Fazer um monstro ou matar o pai

O sangue dos Reyes Católicos circulará polas veias do meninho ou meninha de Letizia Ortiz. A criança não terá a culpa, mas os seus pais, e avôs, e bisavôs de sangue real sim que a terão de fazer dela ou dele um monstro. A menos que o lance já esteja planificado e Felipe de Borbón y Grecia, quando reine (se reinar), ponha o seu privilégio real a referendo popular com a esperança de perdê-lo, essa criança que será filha dele sofrerá uma educação destinada a fazer dela um ser especial, um enviado divino que deverá reger a Pátria até contra a sua própria vontade, se é que chega a ter consciência dela. Como os Grã-Lama. Como os imperadores chineses. Como os pobres meninhos semideuses de rabo de porco que nascem nas aldeias da Índia e são venerados em lugar de operados facilmente. Como todos os párias que não têm eleição.

E esta criança não terá mente. Não poderá ter mente própria. Nascida na casta mais poderosa de Espanha (um só será chamado, e um só será o elegido), o seu universo de ideias será único, auto-contido, fechado como os dogmas das seitas, inexpugnável à interrogação e à rica crítica de um mesmo. Será Alteza, e depois Majestade, nunca pessoa. Essa criança será refém de uma história caduca, que continua a remexer-se contra a corrente da igualdade: da igualdade genética, social, da essencial igualdade dos corpos e das mentes. Essa criança sem culpa que será educada só para reinar não merece um destino tão ruim, tão mesquinho. Só a persistência de poderosas forças económicas, contra as quais o combate é cada vez mais necessário, explica que numa sociedade que se diz moderna os genes determinem a tortura de crescer para ter que reinar.

Mas muita gente do Reino, mesmo milhões, desejarão exactamente isto. Na mais pura tradição do sadismo popular, onde se criam touros também “de raça” para o extermínio ou capões para a asfíxia por sobreingestão, parte do Pueblo Español considerará lógico, lícito e necessário que uma criança sem culpa seja criada no cárcere da coroa, para passar subitamente de Filho a Pai de todos. E o Povo, a contemplar com delírio o espectáculo.

Nunca imaginei que o sentimento de ausência de Pai desde a morte de um antigo deus cristão por tortura numa cruz chegasse tão longe como para glorificar o estigma de nascer para reinar. Inconfessada, eterna orfandade de um suposto “povo espanhol” sem projecto, de uma fragmentada família de interesses apenas fragilmente alinhavada pola figura de um singular senhor ou senhora com coroa. No patriarcal ocidente, quando um pai morre, a família desfaz-se. Por isso há que mantê-lo vivo eternamente.

Mas não sei se alguém lembra ainda a frutuosa expressão “matar o pai”. É metafórica, mas, para um ser mais livre, funciona.

Escutem os políticos, se quiserem. E chamem-me, claro, ingénuo ou insolente.