A transmissão da língua na família e nas classes

Publicado no Portal Galego da Língua

Se, como se descreveu num texto anterior ( “‘Osmose’ e redes sociais na transmissão da língua’: O papel dos locais sociais” ) a língua é um recurso (cultural, simbólico, material) que se transmite e circula por redes sociais, a pergunta básica é como abordarmos a sua transmissão nas redes centrais na organização do corpo social: a família. A família é a estrutura que reproduz (em vários sentidos da palavra) a hierarquia. As sequelas da família como experiência duram toda a vida, até gerações: arrastamos os cadáveres familiares como os povos arrastam a sua história. Nações inteiras arrastam o seu cadáver, até que o fedor pesa de mais e uns iluminados cortam o saco vitelino dos mortos e nasce algo novo. Quisera poder dizer que a transmissão da língua galega portuguesa que no nosso país está a perder o apelido é algo crucial para a emancipação social. Mas provavelmente não o seja. A transmissão intergeracional da língua, e a sua necessária revolução formal, são simplesmente sintomas de resistência. Quando um colectivo é incapaz de levar adiante o seu ideal, algo substancial fracassa. Não é obrigatório que essa utopia seja assumida por todos ao começo: pode-se construir nação dentro da nación, língua dentro da lengua e da lingua, e resistir confiando que os cépticos que ficaram fora escolham esta opção como a menos má para a sua pervivência. Mas, como fazer isto, desde que âmbitos, com que tácticas sociais, com que discursos? Eis a múltipla pergunta que nenhum activismo linguístico da Galiza aborda na altura, provavelmente porque não sabe como.

Ignoro muito sobre a estrutura social da Galiza e sobre a própria estrutura da família como para oferecer, até para mim próprio, qualquer dica plausível sobre essas perguntas. Mas alguns fáceis razoamentos sobre as relações entre língua e sociedade, e algumas fáceis metáforas, podem ajudar a compreender a situação.

Nas sociedades de classes, a língua é sempre um instrumento para o que se deu em chamar “avanço social”. O “avanço social” consiste simplesmente na mobilidade social ascendente, que se dá quando, na hierárquica geometria da sociedade, um próprio ou, sobretudo, os seus filhos, chegam a alcançar uma situação “mais alta” em termos de recursos económicos, capacidade aquisitiva, reconhecimento social e símbolos de status. Estes recursos (dinheiro e símbolos) são de distinta natureza e circulam de maneiras distintas, mas no circuito de mercado -explica Pierre Bourdieu- são até certo ponto formas intercambiáveis de capital: eu exibo língua (uma língua dada), e obtenho posição social. Como, exactamente? Uma via é através do valor de troco específico da Língua (reflectido, por exemplo, em títulos académicos de valor estandardizado) em certos âmbitos ocupacionais (ensino, burocracia, serviços de tradução, “indústrias da língua”, etc.). Outra via muito importante é através do reconhecimento dos outros, em redes específicas, da minha exibição de Língua como símbolo legítimo, e, portanto, através da abertura de possibilidades de trabalho, casamentos “ascendentes”, etc.

É lugar comum dizer que, na Galiza, a aculturação e assimilação à língua espanhola (que chamarei La Lengua para não confundir-nos) têm funcionado segundo esta lógica desde, polo menos, começos do século XIX: a perda de falantes de galego explica-se comumente como um processo polo qual La Lengua foi “descendo” desde as capas altas (burguesia – classes meias – classes trabalhadoras), que tentavam emular e aproximar-se das superiores. Mas esta explicação não pode dar conta de tudo do que está a acontecer. Como pode “baixar” socialmente uma língua desenhada para subir? Acho que algo falha ou algo falhou ao longo do processo, e tentarei expor por quê.

