Todas as opções: Qual é o problema?

Publicado em Vieiros

Qual é o problema com escrever o galego oral em português, como lhe corresponde? Por circunstâncias históricas, tocou-nos um pedaço grande de língua galego-portuguesa distinto em alguns aspectos da tendência comum, e algumas pessoas (sempre muito poucas) na Galiza levam dous séculos a tentarem conciliar esta aparente aberração, a discutirem teimosamente sobre uma letra, uma terminação ou um acento. Il será pola profundidade do problema? Ou será pola sua incapacidade ou negativa histórica a compreenderem a situação e a agirem como verdadeiras elites nacionais (António Gil e Ângelo Cristóvão dixerunt em repetidas ocasiões)? Sobre-estimam-se as atitudes e a identidade essencial do “Pobo”, ou infra-estimam-se as suas capacidades cognitivas? É mais elitismo escrever uma variante linguística (o galego) na forma comum (em português), ou construir essa variante escrita ex novo, como se fosse A Lingua, mas sabendo que não é? É mais elitismo aceitar as letras próprias da língua em todo o mundo, ou aceitar as letras da língua forânea (o espanhol) que é causante da rareza linguística galega? É mais elitismo situar-se e situar a Galiza com humilde realismo no mundo lusófono, ou situar-se reciprocamente uns galegos a outros e outros galegos a uns como únicos auto-referentes culturais? É mais elitismo aceitar a lógica transfronteiriça das línguas e portanto da língua portuguesa, ou reproduzir essa lógica a pequena escala com mecanismos de poder interno desenhando uma (outra) miragem de língua e cultura democráticas?

Perante a tentação de responder estas perguntas num ou outro sentido, é mais realista e mais sensato (sobretudo agora que resta pouco tempo de oralidade portuguesa na Galiza) reconhecer que a língua não é um problema social prioritário. E, como não é, torna-se ainda mais desnecessário continuar a repartir a fome como se fosse fartura. Só as elites se podem permitir o luxo de impugnarem um sector delas próprias como se este estivesse errado. Os movimentos obreiros que marginaram parte dos seus próprios membros nos combates importantes pagaram cara a purga nessa consciência ética que pervive na história por cima e por baixo do sucesso aparente. A longo prazo, a purga por sistema fez perder a todo o mundo, embora pareça que assim se ganharam “conquistas sociais” que seriam impossíveis desde o “maximalismo”. Mas, como a língua não dá de comer a todo o mundo (só a uns poucos), temo que o exercício irracional da impugnação das candidaturas ortográficas poderá continuar por décadas por vir, enquanto mande quem manda e os que vão mandar no futuro se disponham a mandar exactamente como os que mandam agora.

Porque, quando um “Pobo” ainda não decidiu nem se auto-determinou linguisticamente (e já sabemos que o “Pobo” é quem mais ordena), como se lhe vai negar que escreva a sua tão essencial língua de uma dada maneira?

Em resumo, agora e sempre, e em todos os âmbitos, Aukera Guztiak! Que, como sabemos, significa “Todas as Opções”.

Sobre a Escrita, Contra o Populismo Normativo: Catorze Verdades de Fé dum Pseudo-Sociolinguista

Publicado no Portal Galego da Língua

Na lista Assembleia da Língua, Gerardo Uz pergunta sobre o papel dos sistemas escritos na marginação dos grupos sociais. Concretamente, a questão é se a forma específica duma norma escrita afecta o seu possível conhecimento ou desconhecimento e, portanto, ulterior selecção social. Opino longamente:

1) Nas sociedades de classes a forma específica da norma escrita não tem qualquer incidência sobre o mecanismo geral de class-ificação, selecção e marginação social baseadas no conhecimento diferencial da Língua.

2) As diferenças graduais (o contínuo) de saberes sobre a língua transformam-se em categorias discretas de classificação social. Por exemplo, tanto uma pessoa que comete muitas faltas de ortografia como uma pessoa que comete muito poucas “têm faltas de ortografia”, e portanto ambas são susceptíveis de serem classificadas como “não conhecedoras da Língua escrita”.

3) O estabelecimento da fronteira entre “os que sabem” e “os que não sabem” é contingente e depende da forma particular de distribuição desigual do conhecimento. Por exemplo, entre “sábios” absolutos alguém que ignore um só facto pode ser um “burro” total.

