Quarenta Anos na Fábrica da Língua

No Portal Galego da Língua No Praza Pública

     Desde há aproximadamente 40 anos se vem construindo na Galiza uma versão (oral, escrita e funcional) da língua do país que geralmente está naturalizada já como o “galego oficial” (paralelamente, não esqueçamos, desde há um pouco menos se vem construindo e praticando a versão “reintegracionista”). As explicações de por que “se” optou por esse caminho (e deixo o “se” deliberadamente ambíguo por enquanto), desde e com as instituições, são variadas, mas entram no geral em três grandes blocos de critérios: fidelidade à tradição escrita, fidelidade à fala (e — dizem que portanto — maior aceitação social), e facilidade de uso. Não é objeto deste escrito comentar os critérios anteriores, já muito debatidos. O facto inegável é que, nesta altura, essa versão da língua, que chamarei o “galego-RAG”, está amplamente reconhecida (na medida em que pode está-lo uma língua em processo de extinção), sem que isto empeça que a visão alternativa (e simbólica e politicamente contrária), o “reintegracionismo”, esteja também naturalizada noutros grupos de pessoa possivelmente crescentes.

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As decisões políticas e a morte das pessoas

No portal de EDiSo – Associação de Estudos sobre Discurso e Sociedade

     Os factos são cruéis, e provavelmente conhecidos. Mas, polo argumento a desenvolver, e com respeito, devem ser lembrados:

    1. Em 24 de julho de 2013, um trem rápido da RENFE (Red Nacional de Ferrocarriles Españoles) procedente de Ourense, na Galiza, descarrilou numa curva perto da entrada à capital, Santiago de Compostela. Morreram, até hoje, 79 pessoas, e dezenas delas ficaram feridas.
    2. Tudo indica que o comboio viajava no momento do acidente a uns 190 km/h numa zona onde devia circular a 80 km/h.
    3. Tudo indica que o trecho da curva e alguns quilómetros prévios não dispunham de nenhum de dous possíveis sistemas de segurança avançados (ERTMS e ASFA Digital), qualquer dos quais teria detido o comboio ou reduzido a sua velocidade automaticamente, evitando o acidente. O sistema de segurança utilizado era ASFA Analógico, que deixa o controlo da velocidade exclusivamente nas mãos do maquinista (“O tramo do accidente tiña o sistema de seguridade analóxico de hai medio século”, Praza Pública, 28 de julho de 2013; recuperado em 28-07-2013, 20 h. 43 m.; “El tramo del accidente de Santiago tenía el sistema de seguridad analógico de hace medio siglo”, eldiario.es, 28 de julho de 2013; recuperado em 28-07-2013, 20 h. 44 m.)
    4. O resto da via rápida Madrid – Compostela dispõe de algum dos sistemas avançados de controlo.

     Em resumo, nalguma altura da construção desse trecho de via houve uma decisão, um ato discursivo dalgum tipo, no sentido de não instalar nenhum dos sistemas avançados de controlo automático. Algumas informações apontam — mas não está documentado — que, com efeito, se solicitara a instalação destes sistemas de segurança. Se assim for, qualquer decisão posterior seria resposta a esta petição. Seja como for, estas circunstâncias não mudam o essencial da centralidade do ato de decisão. Por feito ou por omissão, houve um ato ou série de atos discursivos (orais, escritos e/ou formulaicos) que estabeleciam ou mantinham um sistema de controlo ineficiente, o ASFA Analógico. Mas no regime político da economia e da técnica, qualquer decisão técnica ou económica e também política. E, na cadeia de discurso em que consiste a vida política, os atos engranzam-se com circunstâncias que — procuraremos ver — não são alheias a um discurso que é amiúde concebido, erradamente, como realização estéril, asséptica e simplesmente maquinal de “significados”.

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Independência: A Quinta Terra

No Portal Galego da Língua No Diário Liberdade

     Se a Propaganda e a realidade não se encarregasssem de ir desgastando um lado das palavras, resultaria paradoxal o seguinte facto: que é a própria autonomia de Galicia que impede a independência da Galiza, porque a primeira (auto-nomia, ‘com as suas próprias regras’) etimologicamente significa justo o segundo (in-dependência), mas politicamente significa o contrário. Além, a coexistência dos dous nomes coletivos nossos em imaginários cruzados entre dous estados do capital permite a Fé no paradoxal, a acomodação ideológica do irrealizável: a Fé em que a partir da autonomia que nega a independência se possa chegar nem sequer ao federalismo que também a nega. A matemática política dá lugar assim, por multiplicação de dous por dous, às quatro terras que forçam a nossa paralisia permanente: a Galicia española, a Galícia portuguesa (entendida através da España), a Galiza española, e a Galiza portuguesa, cada uma a turrar para que nada se mova, exatamente para que não nasça a quinta terra: a Galiza galega, ou, melhor ainda, a Galiza sem adjetivo, ácrata, porque como nome é apenas resumo, não essência.