Distingamos, em primeiro lugar, os âmbitos rural e urbano. No âmbito rural, relativamente imóvel e estável durante séculos em termos de sistemas ocupacionais e de relações entre as estruturas sociais básicas (família e paróquia), o uso do galego era exclusivo ou muito dominante nas redes sociais densas (muitas pessoas interligadas por contactos frequentes), fechadas (sem novas incorporações habituais à rede) e multiplex (ligações estabelecidas em função de múltiplos tipos de relação social). Assim, o indivíduo A relacionava-se com B em galego porque eram simultaneamente membros da mesma família, do mesmo grupo de trabalho na exploração rural, da mesma paróquia. As fortes funções relacionais da língua no seio da família transferiam-se assim às redes do trabalho ou da paróquia. O objectivo do ascenso social limitava-se a melhorar as condições económicas de geração em geração, a enviar algum filho ao exército ou ao sacerdócio, ou a emigrar. Mas não havia verdadeiramente muitas expectativas de “avanço social” a meio de uma Lengua espanhola que era materialmente estrangeira e, além de uns poucos usos rituais, materialmente desconhecida.

Com a urbanização (desruralização), porém, vão-se modificar substancialmente as funções relacionais do galego e da Lengua espanhola. Na cidade interage-se sobretudo em redes abertas pouco densas (contactos mais ocasionais) e simplex (relacionamo-nos com alguém em função de apenas um tipo de papel social: amigo/a-amigo/a, empregado/a-chefe/a, etc.). E a língua neutra por excelência para estas redes urbanas é o espanhol. A emigração à cidade significa a possibilidade de “avanço social”. E para avançar não só há que falar espanhol, mas, sobretudo, há que falar espanhol aos filhos, na esperança, tipicamente, de que os varões consigam um trabalho melhor e de que as mulheres “casem bem” (em inglês diz-se “casar para acima”, to marry up), quer dizer, casem com um membro dum estrato superior que já fala espanhol (é reconhecido o papel mais avançado das mulheres na mudança sociolinguística, até para -evidentemente- a assimilação à língua dominante). Portanto, para estes propósitos, no novo âmbito urbano pode-se manter em galego a comunicação “horizontal” entre pai e mãe, mas a comunicação “vertical” entre pais e filhos deve ser em espanhol para estes adquirirem os recursos dos quais os primeiros carecem.

Ora bem, se este mecanismo de ascenso e selecção social funcionasse na Galiza (se La Lengua tivesse sido e fosse um instrumento para o “avanço social” ascendente), realmente não se estaria a dar a situação actual, com tal penetração maciça do espanhol nos estratos baixos. É paradoxal que uma língua dominante “baixe” quando a sua função social é facilitar que a gente “suba”. Tentarei de expor uma explicação possível a este aparente paradoxo.

Numa sociedade galega com mobilidade social real, idealmente, se a maior parte dum estrato ou classe galego-falante inicial educasse os seus filhos em espanhol para emular as classes urbanas superiores e para permitir os seus filhos se relacionarem em (fictícia) igualdade com elas, é de imaginar que muitos destes filhos ascenderiam socialmente: obteriam trabalhos melhores, ou “casariam bem”. Agora as classes meias, já espanhol-falantes, seriam algo mais largas. Mas como a mobilidade social continua “para acima”, os estratos superiores das classes meias espanhol-falantes também ascenderiam. Quanto mais arriba, mais acumulação de capital (de vários tipos) se dá, mas não mais Lengua. Assim, o resultado da função mobilizadora ascendente do espanhol poderia ser uma ligeira ampliação das capas meias espanhol-falantes, mas não uma acentuada penetração da Lengua para “abaixo”, pois o grosso dos falantes desta língua (La Lengua) estariam de cada vez mais “arriba”.

Continuando com a idealização, uma minoria das classes trabalhadoras assimiladas ao espanhol não ascenderiam, claro, e manteriam o status dos seus pais, mas falariam já espanhol. Mas o influxo galego-falante do campo à cidade deveria manter em proporções mais ou menos constantes a distribuição das línguas no seio destas classes trabalhadores: maioritariamente galego-falantes. (Além, não todo mundo se assimila: continuaria e continua a haver galego-falantes que transmitem o galego na família). Porém, evidentemente a distribuição estável por classes não é o caso actual: não há nem manutenção da língua nas classes trabalhadoras, mas perda gradual. No âmbito urbano, o uso do galego com os filhos é terrivelmente minoritário em todas as classes sociais. Mesmo entre os pais, as cifras de galego-falantes são muito baixas.

