Vítimas do terror

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O terror não consiste apenas em encontrar-se de súbito rodeado duma floresta obscena de carne humana ensanguentada e metralha. Não consiste apenas em sentir o frio do metal na caluga e aguardar, aguardar a bala eternamente. Não consiste apenas na escuridão do calabouço, esse zulo democrático, esse anti-útero do Estado. Nem na ignomínia do fato laranja, da tortura com cães, das mãos infantis talhadas com machete, das praias bombardeadas, do corredor da morte. O terror começa na mente masculina, na quotidianeidade das cozinhas, na primeira labaçada, no primeiro insulto, na violação diária da dignidade. O terror é a mais poderosa fantasia sexual dos varões que levam mísseis entre as pernas e grandes facas erectas para matar, sempre para matar, para roubar, possuir e depois matar a carne usada que já não serve.

Todo o terror é político, como a mente. A mesma mente que agora faz reconstruir o cenário do assassínio é a mente que o concebe antes, como um plano estratégico de conquista. Desde há milhares de anos, o exército mundial dos varões planifica o lento genocídio. Seduzir, induzir, enganar, atrair com palavras ou com gestos, e depois possuir, violentar, utilizar, exterminar. O corpo da mulher está em usufruto do terror. Cada vez que o terror mata uma mulher, a mesma vesânia histórica reproduz-se. O terror mata-as na casa, na rua, num deserto em guerra, num prédio desabitado, com luz, às escuras. Mata-as com gasolina, com facas, com metralha, com as mãos. O varão mata-as protegido pola lei, legitimado pola propaganda, justificado pola exaltação universal do corpo que ele não tem. A mente do varão sofre o corpo que não tem. Porque, no fundo, a mente do varão terrorista só se vê a si próprio como corpo. Todo o mundo é carne para o terror do varão.

Mas as vítimas do terror não se organizam. Não saem em brigadas de voz a encurralar o terror. Não exercem a sua força, a da metade da humanidade, em armas contra o varão, contra o terror. O terror inflecte nas suas possíveis vítimas indignação e ira, mas não induz à revolta. Porque a revolta, a revolta verdadeira, consistiria numa insurreição de classe muito mais poderosa do que todas as que a História contemplou. E a mente masculina do terror que rege o mundo não pode permiti-lo. Assim, cada poucos dias, surge a notícia do assassínio. Lemos os jornais, sentimos a náusea, a ânsia de vingança. Mas o tempo passa, o tempo fundado por um deus atroz continua a passar, enganoso, enganando a memória. O varão dosifica o terror como um preparado homeopático contra-natura. E as vítimas suportam a regulada barbárie do terror como se fosse esporádica, não um fiel produto da mente masculina.

Todo o terror é politico, como a mente. A política do terror mora nos actos mais miúdos, no sagrado seio triangular da Família, no sagrado seio dos Partidos, no seio do Trabalho e da miséria. Hostes de mulheres levam dentro corpos futuros para o prazer do terror, nova carne para o longo genocídio. Varões desenham em mapas militares, jogos eléctricos e hormonadas conversas os seus planos de conquista. De novo no Verão os números sexuais soam sem controlo. Nos televisores refulgem líquidos limpadores de corpos, de cozinhas. Mulheres continuam a esmolar trabalhos provisórios, nutrir o corpo do varão, coser o uniforme do varão, cuidar o filho do varão, sempre lavar os fluídos espessos do varão. Lustrosos generais ejectam enormes pénis de metal que sobrevoam os desertos. Estoura o sémen. E no calabouço dum prédio desabitado aparece uma outra vítima do terror.

Para o Terror, todo o mundo é carne feminina.

O Paradoxo de Grande-Marlaska

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Os paradoxos lógicos, semânticos ou pragmáticos (linguísticos em geral) têm grande tradição em filosofia da linguagem e até na vida diária. São contradições contidas em expressões do tipo “Isto não é uma oração”, ou “Este enunciado não é verdade”. De meninho brincávamos ao jogo dos pronomes com trocas regueifeiras do tipo: “Eu sou eu, tu és tu, quem é mais parvo dos dous?” “Tu”. “Por isso, TU”, “Não, TU. TU és TU, EU sou EU”. Agora uma actuação do Juiz da Audiência Nacional de Espanha Fernando Grande-Marlaska dá pé a um novo paradoxo pragmático-jurídico, o Paradoxo da Ameaça, ou Paradoxo de Grande-Marlaska. Consiste em que, entre as imputações acrescentadas a líderes de Batasuna por “ameaça terrorista”, incluem-se as declarações de Joseba Permach de que um encarceramento dos líderes independentistas poderia acarretar um “bloqueio” ao chamado “processo de paz” em Euskadi.