4) Os pontos 2 e 3 acima têm um paralelo nos contínuos da fala. O que se chamam “marcadores sociais” são elementos linguísticos isolados que adquirem o valor simbólico de toda a variedade dialectal ou sociolectal a que pertencem, co-ocorram ou não com outros elementos dessa variedade. As variedades são construções mentais dos falantes: representações globais que, embora compostas de signos (sociais) individuais, operam como signos complexos elas próprias. Por exemplo, alguém que diga “dizer” e “canção” é um “lusista” (até que essas formas deixem de ser socialmente “lusistas”). Por exemplo, um “andaluz” é alguém que aspira os “s” embora não faça o resto de cousas que fazem os andaluzes na fala. Na Galiza, alguém que “fala galego” é alguém que diz uma frase com “eu”, não “yo”.

5) Portanto, qualquer elemento linguístico (oral ou escrito, “correto” ou “incorreto”) é susceptível de cobrar o valor simbólico de distinção grupal, e de se constituir num “erro” ou um indicador de subalternidade, ignorância, etc., ou de valores positivos como inteligência, cultura, etc.

6) Portanto, não há sistemas escritos mais “fáceis” ou “mais difíceis” de aprender para o seu uso se constituir em SIGNO de competência linguística e  social. Na sociedade de classes, uma escrita “tecnicamente fácil” de aprender é ainda um procedimento de exclusão, porque não está garantida (é impossível) a destreza completa de todos os utentes nessa escrita.

7) O mecanismo geral de exclusão e dominação a meio da língua na sociedade de classes é paralelo aos outros mecanismos de distribuição inerentemente desigual dos recursos (materiais ou simbólicos). Na sociedade liberal-capitalista, por exemplo, o sistema educativo está desenhado para reproduzir a desigualdade sob a miragem da igualdade de oportunidades. Quando um recurso (a escrita, a língua) é oferecido para o seu aprendizado a todos “por igual”, mas afinal do ciclo educativo obrigatório básico não todos o dominam “por igual”, a explicação da diferença (já tornada em distinção hierárquica) cai sobre um leque de factores, todos relacionados com as características dos indivíduos distinguidos polo saber (os “listos” e os “burros”). Excluídas as explicações politicamente incorrectas sobre as diferenças entre listos e burros (por exemplo, que pertençam a “raças” ou grupos étnicos distintos), as obviamente erradas (as diferenças de género) e as invisibilizadas (as diferenças de classe), só resta uma pretensa explicação psicologista: o Indivíduo. Os listos (os que escrevem bem) são listos porque a sua mente é lista e trabalhadora. Os burros (os que escrevem mal) são burros porque a sua mente é burra e preguiceira. Melhor: cada pessoa é lista ou burra, trabalhadora ou preguiceira. O sistema educativo, portanto, fornece simultaneamente os recursos democráticos, as explicações do seu fracasso, e as culpabilizações inevitáveis polas hierarquias que reproduz.

8) As diferenças na aquisição da língua escrita têm muito a ver com o valor atribuído à língua escrita e de cultura polos grupos, e com a exposição dos meninhos a essa língua de cultura no âmbito familiar. Como a própria cultura está previamente distribuída de maneira diferencial entre as classes, nas classes mais cultas haverá mais meninhos mais cultos e “listos”.

9) A língua escrita de cultura distribuída na escola sempre está baseada na fala das classes burguesas meias mais cultas. A escola introduz o conflito social no seio das famílias onde a cultura escrita tem menor presença, ao oferecer ao meninho modelos de língua, de fala, de escrita e de saber que contrastam com os dos pais não educados. Sistematicamente, os meninhos de classes trabalhadoras menos cultas passam por um período de des-identificação com a língua da família.

10) A compensação por este escoramento de classe da língua escrita não pode consistir em tomar a fala das “classes populares” como modelo. Quando isto se faz, dá-se simplesmente uma ré-colocação de classe, pois, de novo, a fronteira simbólica e social entre formas da língua é absoluta: a nova norma  culta supostamente baseada na fala popular torna-se em língua culta de classe. Veja-se o caso galego actual.

11) O caso anterior pode acarretar o acesso ao poder simbólico da língua para novos grupos sociais a expensas de outros, mas não representa uma alteração da lógica da exclusão de classe pola língua.

12) Em definitivo: enquanto existam as classes sociais existirão as “faltas de ortografia” e as escritas boas e más, “fáceis” e “difíceis”, os “listos” e os “burros”.

13) A solução radical é mudar o modelo social e económico e portanto o sentido social da diferença linguística oral ou escrita. A solução reformista é acatar o valor classificador da Língua, não pré-julgar e pré-classificar os grupos pola sua “capacidade” ou “incapacidade” cognitiva de ganharem acesso a essa Língua, e remover qualquer obstáculo legal e social que obstaculizar efectivamente a expressão linguística e qualquer medida que representar um agravo comparativo na distribuição de recursos comuns (o dinheiro, que vem dos impostos e o mais-valor propriedade do Estado) para qualquer forma de se expressar na língua.