Portanto, por que não se dá a situação típica de função da Lengua para o ascenso social? Será porque as classes meias assimiladas e já espanhol-falantes “descem” de status de geração em geração? Ou será, antes, porque, apesar da tentativa de ascenso através do idioma, as classes originariamente galego-falantes que se assimilam simplesmente não ascendem? Os pais educam os seus filhos em espanhol para lhes fazer a vida social mais fácil. Mesmo quando a língua da casa é o galego-português, a vida na escola, claro, faz com que os meninhos adquiram o espanhol como língua de relação com seu grupo geracional. Mas os filhos, relativamente falando, afinal não ascendem socialmente. Alguns poderão ter, em termos absolutos, mais recursos e uma vida mais cómoda do que os pais. Mas, como grupo, vão ocupar o mesmo lugar social subalterno relativo e ocupações comparáveis às das gerações passadas. Não “baixa” o espanhol não: deixam de “subir” os novos espanhol-falantes! La Lengua prometida oferece-nos um famoso provérbio que resume cruamente esta situação: Aunque la mona se vista de seda, mona se queda. Esta miragem de falso ascenso social através do idioma reproduz-se em todos os níveis. E os poucos galego-falantes que ainda mantendo o idioma ascendem, não fazem massa suficiente como para se constituir em pontos de referência social para a emulação de condutas por parte dos que permanecem em estratos inferiores: a experiência dos galegófonos “com sucesso” também é excepcional, não paradigmática dum processo social.

Portanto, a causa primeira da perda acelerada do idioma na Galiza não é o próprio mecanismo nocivo e universal de selecção social a meio do idioma: é a falta de mobilidade social real, de dinamismo económico (e disto há dados macro-económicos evidentes), até dentro da lógica capitalista. A lógica capitalista na Galiza leva décadas, se não um par de séculos, a jogar com o famoso fraude comercial da “pirâmide” a grande escala: oferece socialmente investir em Lengua prometendo o ascenso, mas os que ascendem já tinham Lengua e posição alta de antemão.

Em contraste, em qualquer sociedade verdadeiramente “de mercado” onde existe dinamismo, grupos sociais definidos e coeridos por cultura, origem e/ou língua podem chegar a construir o que se chamam sistemas ocupacionais próprios: redes económicas, comerciais, empresariais levadas por membros do grupo, com reprodução da divisão vertical do trabalho, com elites ou proto-elites, com hierarquias sociais internas (como de facto ainda se dá no âmbito rural), com alianças comprometidas entre elas, e portanto com potenciais económicos que se estendem além das fronteiras da “minoria”. São estes grupos que podem ameaçar as “essências nacionais” dominantes, porque os estratos inferiores não precisam emular as condutas das elites da cultura hegemónica: já têm as próprias. Em certas zonas dos Estados Unidos, por exemplo, a língua espanhola chegou nos últimos anos a constituir-se em “ameaça” para a anglofonia dominante (até o ponto de se promulgarem leis restritivas tipo English Only) só quando os hispanos imigrantes e filhos de imigrantes (e descendentes de populações hispano-mexicanas originarias antes da anexação polos EUA) chegaram a constituir, com os instrumentos da sociedade de mercado, sistemas ocupacionais próprios coeridos pola origem, cultura e língua comuns. Não me refiro ao caso (também excepcional) do Miami dos cubanos exilados ou auto-exilados, mas ao de cidades como San Antonio, em Texas. Por contra, mencione-se na Galiza algum sector económico (além da indústria editorial e editorial) onde a língua de relação seja o galego-português, onde trabalhem maioritariamente galego-falantes, onde se dê “lealdade” em termos de alianças económicas endógenas , e onde tanto a força de trabalho como a do capital falem em galego e falem aos seus filhos em galego. Mencione-se algum fragmento de cidade galega onde se poda dizer que, económica e socialmente, isso é a Galiza, não España. Compostela, tal vez? E essa é Galiza, ou “Galicia”?