No Paradoxo de Grande-Marlaska entra em jogo uma interpretação peculiar do que constitui uma ameaça. Se eu digo: “Vou-te matar”, isso é uma ameaça. Se eu digo “Se te topo pola rua, mato-te”, isso também é uma ameaça, porque tu não podes (nem tens qualquer obriga moral) evitar ser encontrado casualmente. Também é uma ameaça “Se continuas a vestir de laranja, mato-te”. Porém, se eu digo: “Se continuas a bater em mim para matar-me, mato-te eu”, isso não é uma ameaça: é uma advertência, que inclui uma condição. O meu interlocutor é responsável de cumprir ou não a condição, e eu, de cumprir ou não o acto negativo futuro. Também é uma advertência: “Se continuas a bater em mim para matar-me, os meus amigos vão matar-te, queira eu ou não”. Por fim, se eu digo: “Se continuas a caminhar polo abismo, vás matar-te”, isso é um aviso: eu não sou responsável de nada. No triplete ameaça-advertência-aviso, a questão crucial, portanto, é a da capacidade e a responsabilidade de cumprir os actos presentes e futuros: os meus e os teus. A violência de género, por exemplo, é um ciclo crescente de ameaças disfarçadas de pretensas advertências: “Matei-na, sim; já lhe advertira que não saísse com outro”.

No terreno político do Estado, a manipulação do sentido da “ameaça” não é nova. O Estado Espanhol e os meios de comunicação têm feito interpretações singulares de certos actos de fala políticos como ameaças. Em 1996, EL PAÍS intitulava uma notícia sobre um grande rebúmbio do momento desta ilógica maneira: “Anguita amenaza con pedir la república, el federalismo y la autodeterminación” (EL PAÍS, 15 Setembro 1996, p. 17). O contexto eram as declarações de Julio Anguita, então Secretário Geral do PCE e de Izquierda Unida, no sentido de que o seu grupo reclamaria a República para Espanha se a Constitución monárquica continuava a incumprir-se em termos de direitos básicos como a vivenda e o trabalho. Argumentava Anguita que a aceitação da monarquia fora uma concessão subordinada ao desenvolvimento (ainda hoje inexistente) destas políticas sociais de rango constitucional. Nesse contexto, a expressão “ameaçar com pedir” de EL PAÍS não é só manipuladora e absurda, mas risível. Isso significa que o Estado é tão débil e o ameaçante peticionário tão forte que, por exemplo, com só reclamar que Juan Carlos de Borbón marchasse a viver a um piso da Castellana como cidadão comum isto já se daria conseguido. Oxalá ameaçar consistisse nisso: Pola presente eu ameaço agora, como George Brassens nos dourados 1960: “Je déclare l’état de bonheur permanent”.

No Paradoxo de Grande-Marlaska, a peculiar visão do acto da “ameaça” reflecte-se na interpretação das palavras de Joseba Permach: Se os líderes independentistas são encarcerados, o chamado “processo de paz” em Euskadi poderia bloquear-se. Permach teria advertido contra as “interferências” do poder judicial a este processo. É curioso que estas palavras (que expressam uma possibilidade real, de sentido comum) contenham uma ameaça imputável judicialmente, e outras opiniões políticas não. Declarações semelhantes, que podem ser vistas no terreno da argumentação como tentativas de coacção política à “independência do poder judicial”, foram feitas por Conde-Pumpido, acho, quando instou os juízes a interpretarem a lei à luz do novo contexto político do Estado. Também são feitas a diário polo PP quando urge que o poder judicial não leve em conta o novo contexto político, o qual (dizem os que sabem) iria contra o próprio espírito da função judicial.

Mas o passado continua. Seguindo o Paradoxo da Ameaça de Grande-Marlaska, talvez o então vice-presidente Mariano Rajoy ameaçasse com bloquear o processo eleitoral na noite do 13 de Março de 2004, quando declarou por televisão sobre as manifestações contra as sedes do PP: “El Partido Popular ha denunciado estos hechos ante la Junta Electoral Central, que es la autoridad competente en garantizar la pureza del proceso electoral. Estamos esperando a que se tomen las medidas pertinentes que aseguren que el proceso electoral se pueda celebrar en el día de mañana en libertad y sin coacciones” . O conjuntivo é um modo verbal muito interessante. Eu interpretei a advertência como um anúncio eleitoral da rebeldia activa contra o governo espanhol (o facto é que, até então, meia Espanha nem estava informada das concentrações; depois da intervenção de Rajoy, muita mais gente saiu à rua); interpretei que esses factos poderiam chegar a ser uma escusa por parte do PP para deter temporariamente umas eleições perdidas. Precisamente por isso, refusei sair à rua a pedir explicações a um governo por outra parte alheio. Dias depois, Almodóvar declarou que essa noite o PP estivera a ponto de dar “um golpe de estado”; mais adiante retractou-se da sua intuição incomprovada. Do processo aberto polo PP contra Almodóvar pola sua pretensa acusação, nada se sabe.