14) Em conclusão, a escrita mais “fácil”, “popular”, “democrática” e universal é fazer um “o” com um canuto.

Referências básicas:

  • Bernstein, Basil (1972). A sociolinguistic approach to socialization; with some reference to educability. Em J. J. Gumperz & D. H. Hymes (eds.), Directions in Sociolinguistics. New York: Holt, Rinehart and Winston, 465-497. (= Bernstein, Brasil (1996). A Estruturação do Discurso Pedagógico: classes, códigos e controle. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Luís Fernando Gonçalves Pereira. Vol. IV da edição inglesa. Petrópolis: Vozes).
  • Bourdieu, Pierre (1977). The economics of linguistic exchanges. Social Science Information 16(6): 645-668.
  • Bourdieu, Pierre (1982). Ce que parler veut dire. Paris: Fayard. (= Bourdieu, Pierre. Data? A economia das trocas lingüísticas: O Que Falar Quer Dizer. Trad. Sergio Miceli, Mary A. L. de Barros, Afrânio Catani, Denice Catani, Paula Montero e José Carlos Durand. São Paulo: Edusp).
  • Bourdieu, Pierre (2000). Poder, derecho y clases sociales. Bilbo: Desclée de Brouwer.
  • Joseph, John E. (1987). Eloquence and power: The rise of language standards and standard languages. London: Frances Pinter.
  • Scherer, Klaus R. e Giles, Howard G. (1979). Social markers in speech. Cambridge: Cambridge University Press.

O PNLG: Um desenho fechado à partida

Publicado em Tempos Novos • Em Vieiros

O PNLG parte da Língua Nacional Espanhola para manter a variedade regional “galego” em níveis mínimos como recurso simbólico e político. Na relação entre custos e possíveis benefícios, o PNLG -claramente tecnocrático- apropria sem pudor o gasto termo “normalización”, enquanto foca o sociolinguístico em termos administrativos, segmentando-o em âmbitos das Conselharias. Não é possível intervir com a crítica num desenho tão fechado à partida. A única alternativa é a definitiva naturalização social da língua portuguesa na Galiza, que é a nossa numa variedade totalmente legítima. A naturalização consiste na produtividade real da língua na vida social até ao ponto da desideologização explícita. Umas necessárias novas elites sociais deveriam abordar na intervenção linguística (sempre um projecto reformista de classe) três grandes questões: (1) Reversão decidida da maciça perda intergeracional do idioma, (2) enraizamento social da consciência da unidade linguística galego-portuguesa-brasileira, e (3) galego falado e portanto português escrito correctos como veículo dominante dos médios e do ensino, para as elites reproduzirem a miragem da igualdade democrática a meio da Língua. Esse é o desenho duma Língua Nacional. A meta (1) requer fortes incentivos e redes sociais jovens. A (2), Propaganda e troca cultural. A (3), dinheiro, docentes e (sub)produtos escritos. O consenso com o campo hegemónico nestes pontos é inviável: o único sensato é procurar uma nova hegemonia por vias políticas.

Uma questão de cultura

Enviado a La Voz de Galicia e a La Opinión de A Coruña; não publicado

O recente Encontro Nacional sobre a Língua organizado pola Mesa pola Normalización Lingüística, a que assistiram numerosas associações culturais e de base e indivíduos, concluiu aprovando uma série de resoluções para o trabalho em favor da língua. A primeira diz: “Reafirmamos a substancial unidade existente entre o galego e o português”. Esta resolução é importante, porque constata de novo uma evidência histórica e social. A unidade linguística galego-portuguesa explica, por exemplo, que este texto poda ser escrito e lido perfeitamente na Galiza, e que poda ser lido, além, em galego, com mínimas adaptações ao acento de aqui.

Estamos provavelmente na fase mais crucial da história da língua da Galiza. A acelerada perda de falantes habituais não se compensa com a congelada penetração de certas variedades da língua nos âmbitos mais formais. Perante esta situação, os poderes públicos e as instituições culturais têm a oportunidade e a responsabilidade de reafirmarem com palavras e com actos a natureza comum da nossa língua galego-portuguesa, porque o que se diz em público lembra-se, e o que se lembra dia a dia pode guiar melhor os nossos actos. O catedrático do Instituto da Lingua Galega Francisco Fernández Rei, por exemplo, escreveu na revista internacional Plurilinguismes que “dum ponto de vista estritamente linguístico, podemos admitir que o galego e o português falados hoje constituem praticamente uma só e única língua ‘por distância’”. O anterior presidente da Real Academia Galega, Francisco Fernández del Riego e muitos outros especialistas têm manifestado opiniões semelhantes. É necessário e inteligente lembrarmos esta evidência.