Em resumo, sem sistemas ocupacionais próprios galegófonos, lusófonos, onde as gentes trabalhem, sejam contratadas e se relacionem em função de relações próximas, familiares, de vizinhança, etc., e que funcionem com capital “galego” e identificação “galega”, as poucas experiências das empresas “galeguistas” (as que se apresentam “graficamente” como tais) ficarão em ilhas folclóricas que emitem as facturas em dialecto, sim, mas nas quais a língua que continuará a ser um vínculo e um recurso é La Lengua. E essa é na prática a língua nacional (la lengua nacional, evidentemente), não o totem idealizado e ideologizado do Galego.

Qual a tarefa, então? A tarefa é expandir essas redes urbanas de classes meias (comerciais, pequeno-burguesas) lusófonas, quer dizer, abrir uma cunha social ascendente que, como a famosa faixa central da “língua sande” que é o catalão (comprimido tradicionalmente entre duas talhadas de pão espanhol: uma, a alta burguesia e aristocracia urbanas hispanófilas, e outra as classes trabalhadoras imigrantes), sirva de ponto de referência para o avanço social. Não são as Zaras as que fazem país, mesmo se fossem galego-falantes: é o famoso tecido social e económico urbano. Estamos (se estamos!) polo menos vinte anos por detrás de países como Catalunha nesta tarefa. E é duvidoso que a Galiza poda fazê-lo com a força económica própria, sem relacionamento efectivo transfronteiriço com as redes económicas lusófonas onde a língua (quer dizer, agora sim A Língua) sim que funciona -dentro da aborrecível lógica que faz as nações- como instrumento para o “avanço social”: Portugal.

Em definitivo, é o âmbito da família, como principal canal de transmissão intergeracional da língua, que o activismo linguístico lusófono deve abordar com uma seriedade que até agora está ausente. Mas tentei dizer que a “família” é sobretudo um agregado primitivo de corpos cinzelados para o trabalho assalariado: uma fábrica que fabrica operários a base de Cola-Cao. E a “família” falará a Língua que lhe prometa, eleitoralmente (nacionalmente), o pão para os filhos.

“Osmose” e redes sociais na transmissão da língua: O papel dos locais sociais

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Assistim ontem a parte do interessante I Fórum da Língua organizado polo Movimento Defesa da Língua, com a presença de numerosos colectivos luso-reintegracionistas do país. Estivem como público nas sessões sobre ensino obrigatório da língua, e sobre locais sociais. Uma das preocupações condutoras do que ali se falou referia-se, naturalmente, à questão central do luso-reintegracionismo: como espalhar o uso da língua! Isto foi explícito na intervenção de Ignácio Orero, o representante da Fundaçom Artábria na mesa sobre locais sociais: ele perguntou retoricamente pola (inexistente) “fórmula mágica” para promover a ré-galeguização. A experiência comum relatada por várias associações é que a tímida transmissão do idioma entre os jovens espanhol-falantes ou neo-falantes que acodem aos locais se dá por “osmose”, e que uma “osmose” semelhante se dá também entre os próprios activistas da língua nos locais, que vão incorporando-se ao luso-reintegracionismo gradualmente, por pura “naturalidade”.

Com efeito, esta “osmose” é parte consubstancial no processo de naturalização social do idioma. Mas, em que consiste exactamente este processo, do ponto de vista sociolinguístico? Como se pode incidir nele? Como se pode acelerar a transmissão no trabalho de base?

Para abordar este processo, é fundamental compreendermos, focarmos e privilegiarmos a noção de rede social ou retícula social, e compreendermos também o valor da língua como recurso transmitido socialmente. Uma rede social é um conjunto de pessoas ligadas por relações sociais mais ou menos habituais, e conectada com outras redes por linhas mais ou menos fortes ou débeis de relação também social. Cada pessoa faz parte de múltiplas redes sociais interligadas. Teoricamente, cada um(a) de nós pode ser concebido/a como o centro de uma rede, que conecta com outras. Frente à noção de grupo, que destaca o indeterminado (um “grupo” é como um conjunto de pontinhos movendo-se soltos dentro dum círculo, dum “conjunto boleano”), a noção de rede destaca a relação e a troca e circulação de recursos: materiais (como objectos, bens) e simbólicos (valores culturais, ideologia, língua). Uma rede pode ser vista, assim, como um conjunto de pontinhos (pessoas) ligados por linhas que simbolizam a sua interacção mais ou menos habitual ou mais ou menos frequente. A maior interacção entre as pessoas, maior reforçamento das linhas de relação. E, enquanto o solapamento de “grupos” consiste na sobreposição desses círculos, desses “conjuntos boleanos” a que algumas pessoas “pertenceriam” e outras não (como se “pertencer” a um “grupo” consistisse em levar um boletim de identidade no cérebro), a ligação (mais ou menos débil ou forte) entre redes descansa no agir dos indivíduos em mais de um esquema de relações bi-direccionais. Contrastem-se estas duas representações dos “grupos” e das redes:

Representação de dous "grupos" sociais
Representação de duas redes sociais

A transmissão da língua e da cultura ao longo destas redes só ocorre e só pode ocorrer a meio das práticas sociais, que são sempre, práticas de intercâmbio de algo: actividades conjuntas, conversas, o empréstimo dum objecto cultural (livro, revista, música, software), que adquire assim um valor simbólico: não é só o livro físico o que se troca, mas o que contém, e até parte da história do seu itinerário de circulação. Por exemplo, amiúde estamos tentados a aceitarmos mais facilmente um objecto cultural que chega de uma pessoa “de confiança” do que o mesmo objecto se chegasse dum desconhecido ou dum “adversário”, porque o objecto transporta com ele o simbolismo duma cadeia de relações. Certas seitas religiosas sabem isto muito bem!: deixam-che na casa um livrinho, que nem lês, mas que é pretexto simbólico para a breve conversa que tivestes na porta e para futuras conversas esperáveis sobre o mesmo pretexto. A Opus Dei totemiza o seu Camino como objecto de troca, e nos grupos dos partidos marxistas circulava e/ou circula o Livro Vermelho de Mao, o Que Fazer, o Marta Harnecker…

A “osmose” na naturalização social da língua é fruto, portanto, da circulação de recursos (incluída a língua) entre participantes duma rede social, e da sua eventual passagem para outras redes. Por isso, a presença de materiais lusófonos e lusógrafos nos locais sociais (já não materiais “galegos”, mas galego-portugueses) é, como veremos, crucial para a transmissão do reintegracionismo.

Acho que é fácil, portanto, compreender a função da circulação de recursos quando estes são materiais. Ora bem, como entra especificamente o recurso e prática da fala neste processo? Visto que a fala não é “material” (as palavras têm uma base física acústica, claro, mas não são permanentes), como se “distribui” então a fala ao longo das redes? E para que serve?

Com efeito, quando eu falo em galego-português (“galego reintegrado”) não transmito materialmente nada: depois de escutar-me, o meu ouvinte não “possui” materialmente nada novo. Se era dominantemente espanhol-falante, não deixa de ter esta competência em espanhol. E, sim, se era também galego-falante, aspectos da minha competência –um uso linguístico, uma construção, um pedaço de calão– podem ser assimilados por ele/a, e repetidos posteriormente. Mas nada disto é material. Em função de que processo social, então, podem estes actos de fala contribuir para espalhar o idioma entre falantes não habituais, se, afinal, a escolha de um ou outro idioma vai continuar a ser um acto individual? Um livro em português que nos emprestaram há que devolvê-lo, e contribuir assim para o reforçamento das relações de rede. Mas, uma conversa escutada em português há que devolvê-la também?

É aqui onde entra a noção de prática social, e da fala como prática. Frente a um acto individual (como escovar-se os dentes, por exemplo), uma prática social é um acto que manifesta valores colectivos, sempre interpretáveis no contexto (modernidade ou “tradição”, utilidade ou inutilidade, camaradagem ou hostilidade, normalidade ou anormalidade, urbanidade ou ruralidade, resistência ou acomodação, poder ou subalternidade), manifesta também ideologias e fragmentos de identidade(s), relaciona indivíduos e portanto cria e reforça redes, e (de maneira fundamental) cria expectativas sobre as próprias formas das relações futuras, incluída a língua utilizada. Por exemplo, se certa conversa de grupo se desenvolveu maioritariamente em galego, a língua associa-se de maneiras subconscientes a outros componentes da situação: as pessoas, o lugar, o momento, o tema, o tom ou “humor” geral, os objectos manipulados como recursos (bebida ou comida, revistas), etc.