Numa aplicação psicótica do Paradoxo de Grande-Marlaska, também 10 milhões de pessoas em Espanha teriam ameaçado o governo de Aznar quando clamavam que, se as tropas espanholas continuassem no Iraque, o terrorismo islamista poderia agir em Espanha, como fez. Por último, polo Paradoxo de Grande-Marlaska, pergunto-me se será ou não uma “ameaça para bloquear o processo de paz” a manifestação convocada no 10 de Junho pola Asociación de Víctimas del Terrorismo contra o diálogo de paz entre o Estado e a ETA. Será ameaça a Espanha a “realidade nacional” andaluza, mas não ameaça à Galiza a “Nación indivisible” espanhola? Em definitivo, desde as suas origens, a España monolítica apresenta-se a si própria como uma sociedade constantemente ameaçada, desde fora e, sobretudo, desde dentro: maçons, judeus, “moros”, “rojos”, operários, grevistas, “separatistas”, bascos, “terroristas”, comunistas, feministas, anarquistas, homossexuais, “afrancesados”, “lusistas”, ciganos, ateus, “islamistas”… You name it!, como se diz em espanhol. Será, pergunto eu, que essa perene sensação de ameaça às essências pátrias surge da falta de legitimidade histórica do Conjunto Booleano España?

Mas, enfim, por que algumas admonições sobre actos negativos futuros são ameaças e outras não? A natureza chave da ameaça reside na capacidade do ameaçador de fazer ou não o acto futuro. Portanto, é capaz Batasuna de cumprir a “ameaça” de “bloquear o processo de paz”? Para Grande-Marlaska, calculo, Permach ameaça porque ele ou o seu “contorno” são capazes de “bloquear o processo de paz” com actos de violência. Suponho que só isto tem em mente Grande-Marlaska, porque se “bloquear o processo de paz” significa não negociar politicamente, isso já o está a fazer o Estado Espanhol: a disposição visível por parte do executivo espanhol é negociar com ETA antes que com Batasuna; pode-se negociar com ETA, que é ilegal, mas não com Batasuna, que é ilegal. Se Grande-Marlaska já decidiu que Batasuna é ETA, o que não compreendo é que não encarcere os seus líderes de vez, porque qualquer opinião de Batasuna-ETA contra o Estado vai ser sempre um delito de ameaça terrorista: como o “delito de opinião” não existe em Espanha, haverá que chamá-lo “injúrias ao Rei” ou “ameaça terrorista”. Polo contrário, se Batasuna não é ETA, vaiam ou não à cadeia os líderes independentistas, não por isto haverá “bloqueio ao processo de paz”. A minha impressão é que, se ETA já decidiu deixar de matar, e o Estado já decidiu que ETA deixasse de matar, continuarão a negociar-se as condições da rendição militar, o último capítulo desta longa Guerra Civil Espanhola de 70 anos (os espanhóis amam as efemérides). Como a questão basca sempre foi tratada militarmente polo Estado, haverá mesa de partidos bascos também, mas não haverá nem reconhecimento do direito de autodeterminação, nem da “integridade territorial” de Euskal Herria, esses dous monstros que o espanholismo aduz sempre como as bases inamovíveis da estratégia do terror. Porque, afinal, trata-se de que as palavras dos manifestos e acordos do “processo” forneçam as escusas suficientes para ilusões a duas bandas. E já há passos nesse sentido: o comunicado da ETA do Março passado (Gara, 22 Março 2006, p. 3) repete a ambígua expressão “cidadãos [e cidadãs] bascos” como o agente principal do “processo”. Idos são, portanto, os tempos do nacionalismo étnico: todos sabemos que o cidadão é o sujeito político de um Estado. Mas, como o Estado basco não existe, quem serão para ETA esses “cidadãos bascos”? São “cidadãos bascos” os cidadãos de um inexistente estado basco? Ou os cidadãos dos estados espanhol e francês que são bascos? Eu intuo que o segundo, o qual implica um inconfessável reconhecimento por ETA do estatuto de cidadania dos bascos nos dous estados. Enfim, ETA saberá o que pensa dos seus “cidadãos bascos”, se é que pensa. Afinal, se tudo isto acaba em derrota da ETA sem direito de autodeterminação, terá-se demonstrado mais uma vez que ETA sempre foi uma cousa (um exército) e o independentismo basco outra.