Por isso, é fundamental uma decisiva viragem que, sem trair nem renunciar às trajectórias culturais anteriores, nos recoloque na evidência e recolha assim o sentir de crescentes sectores de pessoas que também se interessam profundamente polo presente e futuro da língua do país. Um primeiro passo para a coesão e para o enriquecimento cultural seria o reconhecimento, por parte das instituições de poder e de cultura, da legitimidade desta concepção e desta prática galego-portuguesa da língua, que se reflecte na escrita internacional, na literatura e na própria experiência de contacto entre habitantes dos dous lados da inexistente Raia. Os intercâmbios entre escolares da Galiza e de Portugal, por exemplo, promovidos por liceus e organizações culturais, são bons exemplos de uma experiência conducente a reduzirmos as fronteiras. A possibilidade de recebermos habitualmente os meios de comunicação de Portugal acrescentaria também a nossa exposição a uma cultura próxima, e contribuiria para reduzirmos a nossa dependência das culturas anglófonas, nomeadamente dos EUA, que tão pouco têm a ver com a nossa realidade.

Numerosas pessoas e colectivos defendemos o direito da Galiza a receber material cultural de Portugal, Brasil e outros países, em pé de igualdade com o nosso próprio, como a melhor maneira de reforçarmos a nossa própria cultura. Há uma crescente demanda da aprendizagem do padrão linguístico português, cujo conhecimento é essencial para utilizarmos a língua, produzirmos saber, e lermos excelente literatura sem mediação qualquer de traduções deturpadoras. Ninguém duvidaria que os andaluzes, por exemplo, cujas falas são tão distintas da língua da cultura escrita espanhola, têm direito a serem considerados falantes da língua espanhola e de aprendê-la como tal. Não sei porquê os galegos deveríamos ser menos a respeito da língua padrão utilizada em Portugal. Devemos ter o direito de aprendermos e utilizarmos, em todos os níveis educativos e para todos os âmbitos da vida diária, o padrão linguístico que plasma internacionalmente essa substancial unidade entre o galego, o português, o brasileiro, o moçambicano… ou o berciano.

Se a língua se perde geração após geração, é também porque existe um impiedoso mercado linguístico e cultural que procura nos impor o alheio. Talvez a gente não se reconheça na função artificialmente limitada do galego actual para produzir cultura. Aqui somos uma comunidade pequena, mas para o Sul e para o Oeste fazemos parte de uma ampla constelação de comunidades. A globalização não pode funcionar sempre na mesma direcção: temos capacidade de ser outro Centro na periferia ocidental.

É o momento de superarmos o uso do galego oral e escrito como uma forma de militância, e de praticarmo-lo como uma conduta naturalizada dia a dia, para exercermos a nossa cultura dentro do âmbito linguístico e cultural próprio. Mas este projecto não é apenas uma questão de vontade individual. Os poderes públicos e as instituições têm a grande oportunidade e a responsabilidade de recolherem este desafio contribuindo para a nossa adaptação aos tempos com uma valente viragem alicerçada no diálogo.

Reclamarmos o nosso não é uma questão de fé, nem de combate: é uma questão da razão. É uma questão de cultura.

O galego-português e a lógica social da escrita

Publicado em La Voz de Galicia, 12 Outubro 1999, p. 16, dentro da fugaz série de artigos “Debate: A normativa do galego”

Quixera contribuir a este debate sobre, basicamente, as relações entre a fala e a escrita no nosso país. São reflexões gerais aplicáveis às sociedades alfabetizadas, que ilustro com o nosso caso.

Em primeiro lugar, eu penso que é necessário entender que o problema da língua escrita é pouco importante em comparança com sangrantes realidades como um nível de desemprego dos mais altos de Europa (um 40% entre as mulheres galegas), a desfeita económica e ecológica, ou a cleptocracia galopante. Mas a questão do controlo da língua não está desligada destes problemas, claro, e prova disto é que são os mesmos poderes os que, desde há já várias décadas, são parcialmente responsáveis tanto da desfeita económica quanto da provincialização crescente das culturas galegas, nas aras duma modernidade que só mostra o seu rosto mais cruel.