Neste sentido, é frequente –e por isso é fundamental para a naturalização do idioma– o facto de a língua utilizada numa primeira interacção com uma pessoa ser com frequência a língua dominante dessa relação, quer dizer, desse fragmento de rede. O interlocutor associa aspectos da prática do falante com o contexto, e também com aspectos da “identidade” do outro falante e da sua “ideologia” (dos valores que dão certo tipo de coerência aos seus actos). Certo, a “identidade” não pré-existe: não somos o que “somos”, mas o que fazemos que somos (“somos” muitas cousas à vez, mas fazemos-ser algumas destas cousas selectivamente). E, certo, a “ideologia” não se vê: faz-se também, através das práticas. Mas, precisamente por isso, na mente do nosso interlocutor (que é onde se constrói o social), geram-se expectativas não só sobre como nos vamos comportar no próximo encontro (que práticas vamos levar a cabo), mas também sobre quais serão as próprias práticas sociais mais adequadas dele ou ela. E assim, em encontros posteriores, o que se vai “trocar” entre as pessoas vão ser também as palavras que se ajeitem a essas expectativas de conduta. Inclusive nos casos em que ambas pessoas sejam no fundo (por extracção linguística) espanhol-dominantes, se a sua primeira conversa foi em galego, é muito possível que esta prática do galego se mantenha entre eles… se o contexto continua a ser favorável.

Mas, o que fazer precisamente para que esse contexto continue a ser favorável? Porque, o que acontece numa situação bastante gueotizada do galego, é que as ligações entre o conjunto de redes jovens galegófonas e o conjunto de redes sobretudo hispanófonas são muito débeis. Quer dizer: Existe uma “fronteira” na ordem sociolinguística que consiste em que amiúde as práticas galegófonas dos locais sociais e outros âmbitos restritos não transcende para outros âmbitos porque não há suficiente fluidez e sobreposição de redes: numa cidade, os poucos jovens galegófonos reintegracionistas são simultaneamente membros da mesma associação cultural, do mesmo grupo de amigos, do mesmo grupo político. Fazem-se, portanto, redes densas (e intensas), mas pouco ligadas com outras. Os contactos com outros tipos de pessoas são mais débeis e ocasionais. E, embora a prática monolingue continue fora da rede “guetoizada” por parte dos indivíduos, não existe Aí Fora (fora das paredes do local social) suficiente densidade de práticas galego-falantes como para produzir a “osmose”. Por contra, os outros “guetos” dos jovens espanhol-falantes que se reúnem noutros lugares não são tão guetos: as suas práticas (a língua) encontram-se e contribuem para consolidar outras redes sociais: familiares, profissionais, do mundo público, e, sobretudo, da grande rede social que é o imaginário colectivo de “España”.

A questão fulcral, portanto, é como ampliarmos gradualmente as mais escassas redes jovens onde domina o galego, e conseguirmos que a fala e os recursos de língua associados (escrita, música, cinema, software) ultrapassem essa fronteira invisível. A questão não é só que os locais sociais cresçam por dentro, mas que as suas práticas e significados saiam fora. Estas duas gráficas poderiam representar idealmente o começo do processo:

Uso das línguas em duas redes
Transmissão da língua ao longo de redes

Em circunstâncias favoráveis, com o estabelecimento de novos contactos pola rede lusófona, a prática da fala deveria estender-se. Nas circunstâncias mais desfavoráveis, não aconteceria nada novo. Mas uma cousa é evidente: a fluidez entre redes não pode ser negativa para a lusofonia, pois em geral a prática monolingue entre essas redes está tão assente que, a partir desses centros de irradiação da língua, não haveria risco de experimentar o processo contrário (assimilação ao espanhol).