Mas, voltando à responsabilidade nas ameaças, o Paradoxo de Grande-Marlaska consiste num estiramento vertical dos hilillos como de plastilina do sentido, pola zona onde “ameaça”, “advertência” e “aviso” mais se confundem. O Paradoxo de Grande-Marlaska, de inspiração preventiva, quer significar: “Para previr a violência, eu encarcero-te pola ameaça de dizeres que se te encarcerasse poderia haver violência”. O Paradoxo é paradoxal porque contém a impossibilidade da sua auto-comprovação, a impossibilidade de provar as relações entre a condição de advertência (“se somos encarcerados”) e os hipotéticos actos futuros de violência. Vejamos as possibilidades, supondo que o motivo alegado para o encarceramento de Permach fossem exclusivamente as suas palavras.

Primeiro, (1) suponhamos que Permach não fosse encarcerado polas suas palavras. Se depois (a) houver violência de ETA, esta não seria logicamente imputável às palavras de Permach, que condicionam o “bloqueio do processo” ao encarceramento. Contudo, temo que o PP argumentaria que apesar da cedência do Estado, a “ameaça” cumprira-se. E (b), se não houver violência da ETA, nunca se poderia demonstrar que as palavras de Permach foram uma ameaça incumprida. Contudo, temo que o PP argumentaria que o Estado cedera perante a “ameaça”. Conhecemos essa ladainha circular desse espanholismo.

Agora, (2) suponhamos que Permach sim que é encarcerado. Se nalguma altura depois (a) houver violência da ETA, alguns veriam uma relação causa-efeito. De qualquer modo, o Paradoxo de Grande-Marlaska seria a self-fullfilled prophecy, uma profecia auto-cumprida. Mas ficaria a dúvida razoável se a melhor maneira de previr o cumprimento duma “ameaça” é levar a cabo as condições para o seu cumprimento, sob uma interpretação particular das opiniões políticas como ameaças. Polo contrário, (b) se não houver violência da ETA, teria que admitir-se que não houvera antes qualquer ameaça nas palavras de Permach. E ele deveria ser excarcerado como imputado de uma ameaça inexistente. Mas, quando? Quando rompe internamente por ilógico o Paradoxo de Grande-Marlaska? Quando exactamente deixa uma ameaça incumprida de ser portanto uma ameaça?

Em resumo, na minha opinião, em nenhuma destas quatro soluções possíveis do Paradoxo de Grande-Marlaska, fundamentada no sofisma de que Batasuna é ETA, a identidade entre elas ficaria demonstrada fora de toda dúvida razoável. E a relação entre pretensa causa (“ameaça”) e efeito (“bloqueio do processo de paz”) ficaria também sem demonstrar. O problema é que, em política e nas ciências sociais, o tipo de relações a várias bandas entre palavras e actos é-che uma cousa muito rabuda de estabelecer. Uma cousa são as opiniões (como este texto), e outra os factos. A historiografia está cheia de “análises” que concebem estas relações como se falar e agir fosse comparável ao acto físico de atirar uma bola contra o chão e que ela rebote. Temos palavras e temos actos, coocorrentes ou em sequência; às vezes ambos procuram coaccionar aspectos da vida social; às vezes há ligações causais, às vezes não. E temos sangue ou não temos sangue, trágico sangue, bombas, disparos, cárceres e metralha, e muitas outras formas de violência. Sobretudo isso é o que temos ou não temos. A mim nunca uma palavra, nem as de um Rei, me feriu a pele.

Reflectir cuidadosamente sobre estas questões não só é um exercício de saúde: deveria ser um requerimento para juízes e políticos. Os meus alunos e alunas e mais eu debatemo-las nas aulas, sem acreditarmos na Verdade, e aprendemos como os humanos procuramos encarcerar-nos com a linguagem e sob a escusa da linguagem.

A nação das mulheres

Enviado a Faro de Vigo; não publicado

A todas as mulheres assassinadas. Com a minha culpa como homem.
Com desculpas polo meu atrevimento e pola dureza deste escrito

