Chapapote linguístico

Publicado em Vieiros

A Alberto Núñez Feijóo, filho de Iribarne

Ressuscitam os cadáveres dos velhos navios peçonhentos nas nossas costas? Voltamos a recolher o lixo físico deixado nas nossas praias primigénias pola imprudência dum governo?  Não.  Mas nestes dias anda a garrar a curta distância dos nossos olhos um enorme monstro que começa a deitar palavras de ameaça no país. É uma alta máquina oxidada que quer impor a sua sombra uniforme sobre o nosso enxame de pequenas barcas que sempre funcionou em rede, como as sociedades reais, a se comunicarem com vozes antigas e inquestionáveis atravês do mar, e do mar às beiras, e da costa ao interior, para leste e para sul, até às fronteiras difusas do país verdadeiro que não conhece linhas traçadas em mapas de plasticina. É uma máquina que com a sua simples presença impede a pesca vital e com o seu balbúrdio ensurdece o labor secular. Não é uma máquina estrangeira, mas um experimento sem sentido duns poucos poderosos, um engendro que nunca devêmos permitir existir, pois foi armado enquanto o contemplávamos nas mesmas indústrias e com as mesmas engrenagens que produzem o papel escrito que muitas pessoas lêem cada dia como se fosse a sua verdade. No seu costado obscuro que ressuma águas esluídas vê-se em grandes letras de pau o nome do projeto, e é esse nome que nos quer pôr medo, porque o engenho metálico em si não tem qualquer outra função que levar o lema de vila a vila dos nossos mil quilómetros de costa, enturvar as águas e os campos, e deixar-se ler sempre, a toda hora, desde faros e campanários, desde cantis e calas, desde casas senhoriais e prédios pintados nas cores das gamelas. A nau caduca que estes dias anda a garrar pola Galiza diz, polos dous lados, LENGUA ÚNICA.

A máquina das duas palavras ameaça com romper as redes deitadas entre os barcos de baixura. Se a deixarmos, ameaça com esnaquizar as rochas que são o domínio de antiquíssimos sustentos. Quer entrar pola estreita foz dos rios a rachar as beiras até às fontes, e que as crianças que brincam pé da água leiam em toda hora com assombro: LENGUA ÚNICA. A enorme máquina quer pousar nos peiraos das cidades e ser contemplada durante horas cada dia, a bruar pola gasta chaminé o seu som disforme com o vapor que sai doente das caldeiras alimentadas por ressessos eucaliptos. Se a deixarmos, quer chegar abrindo canais de terra até ao coração de pedra do país, e atracar em perigosa inclinação ao lado do portento barroco do Obradoiro, arrodear por todas direções o irrepetível penedo cinzelado e criar uma enorme fossa seca até à Azevicharia, até à Quintana, a rinchar com o metal em lascas as únicas palavras que conhece, em atroz grito de animal primitivo: LENGUA ÚNICA!

E, exaurindo os seus folgos por cortar o país em pedaços, daí a máquina doente quer continuar de vila em vila, arrastando no seu passo campos e escolas, livrarias e vinhedos, o monstro de metal quer entrar polo sul e sair polo nordeste, voltar a entrar por Fisterra e voltar a sair polo Minho, pouco a pouco, durante anos, durante os anos em que dure esta geografia, na sua inútil ilusão de chegar alguma vez a algures, empurrado sempre ridiculamente por detrás atravês das terras de labrança por um feixe de homens e mulheres em roupas de domingo que só levam um sorriso infantil crescido da ignorância e que são incapazes de proferir qualquer frase inteligível fora do lema sob o qual nasceram, sob o qual a sua memória vazia nasceu, o único lema que sabem ler após séculos a servirem o amo da lonjura, a legenda  aqui impossível LENGUA ÚNICA.

Mas nós, a gente que observamos, e que somos mais, e que temos mais os pés na terra, e que contemplamos o plano desenhado para o absurdo diplodoco, nem vamos permitir que se achegue mais às costas qualquer insensato edifício sem guia. Com ganapães e forcas, agulhas e palavras, com livros e martelos, expulsaremos longe o monstro para que nem comecem a aboiar entre os sargaços fios do chapapote linguístico que ele alberga e representa. Com ganapães, forcas, agulhas, livros e martelos restauraremos o sentido dum país que nunca conheceu a mentira desse lema nem a mentira doutras consignas que dizem o mesmo com adjetivos inventados. Frente à pobreza gutural desse ser acabado que recita em ladaínha a única sentença com que foi concebido nas indústrias de papel duns poucos poderosos enquanto ingenuamente olhávamos o seu chafariz de faíscas azúis, conjugaremos, já estamos a fazê-lo, um triângulo de palavras decisivas, transparentes, agudas, que com a vontade coletiva acabará por abrir furos de constância, já está a abri-los, na linha d’água da triste armada solitária que é adversária de nós e portanto de si própria. Nunca mais neste país a aberrante LENGUA ÚNICA sob outros subterfúgios, e sempre mais, desde todos os lugares, não por cântico nem por redenção nem por defesa nem por revolta gratuíta, mas pola pura lógica da História que fazemos, sempre mais GALEGO, SEMPRE MAIS.

GALEGO SEMPRE MAIS.