O “reintegracionismo” como Pátria

Publicado no Portal Galego da Língua

Quando não se tem nação, porque o que ela poderia ser foi apropriado por outra invenção nacional ou nunca existiu, os homens tristes do mundo (e alguma mulher) constroem as suas Pátrias pequenas onde aprendem os protocolos da honra, do poder, da antiguidade. São estruturas onde se reproduzem os princípios hierárquicos, petruciais, onde os mais novos se socializam na lealdade (de pouco a pouco, ou se não poderia resultar uma Revolução), onde se vai escrevendo nos textos e nos actos uma emotiva mitologia interna, onde se aprendem os mecanismos hagiográficos e os dispositivos da estigmatização. Nos interstícios do mundo real, primeiro na vigorante clandestinidade e depois na auto-assumida heterodoxia, década após década, as estruturas que são Pátrias crescem e decrescem intermitentemente como uma ténia que perde elos por um lado e ganha-os por outro, constantemente mantendo só a massa crítica necessária para a subsistência robinsoniana, como um escolhido mangado de incompreendidos heróis na ilha social, arrodeados de tubarões (alguns reais, outros imaginários), a improvisarem um refúgio comum sem sentido, pois quando o telhado já está montado e as pessoas mais jovens e fortes poderiam subir para iniciar o segundo andar, os mais velhos, herdeiros e custódios dos molhados Planos Originais, desmontam o telhado e voltam a começar. Para que no fundo o refúgio nunca mude e seja sempre mimese de si próprio. Durante décadas. Indefinidamente.

Quando na vida real não se desfruta desse abcesso mental que é a nação, os homens e as mulheres tristes constroem maquetas de Pátrias onde por qualquer motivo se expulsam os amigos, se denegam outras possíveis amizades, se retira o saúdo. Nestas Pátrias qualquer crítica converte-se num ataque aos princípios fundadores, qualquer parabém é imediatamente sequestrado como compromisso de incombustível lealdade, e surgem como hordas os vocabulários da Traição, da Destruição, dos Inimigos, os apelos à Unidade, o terrível, o inexprimível medo à diversidade, ao confronto, a ter que sentar-se frente a frente, no mesmo concílio, com quem sabes que aborrecerias pensar de igual modo, mas que tens que escutá-lo se queres que te escutem. Então surgem as nítidas Facções, os Partidos, as fechadas partidas de caça: surge a conspiração como princípio organizativo e portanto a psicose como método, a percepção de que todo mundo conspira sempre contra tudo e contra todo mundo, mesmo quando não conspira. Nas Pátrias, a rareza de não conspirar considera-se uma conspiração. E surgem as metáforas dos barcos que afundem sem remador, ou, polo contrário, das fálicas naves armadas que por fim apontam para um horizonte de vários oceanos, uma enorme Língua de mar ou de pequena terrinha que condensa o sentido dessa Pátria e onde na realidade se afogam todas as misérias. Quando há uma Pátria que os petrúcios ou os seus aprendizes proclamam que afunde, surgem sempre os desejos de que nasça um salvapátrias.

Nestas Pátrias, como nas verdadeiras, nunca há lugar para agir depois da sua fundação. Porque a Pátria já tem uma longa idade, uma mitologia de volumosas biografias, que é basicamente o que a constitui. Mais nada a constitui. A Pátria pode ter um tema fundador, mas este é apenas uma escusa. Os mais novos patriotas nunca poderão fazer parte da aborrecível cúpula. Porque a verdadeira razão de ser da Pátria não é a Pátria, mas a cúpula, e esta já está sempre ocupada por si própria. Os mais velhos patriotas que chegaram tarde, tampouco terão nunca biografia. Uns e outros serão sempre construídos como estrangeiros. Como inimigos. São patriotas inimigos. Dentro de cada Pátria sempre há patriotas inimigos, poucos mas necessários estrangeiros inimigos, pois sem eles não haveria Identidade Própria da Pátria, não haveria mitologia, heróis nem vilãos.

E assim, quando numa triste Pátria há lutas intestinas, igualmente cegos afinal todos os patriotas (uns, polo esmagador sol da vitória; outros, polas profundas trevas da derrota), todos eles só podem agir fragmentariamente guiados polas suas próprias, antigas, monótonas vozes: as únicas que reconhecem após décadas de recíprocos parabéns e de batalhas reais ou inventadas cujo duvidoso registo se acumula oculto nos sagrados arquivos custodiados, sacerdotais, impenetráveis, nas poeirentas gavetas de uma casa ou na paternal memória oral o acesso à qual é um privilégio. As Pátrias são por definição obscuras, isolacionistas, as suas mitologias são confusas, a sua essência é a exégese, não a explicação aberta, e quando algum raro súbdito abre a voz para que se falem os detalhes e a história desse monstro, para que saiam os papéis e se descubram as trapaças e os enigmas, as infantis acusações são que essa procura de clareza é ora querer destruir a Pátria, ora praticar a fútil loucura do discurso.

E levam razão. Ambas infantis acusações levam razão.