O caçador diminuiu a marcha e detivo o camião poucos metros mais atrás. Sabia que uma fêmea assim, separada da manada, não se devia deixar escapar facilmente. A Lei era clara neste sentido: Qualquer exemplar solto, sem marcar, é propriedade de quem o capture. As fêmeas assustam-se facilmente com o ruído dos motores. Nessa hora da manhã o resto da manada abrevava ou estava ainda por acordar. O caçador desceu do camião e prendeu habilmente a fêmea sem que esta pudesse fazer nada. Botou-na na caixa do camião, amarrou-lhe as patas, fechou as portas rapidamente para apagar os ruídos de queixa da presa. A Lei é explícita neste sentido: O gando sem marcar será propriedade de quem o capture. Às vezes é mais produtivo revender a fêmea ao seu antigo proprietário. As negociações polo preço podem durar meses. Alguns homens caçam a sós, outros ocasionalmente em grupo, quando voltam irmanados dos lugares de encontro e topam com uma fêmea isolada na curva de uma estrada. Baixam do veículo e rodeiam-na, sobem-na, mantêm-na tranquila com suaves vozes aprendidas secularmente para apaziguar animais enquanto se dirigem a um lugar escuro. Outras vezes, o caçador sofre tanto de soidade que precisa utilizar a fêmea sem revendê-la. A noite é demasiado longa num veículo ou alpendre isolado. O caçador tem direito a utilizar o que é seu. Logo do uso sacrifica a fêmea e bota-a ilegalmente entre arbustos. O caçador volta polo alvor à casa. Quando tem sorte, aguarda por ele uma esposa de olhos abertos com um café de amor nas mãos. Quando não, diante do caçador há só um televisor ligado que transmite incessantemente feiras de gando numerado, fortes e formosas fêmeas para o comércio mundial. A Lei é boa e justa para os homens que a votam, a Lei é clara: Os meios públicos devem promover a Economia, o Culto, a Ordem. A Lei é coerente.

Até à hora do sol-pôr o caçador come produtos democráticos enquanto contempla as mostras numeradas das feiras. Vê passar muitas fêmeas fortes e formosas polo ecrã. O caçador súa de soidade. Nas pausas comerciais onde se oferecem mais fêmeas, o caçador dá brilho às suas armas: o laço da palavra, o rifle masculino. Ao cair a noite o caçador está de novo preparado. Fecha a sua cabana. Ou sai despedindo-se levemente de uma esposa de amor sem pentear. O caçador prende o camião, e marcha. Mas hoje está confuso. Leva tantos anos a admirar tantos exemplares numerados fortes e formosos que está confuso. Primeiro precisa percorrer a sós estradas solitárias, e pensar. Pensar, pensar. A Lei é boa, a Lei é clara: Toda fêmea que não tem marca é de quem a caçar. Mas o trabalho não é fácil. Ninguém compreende a imensa tristeza dos caçadores solitários. Por algo a maioria dos homens preferem ser proprietários. De quando em vez um proprietário sacrifica uma fêmea que já não era produtiva, ou que fugira por um injusto instinto, desagradecida de tantos anos de ser alimentada e protegida. Mas as fêmeas fugidas polos arrabaldes sempre deixam um rasto de cheiro que o proprietário reconhece e segue. Afinal, o proprietário alcança a fêmea e sacrifica-a com gasolina para que deixe de fazê-lo sofrer com a sua ausência. O caçador pensa que tal desperdício de fêmeas é injusto. O caçador pensa tudo isto enquanto sulca a planície da estrada, o corredor ladeado por um desfile de fêmeas fortes e formosas para a caça. Já é noite fecha.

A última vez o caçador também botou o cadáver da presa à beira-rua. Ocultou-na entre as sebes, deixou que as alimárias aproveitassem o seu corpo. O caçador está preocupado, a Lei é explícita neste sentido: O cuidado do meio-ambiente é imperativo para a Economia. O abandono de cadáveres utilizados está fortemente castigado. O caçador observa uma Patrulha da Moral Ecológica mais adiante. Os patrulheiros fazem sinais com luzes. O caçador diminui a velocidade. Passa devagar junto a eles. O caçador e os patrulheiros saúdam-se, fitam-se serenos nos olhos. É evidente que os três homens são honrados trabalhadores da Economia. As suas olhadas são limpas. Cada um tem a sua função na manutenção da Ordem. Quando uma fêmea marcada escapa e acaba refugiando-se por cansaço nos Locais da Patrulha Ecológica, os patrulheiros devolvem-na ao seu proprietário. É natural. A Lei é explícita neste sentido: A propriedade privada deve estar sempre vigiada. Então os patrulheiros acompanham a fêmea à casa do proprietário. O proprietário abre-lhes a porta, recolhe agradecido a sua pertença, assina algum Recebim necessário. No televisor do fundo vê-se a Mostra Mundial de Gando. Os patrulheiros e o proprietário trocam cúmplices olhadas perante tanto exemplar forte e formoso. A fêmea recuperada lambe docilmente a mão do proprietário. O caçador pensa tudo isto, pensa, pensa. O caçador sabe que os patrulheiros, os proprietários e ele mesmo trabalham por uma única Ordem, polo mesmo Culto e a mesma Economia. Às vezes o caçador quisera ser proprietário. Às vezes um proprietário também se faz caçador, por não perder uma tradição ou por cansaço da rotina. Às vezes um proprietário aluga as suas fêmeas a caçadores ou a outros proprietários. A Lei e a Economia favorecem esta mobilidade social entre os homens, é necessária. A Ordem é precisa, justa, exacta.

