-saxão. E a sua mensagem é que, se a voracidade do grande capital industrial de Ocidente deseja este petróleo, agora que só restam tão poucas décadas dele, deve aprender a pedi-lo e a negociá-lo, sobretudo quando as famílias oligárquicas da região têm de garantir também a sua distribuição para os próprios interesses da sua classe. O capital industrial americano, por exemplo, deverá diversificar os seus alvos de “segurança energética” (algo explícito, além, nas próprias recomendações dos think-tanks conservadores americanos), olhando para a África e para a América do Sul. Por isso, espero atinar com a hipótese de que “França” ou “Alemanha” não são objectivos de “Al-Qaeda” na altura. E espero que esteja errada a hipótese de que sim que o são “Grã Bretanha”, “Itália”, “Polónia”, “EUA” e “Austrália”, estes dous últimos, com próximas eleições em finais de 2004.

Com a invasão de Iraque, o sector hegemónico do capital espanhol (“Aznar”) apontou-se a uma viragem arriscada: favorecer-se dos EUA para as contratas petroleiras em Iraque, e talvez para a exploração do possível petróleo das Ilhas Canárias e do seguro petróleo frente à costa do Sara Ocidental, calculando que dentro do clube de Europa não poderia competir com economias mais fortes polo reparto dos recursos. Numa ocasião, dantes da invasão de Iraque, Aznar disse-lhe a Zapatero no parlamento: “Se você estivesse no meu lugar, faria o mesmo”. O apoio de “Espanha” aos “EUA” era, portanto, uma questão de Estado: de assegurar-se o acesso aos decrescentes recursos por décadas por vir. Essa política está a fracassar tragicamente, com milhares de mortes no Iraque, Marrocos, Turquia, Espanha. Agora o relativamente modesto capital industrial espanhol deveria restaurar alianças com o europeu, sem pretensões de grandeza económica, e com muita cautela perante os actuais e futuros detentores do petróleo mundial.

Mas provavelmente ainda restem muitas décadas de tragédia: até que dure o petróleo. No entanto, como sempre, será a gente de toda parte quem continuará a pagar o piche com sangue.

Aquelarre

Publicado no Semanário Transmontano • No Portal Galego da Língua

Depois da Grande Finale eleitoral de hoje, há jogo o domingo em España. Eu vou jogar, vou votar, vou introduzir entintadas papeletas num féretro pequeno donde sai o fumo dos ausentes. São féretros que cheiram a Iraque, Palestina. Levam as letras de Alá em tinta de petróleo. Os versículos do Al-Corão chegam à tua casa em recolhidas papeletas. Cada profeta canta as suas virtudes na única Língua do universo. São todos enormes ídolos masculinos, representados sem imagens, representados por palavras sagradas. Vou votar no dia 23 do mês de Muharram do ano 1425 após a Hégira do profeta, no sonoro 14-M 2004 após a Morte do profeta, que era o mesmo ser monstruoso. Vou votar contra mim próprio, pois cada partido ao que vote é contra mim próprio, cada brigada de Abu Hafs Al-Masri reencarnada em brigada eleitoral, ou viceversa, que são todos o mesmo ser monstruoso, com várias cabeças comparáveis e uma única devoração unánime. Vou votar a parte desse monstro, aquele que ainda não me devore a ilha de utopia que sobrevive no meu centro. Vou votar contra a palavra, com o absoluto silêncio dos altivos vencidos, vou votar na silenciosa língua portuguesa que hoje representa por puro acaso o mar dessa inútil utopia: vou votar sem língua, como as alimárias primitivas. No dia 23 do primeiro mês de Muharram quando Mohammed se expulsou a si próprio da Mecca como um Cristo do deserto para maior glória da vesânia, vou alimentar orgulhoso as filas do silêncio, orgulhoso da inútil resistência. Porque não quero ser esse dia ainda mais resto de mim próprio. Vou votar em preto, em piche e sangue, que são as duas cores das entranhas dos seres primitivos. E essa noite celebrarei com ânsia o banquete das cifras, e trocarei sons guturais com os outros amigos derrotados, e celebraremos o aquelarre, e esperaremos pacientes outra guerra refugiados debaixo dos tanques que são as casas, as garagens clandestinas, onde naufraga o amor, o sexo, que são o mesmo prelúdio da morte. E serei feliz, como hoje, como todos os seres primitivos. Aberta a boca ao alimento, enfrente do ecrã e dos pálios, aberta a boca enorme ao alimento.