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Descapitalizar a Língua e o Discurso: sobre o galego, o valor e o capital

No Portal Galego da Língua No Diário Liberdade

     Em 1987 eu estava a fazer a tese de doutoramento numa universidade dos EUA. Tinha 28 anos, e vinha periodicamente a estadias na Galiza para a pesquisa. A tese, sobre o que chamei “a institucionalização do galego”, procurou descrever os começos da introdução estruturada do galego no estado e no poder como objeto de legislação, como elemento de ideologia, como recurso apropriável e como prática de uso. A investigação — é significativo indicar para os argumentos posteriores — foi subsidiada repetidamente, ora pola universidade americana, ora por capítulos do ministério espanhol de negócios estrangeiros destinados à colaboração científica com os EUA.

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De Leis e Línguas: a irracionalidade do jogo

No Portal Galego da Língua

     A decisão do Tribunal Superior de Xustiza de Galicia sobre os vários recursos (da Mesa pola Normalización Lingüística, da CIG e doutras entidades) contra o Decreto de Pluringüismo do governo de Feijoo, e as interpretações públicas sobre esta sentença, são muito reveladoras do papel do discurso científico sobre a língua na Galiza, e das constrições que operam sobre a sua aplicabilidade à política. Tanto o Decreto quanto a sentença situam o trabalho sociolinguístico como uma excrescência subordinada à política do partido no governo, e fazem duvidar, verdadeiramente, de que no quadro jurídico desta Galiza se possa articular jamais a racionalidade científica com a ação política.

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Assaltar a CEOE

     Nos sumidoiros da violência todas as ações fedem igual. A brutalidade policiaca é aprendida primeiro sob um chândal com capacete cosido polas meninhas indianas ou as adultas galegas de Inditex. A violência policial leva, dantes, um chândal com capacete e uma mochila às costas. No jogo mediático, os adversários mudam de bando após cada combate. A polícia, esplêndida, arresta-se a si própria e nega-o. Afinal, sempre foram os mesmos símbolos: cabeça rapada, limpa; testosterona em lugar de raciocínio; e uma perigosa e primitiva pulsão de salvadores, de salva-pátrias, de romper-nos o crânio e as ideias por higiene. Depois da mudança de bando, que é o mesmo, já tudo é o mesmo fedor nos sumidoiros democráticos.
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Notas Sociolinguísticas de Verão

No Portal Galego da Língua ★ Em MundoGaliza ★ Em Diário Liberdade ★ Em GalizaLivre

     Com o simples intuito de convidar à reflexão, e sem mais motivo que o impulso perante um panorama político onde se focalizam questões muito diferentes que as da língua, eis estas breves Notas Sociolinguísticas de Verão (ou isso esperemos: que “breves” e que “de verão”):

1. Não há futuro para o atual projeto de padronização do galego quanto à constituição deste em língua nacional. E não há futuro não só polo modelo formal escolhido, mas, fundamentalmente, pola base ideológica e o tipo de ações que promove. Embora o modelo formal puder apelar pola sua pretensa fidelidade a uma tradição culta escrita (no oral, que saibamos, não há gravações de Manoel António), o modelo fracassa nas fórmulas de capitalização linguística. Não cria adesões maciças, simplesmente porque essa tradição não existe no plano da vida diária. E não entra noutros processos de formação de capital sobre outras bases pola sua subsidiariedade — económica, simbólica e jurídica — ao quadro de referência español.
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Descapitalizar o capitalismo

Em MundoGaliza

     Estou farto. Levo décadas emprestando o meu dinheiro aos bancos (eles chamam-no “aforros”) só para que eles, com o meu empréstimo, ganhem mais dinheiro do que me dão. Além disso, nem sequer lhes exigi um aval. Eles dizem que me “guardam” o dinheiro (por se o gasto ou mo roubam), mas eu tenho a sensação de que está sequestrado. Depois, se eu lhes pido dinheiro emprestado (do que eu e outras pessoas lhes emprestam), pedem-me um aval, e uns juros muito mais altos dos que lhes pido eu. Se eu não lhes pago o crédito, embargam-me os bens, reapropriam a casa que pensam que é deles, e vendem-na à mínima. Mas se eles não me devolvem o que eu emprestei por falta de “liquidez” (chamam-no “preferentes” ou “corralito”), os seus bens não saem ao público não: amiúde tenho eu que emprestar-lhes ainda mais dinheiro (chamam-no “nacionalização”) para, caso possível, me devolvam o que lhes emprestei ao começo! É o viciado ciclo da dependência que os grandes bancos praticam com os países “subdesenvolvidos”, mas dado a volta: resulta que os bancos dependem de nós, e nem o sabemos.
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Deus Uno e Trino