A nação das mulheres é um território imenso que não conhece siglas, nem fronteiras, nem bandeiras, nem dinheiro. É a maior nação do mundo, colonizada, sequestrada, invadida, escravizada, mutilada e assassinada diariamente num inenarrável circo de sangue de tal crueldade que fixo a deus suicidar-se há muito tempo. Cada dia os caçadores matam todos os cérebros do mundo, toda a humanidade, e cada dia a vesânia volta a ressuscitar numa notícia de rádio. Eu sei isto porque sou varão e como tal também levo dentro uma indesejada arma de ódio, e também tenho poder, e dia a dia combato contra um cancro na minha mente que me ordena matar a mente da humanidade, matar a nação das mulheres. E estou convencido que eu também, de maneiras diversas, contra a minha própria vontade, dia a dia contribuo para matar essa imensa nação enquanto luto por deixar de matá-la.

Mas a nação das mulheres erguerá-se contra a loucura e contra o ódio. Pouco a pouco, com a firmeza da razão humana, com a justeza da razão humana, e contra a resistência dos varões, dos estados masculinos e dos escravistas da carne, a nação das mulheres imporá a utopia da igualdade, que é o lugar onde nasceu e aonde deve chegar a humanidade. E cairão os ídolos e desaparecerão os caçadores e as presas, e os proprietários, e aqueles homens monstruosos e miseráveis vagarão sem armas num horrível desterro polos caminhos da mente que agora ainda cheiram a sangue e gasolina e não deixam dormir.

A nação das mulheres não é apenas um nome sonoro para descrever o mundo: é o nome da assembleia humana que leva milénios em jogo. Maldigo a história enquanto aguardo esperançado a que se erga dia a dia a voz universal da igualdade, o reconhecimento definitivo de tanta humilhação e crime, a compensação final por este longo genocídio.

Le Pen, a Esquerda e Tu

Enviado a A Nosa Terra; não publicado • Publicado em NON!

Estes comentários sobre a vitória relativa de Le Pen na França soarão tão velhos a alguns como os princípios que sustentam a minha utopia razoada, esse projecto que nos legou Bourdieu para algo mais que conversas de salão (em Bourdieu, a utopia razoada era um sólido ideal político e social; na maioria dos que agora citam Bourdieu, é uma sonora expressão, como o seu nome, para aquilatar medalhas). O fracasso da “esquerda” e o pretenso fracasso da “direita democrática” frente à pretensa vitória relativa da “ultra-direita” são na realidade a consolidação do projecto de dominação a que ambas facções das classes dominantes levam empurrando o mundo nas últimas décadas. O argumento é singelo, e portanto não faz os quinze minutos de televisão, os pseudo-debates democráticos: O argumento é que uma “esquerda” que se dá a mão com o fascismo económico é cúmplice do fascismo, e uma “esquerda” que não apresenta mais do que retórica esvaziada de conteúdo é a peça fundamental que precisa a “direita democrática” para auto-legitimar-se, “contra o fascismo” que nos invade.

Com efeito, quando a análise política se reduz ao bisbilheio anedótico, quando se comentam as subas e baixas de Le Pen e Chirac, Aznar e Zapatero, Fraga e Beiras (ou Beiras e Rodríguez) como se fossem as subas e baixas da popularidade de Operación Triunfo ou Gran Hermano, o efeito não pode ser outro que o efeito brutal da teoria. A teoria é que todos somos iguais, e que em democracia ganha quem pode porque sempre ganha o povo com o voto. O efeito é que desaparece a utopia política, humana, social e histórica que informou tanto pensamento verdadeiramente criativo e revolucionário durante tantas décadas tão ultrapassadas polo novo escravismo de que somos cúmplices. A teoria e o seu efeito são que os “partidos” se definem por pequeníssimas questões que atingem aspectos marginais da existência: a quantidade de um subsídio de desemprego (não a ignomínia do desemprego nem a ignomínia do trabalho assalariado), a quantidade de semanas em baixa laboral por maternidade (não a função dos filhos como possessão do estado para a reprodução do sistema de segurança), a quantidade de papéis necessários para reclamar a “cidadania” (não o direito a mover-se livremente polo planeta, nem o dever dos estados opressores –todos– a garantirem a permanência na própria terra), e assim por diante.