Para favorecer este processo ideal, a circulação de recursos que acompanha a fala lusófona deve ser suficientemente cativante para os membros das outras redes como para que, de pouco a pouco, poda ser alternativa efectiva às culturas anglófona e hispanófona dominante. Deve produzir-se uma identificação crescente entre estes recursos lusófonos e o imaginário da “Galiza”, e, mais ainda, da “Galiza jovem” (e mais ainda, duma Galiza internacional!), sem por isto exigir uma total viragem na adscrição social (identificação) dos neo-falantes. O negativo “efeito gueto” reforça-se quando determinada prática (a fala lusófona) vai indefectivelmente unida a uma dada “ideologia” e a uma dada “identidade” que se tornam em contra-senhas de adscrição. Por exemplo, quando um neo-falante potencial não compartilha aspectos importantes das “ideologias” e “identidades” dos seus interlocutores numa rede galegófona fechada, e quando estes valores estão ferreamente unidos à prática da língua, pode ser mais fácil para o neo-falante potencial assinalar e destacar o seu posicionamento não mudando de língua: mantendo-se no espanhol. E, de maneira complementar (ainda que poda soar paradoxal), em circunstâncias específicas a prática monolingue em galego sem fissuras perante um neo-falante potencial pode não ser a melhor táctica para um necessário reconhecimento mútuo e posterior convergência na lusofonia: falar a linguagem da outra pessoa às vezes transcende falar numa língua dada, e certos usos muito pontuais e simbólicos do espanhol podem favorecer uma inicial linguagem comum.

Em conclusão, é tarefa das associações de base e locais sociais desenharem as tácticas concretas para a consolidação, alargamento e ligação das redes lusófonas habituais, também fora dos locais. Para começar, precisa-se, acho eu, duma quantidade maciça de materiais lusófonos e lusógrafos atraentes que veiculem as relações sociais, face a obter-se uma maior visibilidade da língua como referente natural das culturas urbanas. É importante, por exemplo, que destes materiais se vá destilando e utilizando a necessária linguagem específica (o calão jovem) que veicule novas relações de rede. Estas utilizações simbólicas das gírias luso-brasileiras, inseridas na fala galega e até no espanhol, invocam inconscientemente um distinto imaginário.

E para isto também se precisa, sem dúvida, da articulação efectiva com outras redes lusófonas sólidas ali onde se dão com toda naturalidade: em Portugal (por pura proximidade geográfica e social). O intercâmbio de actividades e visitas de pessoas com outros locais sociais e associações de base de Portugal, por exemplo, seria um bom instrumento para as associações contribuírem para a construção dum novo imaginário com base real (não apenas mítica), talvez mais efectivo do que qualquer umbiguista acto minoritário no que estão ou estamos os de sempre.

Apesar de que dalgumas perspectivas se queira negar, do que estamos a falar é em definitivo do contributo “de abaixo” para a construção duma língua nacional, até quando por ideologia se recuse chamá-la assim. Porque uma língua nacional não é a língua duma “nação”: é uma língua internacional. Evidentemente, sem trabalho de elite “de acima” por parte das instituições, partidos e “grupos” (quer dizer: redes!) dirigentes, nunca haverá língua nacional neste país. Mas, se por acaso se está a caminhar nessa direcção, quando a situação madurar (digamos, daqui em vinte anos), se não houvo antes caldo de cultivo “de abaixo”, poderá existir tal vazio de língua portuguesa nos grupos mais jovens que se encontrará maioritariamente ainda mais resistência a ela do que agora.

Mas esse é um segundo capítulo por escrever. Se há interesse, também o podemos debater.


“Diglossia” e alternância de línguas

Publicado no Faro de Vigo, suplemento de Cultura, 12 de Agosto de 1984, p. 251

Desde que o norte-americano Ferguson [1] introduziu o conceito de «diglossia» na sociolinguística de há vinte e cinco anos até à actualidade, muito se utilizou a palavra —com conhecimento ou sem ele— e bastante mudou o que significava.  Porque o que Ferguson entendia por «diglossia» era, para ser breve, uma situação socio­linguística em que dous dialectos ou registos duma língua (chame­mo‑los variedades), conhecidos e falados por toda a comuni­dade, se empregam sistematicamente sempre segundo o contexto comunica­tivo.

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