Exilados sem querê-lo

Publicado em Çopyright 24, 15 Dezembro 1996 • N’A Nosa Terra 761, 16 Janeiro 1997, p. 27

Por primeira vez na minha vida, olhando para a corunhesa rua São Andrés desde a janela da sala, tive a clara sensação de ser um exilado, um habitante dum país inexistente que desfaz a linha das fronteiras como uma enorme e suave língua geológica. Não me refiro a essa alienação que muitos sentimos às vezes por vivermos numa Galiza indistinta, rota, apenas suturada temporalmente pelos esforços pontuais duns poucos resistentes que sabem que morrerão no esquecimento: os marinheiros que trocam uma esmola de sardinhas por pneus queimados nas estradas, os poucos políticos que com constância percutem nos volumosos muros interiores das instituições espanholas, os insubmissos ou os desorientados que desde a Praça da Quintana de Compostela contemplam com nostálgica heroína nas veias o crescimento das Pátrias oficiais como grandes aves de artifício. Refiro-me a outra e confessadamente estranha sensação: a de ser um visitante temporal na Galiza chamada moderna, enquanto outro país sem bordas nem monarcas que também poderíamos chamar a Galiza, ou Portugal, ou longa língua de terra onde todos os Setembros vão morrer de idêntica maneira os sargaços, fica em parte oculto por uma névoa de séculos e em parte oculto pelo discurso dos mais fortes.

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Pátria e Língua, por última vez

Publicado com alterações sem solicitar em A Nosa Terra 736, 25 Julho 1996, p. 27

Toca-nos um novo 25 de Julho, uma nova celebração colectiva de identidade. Bom, sejamos claros: uma nova celebração minoritária de valores absolutos: Pátria, Língua, Identidade. Nunca poderei desbotar da minha pele a inquietude e náusea que me produz a palavra “pátria” (mais concretamente, Patria, sem acento), recitada dos catecismos fascistas espanhois durante miserentos anos de incultura. Porém, reconheço também que às vezes as Pátrias e outros construtos são úteis para distorsionarem tacticamente um sentir colectivo. Suponho que esta contradição entre a náusea e o fingido compromisso deverá viver comigo enquanto siga sendo necessário procurar formas efectivas de resistência. Mas, em que consistem, aqui e agora, estas formas efectivas de resistência?

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Corunha, a cidade sem língua

Enviado a A Nosa Terra; não publicado

Rodeada polo Passeio da Luz Universal do invito alcaide, que rompe a unidade histórica da terra com o oceano, a majestosa cidade da Corunha esconde entre as ruelas provisórias de Monte Alto, dos Castros, dos Malhos, um silêncio infinito. O que se conhece desde fora da Corunha é a epiderme assoalhada da praça imperial de Maria Pita, dos jardins onde os limpos passeantes traduzem o domingo em conversas sorridentes no idioma único que nos legou Espanha. Mas no interior dessa casca civil e luminosa, nos bairros decaídos do Orzã, apenas a uns passos da palavra, impõe-se o som escuro e rouco dos desamparados, aquele que não consiste em línguas mas em derrotados sonhos de poderem descer, nalgum momento da sua vida, às cândidas praias construídas com areias dum país que já não é nós mesmos. A Corunha é o epítome da glossolália, o falar em línguas em trance proletário para um deus que não nos atende. Percorrer a rua de Hércules, a encosta de Santo Tomás, as vielas de Trabajo, Libertad ou Progreso é um exercício de amargor. A língua pública dos cartazes, dos sinais, das precárias tendas de alimentos, revela-nos estarmos dentro de Espanha. Na beira-rua os rapazolos jogam com palavras de telefilme a construírem casas de cartão, a emularem os enormes enxames de chabolas onde se reproduzem em caló os ciganos, numa sorte de experimento de cultivo realizado pola supremacia branca.

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Abismos do discurso

Publicado em Çopyright 1, 18 Maio 1996

É mais fácil imaginarmos o discurso como uma tarefa cooperativa onde “nós” -uma colecção de sujeitos humanos desconexos- nos esforçamos pela harmonia. Mas o nosso próprio esforço revela a natureza muito distinta da fala. O discurso é um terreno movediço, uma área perigosa de projecções, onde nos mimetizamos em corpos animados que enactuam a biologia como enactuam a História. O pavoroso silêncio do não-dito e puramente imaginado esvoaça sobre as conversas, enquanto o silêncio do não-dito mas temporariamente compartido fornece apenas um débil e cambiante apoio para a assembleia de palavras e olhadas inconclusas.

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O mercado linguístico e o futuro da escrita

Publicado em A Nosa Terra 712, 8 Fevereiro 1996, p. 26

O meu colega Xosé Ramón Freixeiro convida de novo a reflexionarmos sobre as relações entre fala e escrita no nosso país, isto é, sobre as opções gráficas para o idioma (“A voltas coa norma lingüística na procura dun necesario pulo normalizador”, A NOSA TERRA 706, pp. 26-27). Basicamente, Freixeiro propõe um acordo que elimine as pequenas diferenças entre as normas majoritárias nas instituições (as do Instituto da Lingua Galega-Real Academia Galega, ILG-RAG) e as chamadas “de mínimos”. Tomo-me a liberdade de recolher a oferta de Freixeiro para sugerir, de primeiras, que a sua proposta (que está já na mente de bastantes utentes da escrita do galego) não resolve os vários problemas de fundo. Quero explicar em que me baseio para pensar assim. Começo cada apartado com umas afirmações gerais sobre as relações entre fala e escrita nas sociedades alfabetizadas.