Quando se ignoram os princípios da utopia razoada, Le Pen é apenas um acidente que reforça, como hemos ver, o grande monstro de €uropa. Le Pen ou Haider são o pretexto, não a ameaça. A ameaça está e continuará a estar dentro da partitocracia enquanto as poucas mentes lúcidas das “esquerdas” sigam a renunciar a um ideal que não lhes custa –sejamos sinceros– nada: Os intelectuais de “primeira” ou “segunda geração”, como os chamou Bourdieu, os “intelectuais orgânicos” gramscianos que ocupam a simbólica cimeira da pirâmide das suas classes respectivas, continuariam a exercer o seu sacerdócio (como já fazem periodicamente Chomsky, Said ou Galeano) com a mesma impunidade de consciência ainda se proclamassem esse resto de integridade política que mantêm, mesmo por nostalgia, no fundo de leituras e escritos progressistas. Onde estão os modelos económicos destes intelectuais, além da sua lógica e veemente oposição aos extermínios? Mas o possibilismo é uma serpe que se acosta contra os corpos dormidos na noite, que penetra o cérebro e o sexo e cresce para romper desde dentro a utopia razoada, que é nossa, da história, não dos seus pretensos salvadores.

A utopia razoada consiste em algo tão singelo que toda a maquinaria económica das sociedades de classes leva já mais de cem anos tentando destruir com milionárias videotecas de sorrisos e frases fáceis. A utopia razoada, o lugar nos mapas do socialismo de que falou Oscar Wilde, é simplesmente o convencimento íntimo e consequente de que a matéria e as forças do planeta são de todas as pessoas, e de que qualquer distribuição injusta e desigual dessa matéria atenta contra o próprio carácter da humanidade. Ninguém negaria, desde a razão (não desde o medo ou desde o possibilismo) de que o projecto de igualdade é o único razoável para a espécie humana e as demais. Eis o enorme potencial que tanto as “direitas” como as “esquerdas” institucionais se empenham em destruir constantemente para o seu próprio benefício.

Foram os chamados “governos socialistas” das cidades os que, no Estado, começaram a desmantelar o público e a aumentar a desigualdade com falsos booms económicos há um par de décadas. São os actuais governos das vilas e cidades os que também exercem contra a gente o mandato divino que lhes dá o voto. As palavras igualdade, revolução de classe, socialismo, desapareceram totalmente do discurso público. Na invasiva circulação do discurso legítimo, a menção de “classe” produz na intelectualidade aborregada e na plebe igualmente aborregada uma ladaínha de pseudo-explicações, escusas sobre a “dificuldade actual de definir as classes”, como para negar a evidência da injusta miséria. Agora que morreu Gramsci, que nasceu o pós-modernismo com Bill Gates, que o planeta se faz “tão pequeno” que compramos Kit-Kats com um euro pintado de flores de Finlândia ou águias alemãs, a classe é uma pesada lage conceptual que a esquerdinha não quer levar acima como um molesto resto de ideologia. Tudo se reduz a “direitos democráticos”, a “reconhecimento cultural”, à “integração das minorias”. Neste programado conflito entre conflitos, os interesses económicos confrontam tristes jornaleiras de Polónia contra tristes jornaleiros de Marrocos nos campos sudistas de fresas congeladas, confrontam máfias drogaditas de ucránios com máfias drogaditas de ciganos, moros contra cristãos e dépores contra barças no televisor congénito da mente. Tudo responde ao mesmo esquema infantil que inventou Abraxas e deu tanto fruto no concurso televisivo da política.

Por isso desce dos ceus Le Pen como sintoma, como polícia mau contra Chirac o polícia bom, ambos votados polos próprios torturados do euro. Aqui, dizem os listos, a “ultra-direita” não existe. Claro: está debaixo do uniforme de Jaime Pita, Pérez Varela ou Fraga Iribarne. A “direita democrática” leva o fascismo ideológico por debaixo porque por fora veste menos. E a “esquerda democrática”, o novo “nacionalismo da cidadania” que suplanta a força das múltiplas autodeterminações (o direito humano a ser oprimido como um queira) com um ambíguo direito ao boletim de identidade, dá-se a mão sem ideologia com a hidra reaccionária, que é (sem ironia) o “Pobo Galego” que a vota.

Companheiras e companheiros da “esquerda”: cada vez que matades a utopia razoada, que silenciades a necessidade indómita da total igualdade, aqui e alhures, nasce um Le Pen e ganha um Chirac: duas faces da mesma mo€da, que não deixa de ser a vo$$a. E a minha, que tenho o privilégio de escrevê-lo.