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A ausência de linguagem

Publicado em A Nosa Terra 840, 23 Julho 1998, p. 31 • Non! – crítica & intervenção [ligação não operativa]

Nunca se poderá destacar suficientemente a instrumentalidade da apropriação da língua e da palavra na sociedade capitalista para a dominação social. Embora os sociolinguistas não o saibam, a primeira divisão entre as gentes que estabelece o capitalismo não é entre aqueles que falam a Língua A e aqueles que falam as Línguas B ou C, mas entre aqueles poucos que possuem uma linguagem e aqueles muitos que simplesmente são utentes duma língua, ou duas, ou três. A complexidade das condutas diárias é reduzida por políticos e sociolinguistas a cifras de “falantes” que “escolhem” uma língua (ou “Língua”) ou outra, e é curioso constatar que esta “escolha” se constitui num visível signo científico dos grupos sociais, como se houver algo inerentemente transcendental em proferirmos sons para comprar pão na loja da esquina ou para comentarmos sobre os vizinhos. Os “povos”, assim, são dirimidos em grupos de “falantes”, e estes grupos são assignados a cifras visualizáveis. A territorialização da gente em populações sociolinguísticas emula outras territorializações sociais, como amostra dos complexos protocolos inerentes ao capitalismo para impedir a emancipação, isto é, o reconhecimento próprio e mútuo das pessoas como forças activas na essencial procura da utopia.

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O mercado linguístico e o futuro da escrita

Publicado em A Nosa Terra 712, 8 Fevereiro 1996, p. 26

O meu colega Xosé Ramón Freixeiro convida de novo a reflexionarmos sobre as relações entre fala e escrita no nosso país, isto é, sobre as opções gráficas para o idioma (“A voltas coa norma lingüística na procura dun necesario pulo normalizador”, A NOSA TERRA 706, pp. 26-27). Basicamente, Freixeiro propõe um acordo que elimine as pequenas diferenças entre as normas majoritárias nas instituições (as do Instituto da Lingua Galega-Real Academia Galega, ILG-RAG) e as chamadas “de mínimos”. Tomo-me a liberdade de recolher a oferta de Freixeiro para sugerir, de primeiras, que a sua proposta (que está já na mente de bastantes utentes da escrita do galego) não resolve os vários problemas de fundo. Quero explicar em que me baseio para pensar assim. Começo cada apartado com umas afirmações gerais sobre as relações entre fala e escrita nas sociedades alfabetizadas.

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Elites lusófonas? Oui, merci

Publicado em A Nosa Terra 653, 22 Dezembro 1994, p. 28

Hoje fui ao Corte Inglês e comprei os quatro compactos do cativante grupo português Madredeus. Não sei que me satisfaz mais: a sua música ou o elitismo de saber que, entre escrito e escrito ou entre cigarro e cigarro, ainda tenho tempo de escutar. Enquanto sigo as letras impressas, encanta-me também pensar que não lhe se entende tudo à solista de primeiras porque é cantado. Deve ser a mesma sensação de iluminada reverência que tinham as nobrezas proto-alemãs do XVIII ao escutarem o bel canto italiano, ou os aristocratas russos finisseculares ao escutarem as lições de francês das filhas, ou a que sentiam os latifundiários autóctonos da Índia ao escutarem um recitado em inglês de Cambridge. Esse foi sempre o problema das elites da Galiza: não olharem para fora. Cada país precisa olhar para fora. Os catalães, para a França. Os japoneses, para a China. Os portugueses, para a Espanha.

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A única moral linguística

Enviado a La Voz de Galicia e não publicado • Publicado em «Galicia Literaria», Suplemento Cultural de Diario 16 de Galicia, nº 123, 23 Janeiro 1993, p. II

Duvidei se contribuir uma vez mais a este longo debate para ouvidos desatentos: o que gira ao redor da «normalização» do idioma galego, e que o jornalista Carlos Luis Rodríguez toca de novo na sua coluna «Coma en Irlanda, coma en Irlanda», (La Voz de Galicia, 6-1-93, p. 9). Talvez seria mais assisado calar, e poupar-lhe algo de lenha molhada ao lume jornalístico. Mas esta vez a imodéstia também me atacou a mim, como interessado e estudioso da construção do «galego» como língua.

O artigo do Sr. Rodríguez adoece, paradoxalmente, do mesmo escoramento ideologizado que contêm os textos dos activistas em prol do galego. Quando o autor qualifica de «batalla inútil» as propostas normalizadoras das organizações de activismo linguístico, concebe o problema da fala na Galiza como uma luta entre «línguas». Quando os activistas deploram a falha duma planificação linguística decidida, ignoram assim mesmo a grande conquista já realizada polos detentores do poder político e do saber técnico: a invenção do «galego» e o seu firme controlo simbólico. Que mais se poderia esperar das elites políticas, é algo que segue a se me escapar.

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