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História fóssil da língua

Publicado em A Nosa Terra 699, 9 Novembro 1995, p. 26

A paleontologia (o estudo dos restos fósseis e a sua reconstrução) topa-se às vezes com aparentes e formosos paradoxos. Por exemplo, numa ubiquação dada descobrem-se restos de uma espécie que existe durante um longo período de tempo, talvez milhares de anos. Logo, a espécie começa a esvaecer-se rapidamente, enquanto no mesmo lugar e no mesmo estrato geológico surgem fósseis de um animal muito semelhante ao anterior, com o que aquele coexiste. É a nova espécie herdeira da anterior? É diferente? Houve um elo perdido na evolução? Por que não se encontram, ao longo dos milénios, restos das duas espécies no mesmo lugar?

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The Korunya: História de nove cidades

Publicado em A Nosa Terra 681, 6 Julho 1995, p. 24

Nove Partidos Ortográficos disputam o controlo simbólico de uma vila grande com espírito de cidade pequena, ou vice-versa. Controlar um nome é na realidade controlar o seu referente (são o mesmo país Galiza e Galicia?). As letras significam ideologicamente muitas cousas, num acto de subtileza tal que deixaria pasmado a qualquer alienígena de linguagem binária. O famoso da flamante presidência espanhola na Neouropa é claro índice da vontade de identidade estatalista: esse til originado no ñ não representa nem a bascos, nem a catalães, nem a galegos. O símbolo oficial e exclusivo do catalanismo é a insólita grafia l·l (paral·lel); o do basquismo, tx (txapela); o do galeguismo oficial (surpreendamo-nos), o ï de formas verbais como saïamos. O símbolo exclusivo dos portugueses e de muitos galegos invisíveis é, obviamente, o ã da razão.

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Em favor de Babel

Publicado em A Nosa Terra 670, 20 Abril 1995, p. 24

Aos represaliados e invisíveis

O chamado «mito de Babel» é sem dúvida um dos instrumentos mais nocivos entre os gerados pola ideologia cristã para impor uma unidade que não temos, e uma das suas falácias mais insidiosas para impedir o raciocínio. A interpretação dominante diz que um deus castigou às gentes pola soberba de quererem ser como ele, e, desde então, fez-lhes falar de maneiras diferentes. Uma leitura alternativa é que já antes de Babel as gentes falavam e escreviam diferente, mas entendiam-se. Foi precisamente o seu projecto comum de se unirem livremente para alcançarem as alturas do saber o que ameaçou o poder desse deus medíocre, inseguro, mesquinho, vingativo, um deus que não merece ser deus dos mortais que queiram ter um deus.

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Triunfo da democracia, martírio da palavra

Publicado em a A Nosa Terra 668, 6 Abril 1995, p. 14

Para aqueles de nós que vivemos uma época na que poucas palavras careciam ainda de sentido, o terror democrático actual supera as mais imaginativas previsões. Muito mais insidiosa que o fascismo patente –e portanto combatível–, a democracia formal nega-nos mesmo a possibilidade de conceber a revolta, formoso termo dormido entre as pregas da nossa adolescência de acne, algo de Lenine, Tintin e assembleias de distrito. A guerra civil actual entre os mercenários das direitas espanholas, com as comparsas voyeuristas da ilusa minoria de esquerdas e a constante supervisão do exército, confirma a absoluta consolidação da democracia no estado e o patético caminho descendente que ainda nos tocará percorrer ajoelhados só para nos deter pontualmente a introduzir molhadas papeletas ilegíveis nas morbosas urnas oficiais de onde sai um fedor a palavras putrefactas e liberdade assassinada. Os numerosos «casos» judiciais actuais, nos que se misturam a intriga de sauna escandinava, o Perry Mason, a China dos mandarins e o Interviú de sobremesa, são o elemento que lhe faltava ao Estado Espanhol para se homologar com o mundo mal civilizado. Como a Itália recente, como Bélgica, como os Estados Unidos de Al Capone, da Lei Seca e dos sindicatos desmobilizados, como a Índia de Gandhi e Neru ou como a Alemanha de Baader-Meinhoff, durante os últimos vinte anos as forças institucionais do estado espanhol, desde o Fraga Iribarne de Gobernación até o dúctil Belloch e o ávido Paco Vázquez, ajuntaram com êxito as miúdas peças da maior operação de alienação e derriba da esperança jamais concebidas. É apavorante compreender que têm mais crédito as palavras dum polícia chulesco do que as dum presidente com sarro. É triste aceitar que o gesticuloso discurso jornalístico supra a reflexão e o debate diário entre as gentes. É aterrador confiar como recurso no mesmo sistema judicial que mantém nos cárceres a miles de réus agonizando com SIDA. Mas é inclusive mais pavoroso assumir que às vezes, talvez várias vezes ao dia, chegamos a pensar que esse magoante país é o nosso.

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Elites lusófonas? Oui, merci

Publicado em A Nosa Terra 653, 22 Dezembro 1994, p. 28

Hoje fui ao Corte Inglês e comprei os quatro compactos do cativante grupo português Madredeus. Não sei que me satisfaz mais: a sua música ou o elitismo de saber que, entre escrito e escrito ou entre cigarro e cigarro, ainda tenho tempo de escutar. Enquanto sigo as letras impressas, encanta-me também pensar que não lhe se entende tudo à solista de primeiras porque é cantado. Deve ser a mesma sensação de iluminada reverência que tinham as nobrezas proto-alemãs do XVIII ao escutarem o bel canto italiano, ou os aristocratas russos finisseculares ao escutarem as lições de francês das filhas, ou a que sentiam os latifundiários autóctonos da Índia ao escutarem um recitado em inglês de Cambridge. Esse foi sempre o problema das elites da Galiza: não olharem para fora. Cada país precisa olhar para fora. Os catalães, para a França. Os japoneses, para a China. Os portugueses, para a Espanha.

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