O Corpo, a Língua e o Estado Nacional

Publicado em Çopyright 66, 7 Novembro 1998 • Em Non! – crítica & intervenção

Na sociedade ocidental actual os três objectos (língua, corpo, estado nacional) que fazem referência a três âmbitos fundamentais da pessoa (o simbólico, o fisiológico, o social) sujeitam-se a um jogo entrecruzado de analogias com as quais entendemos e construímos um âmbito por meio do outro. Os três (língua, corpo, estado) são espaços minuciosamente territorializados e articulados polo discurso. Os discursos quotidianos, com as suas visões fortemente enraizadas de “como são as cousas”, constroem as nações-estado em termos orgânicos, como seres vivos cujas partes devem coerir, a risco de ficarem mancados: como uma árvore a que se lhe não podem cortar pôlas, como um corpo que não deve perder membros ou fetos. As línguas são também concebidas como realidades orgânicas que nascem, crescem, vivem, reproduzem-se e morrem, e que são mesmo invadidas por colonos alheios (“impurezas”) que as infectam e até as fagocitam. Os vírus das línguas são os “estrangeirismos”, os vírus dos estados são os “terrorismos”, os terroristas dos corpos são os vírus. O inimigo duma língua é outra língua, o inimigo dum estado é outro estado, o inimigo do corpo masculino é o corpo feminino.

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“Recrimíname un lusista”: Postura política e ortografia

Publicado em Galicia Literaria. Suplemento Cultural de Diario 16 de Galicia, 3 Julho 1993, p. IV

As palavras, como outros instrumentos de expressão do social (os símbolos, os hinos e mesmo os números), carregam-se involuntariamente com o seu uso de conteúdos imprevistos. Poucos usuários da linguagem são alheios aos deslocamentos semânticos que imbuem às palavras de atributos apenas inicialmente sugeridos. A reflexão vem a conto duma coluna de Isaac Díaz Pardo (La Voz de Galicia, 17/6/93) titulada «Recrimíname un lusista». O artigo é uma resposta a outro recente de Xavier Vilhar Trilho nas páginas de Diario 16 de Galicia sobre a decisão de Díaz Pardo de se apresentar nas listas do PSOE nas recentes eleições. Este terceiro texto meu tenciona, sem entrar no fundo de ambas colaborações, relacioná-las através da interpretação desse singelo titular: «Recrimíname un lusista».

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“Acento galego” e resistência cultural

Publicado em A Nosa Terra 554, 28 Janeiro 1993, p. 25

A medida que nos envolve cada vez mais provavelmente a maior contradição cultural da era moderna (a suposta unificação dos povos de Europa, que contrasta com o ressurgir das identidades locais), surpreende-me também cada vez mais viver num país que esquece gradualmente não como é, senão mesmo como era ontem, antontem, nesse longo período preto mas precisamente por isso intenso da repressão cultural da pós-guerra. A escusa para as minhas reflexões surge esta vez duma notícia dum sucesso aparecida na imprensa local mas com duvidosas miras universalistas que às vezes não temos mais remédio que comprar.

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A sociedade militar

Enviado a A Nosa Terra; não publicado

O exército é sem dúvida a instituição mais repugnante jamais criada pola humanidade. O que começara como guerras locais entre espécies ou bandas tornou-se, com o decorrer da barbárie humana, na indústria mais poderosa do planeta. O grau de sofisticação dos instrumentos de destruição e morte é algo tão arrepiante que só nos pode levar a duvidar do sentido do universo. Há armas que estragam desde dentro, deixando cavidades irreparáveis na epiderme. Há armas de metal pequeno que furam os caminhos harmoniosos do corpo e rebotam deixando ao sair ronséis vermelhos e retalhos de carne. Há armas que estouram ao pisá-las sementando de órgãos sanguinhentos as areias. Há armas que matam lentamente; na sua agonia atómica, o corpo perde a pele e os cabelos e remata a vida entre vómitos vazios, impotentes. Há armas que matam muitos anos depois, de cancro e de cegueira. Há armas que deixam mapas queimados na pele, como metáforas macabras dos territórios ocupados: a Beira Oeste, a Faixa de Gaza, Panamá, Kuwait, Irlanda. Há armas que asfixiam e armas que desmembram. E há armas legais que assassinam nas câmaras esterilizadas dos presídios, armas que electrocutam com consenso, armas policiais que derrubam desesperados ladrões urbanos na cumplicidade da noite, armas conjugais que deixam uma mulher a dessangrar-se nos labirintos grassosos da cozinha, armas anatómicas que violam meninhas de dous anos, armas de tinta que assinam execuções e masculinas leis injustas.

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