Deus uno e trino, herói uno e trino, rei uno e trino. O império triangular masculino impõe-se desde há milénios sobre a soberania da mente. Dominam as imagens a que, no sossego da inconsciência, rendemos diariamente tributo. Domina essa figura que pode ser simultaneamente severo juiz, pai, assassino, violador. Ele ordena o nosso pensamento triangular. Ele é a presença quotidiana, de que não queremos escapar, porque significaria matá-lo. Matá-lo com a total indiferença. Com a revolta da mente, onde habitam todos os paraísos. Deus e rei, deus e herói, deus e assassino. Criado no sangue, na mitologia do castigo e da vingança. Rei miserável, violador de mentes, homicida, ladrão da liberdade. Órfãs e órfãos, contemplamo-lo como a justificação da nossa própria existência. E justificamos a sua. Sem ele, sem deus, o héroi, o rei tirano, vagaríamos na sombra enfrontados só à pavorosa utopia da igualdade. Deus, rei, herói, ele foi enviado dum lugar distante a este reino. Da terra palestina, dum planeta a extinguir-se, dum país estrangeiro. E foi enviado polo seu pai para salvar-nos. E fez-se humano entre nós durante anos numa humilde granja americana, ao lado do Jordão, numa academia militar. E teve de pais adotivos um granjeiro, um carpinteiro, um general. Tudo para criar o seu reino deste mundo: Megápolis, Palestina, España.  O seu reino da Paz, do Bem, da Democracia. E para salvar-nos suportou o diabo no deserto, uma caixa com kriptonita, um golpe de estado militar. E desenvolveu poderes superiores de sanar, de voar, de convocar o exército contra os povos. Deus, rei e herói uno e trino que caíu três vezes e três se ergueu no Calvário, na sua morada no Ártico, numa jornada de caça ou de vela. E morreu e no terceiro dia ressuscitou, foi reimprimido, foi restaurado militarmente. Deus Uno e Trino.

Esta ilusão de política

No Portal Galego da Língua Em GalizaLivre  Em MundoGaliza Em Diário Liberdade

     Irrompe azedamente, levantando estupor, o que se entende por “debate” nos foros da Internet — único reduto de palavra pública escrita que nos resta depois da doutrina de choque mediático do capital — a partir da solene retirada do Encontro Irmandiño duma casa sem telhado e, sobretudo, sem horta para sair à realidade. Cinde-se o BNG, com poucas hipóteses de o nacionalismo surgir mais forte em pouco tempo, e os varonis insultos mútuos de traidores e patriotas fazem repenicar os olhos contentes dos fascistas que tudo observam. Porque esse caminho coletivo está errado. Não vai pola defesa do matiz partidário próprio. Não vai polos “personalismos”, que sempre existem. Não vai polos ataques aos personalismos, que também sempre existem. Vai pola euscadização política da esquerda da Galiza. Pola conceção categórica de que um partido e umas siglas são apenas instrumentos para roubarmos uns escanos ao capital, e então para também aí, com verdadeira insolência, interrogarmos fortemente a nossa sujeição. Nunca antes, em anos recentes, se atomizou tanto a pouca vontade coletiva que temos de fugirmos do Reino, ou de que o Reino fuja como eterno mal de olho das nossas cabeças. Ou por acaso não é isso o que queremos? Quantas máscaras políticas, feitas de pragmatismo e cobardice de ação, mantêm ainda o mal de olho do Reino dentro das cabeças respetivas, para grande satisfação acomodatícia dos seus possuidores? Sob as diversas retóricas enumeráveis em etiquetas chocas (essencialismo, altermundismo, nacional-leninismo), como país cultivamos um patetismo político difícil de imitar. Avizinham-se já tantos projetos de partidos salvadores como microtoponímias. No fundo, isto manifesta um pensamento profundamente perigoso: que a luta contra a barbárie do capital está superada ou morta, e que, igual que no civilizado ocidente do mercado (como se estivéssemos nele!), só se trata de modular as tristes posições próprias, negociar postos e listas, glorificar o “ideológico” e o irrealizavelmente “programático” por cima da praticidade de roubar uns escanos a um estado herança do fascismo, para interrogá-lo também aí com vozes ou sapatos, não para consensuar as formas da derrota. A extrema atomização que nos espera é a máxima vitória do capital, isto é, na realidade duns seres medíocres e temerosos, débeis por definição, por apolíticos (o capital é a suprema negação do político), mas perenemente legitimados polos atos de cedência de adversários de cartão que dizem representar qualquer mito vagaroso. Cegar-nos ao insidioso desta cedência continuará a reproduzir a nossa miséria: política, económica, cultural, ecológica, linguística, humana. Existe um nós porque o concebemos, e não precisa de análises de microfúndio. Mas continuai, cumplicemente. Praticai o anátema mútuo sob a ilusão do jogo, do debate democrático. Não aguardeis, porém, que esta perda de tempo ao observar-vos signifique acreditarmos em vós, nas retóricas das vossas posições pretensamente diversas. Só pode significar ainda mais incombustível convicção do vosso erro, mais estranhamento coletivo sem regresso.