Língua e Estatuto: Uma proposta audaciosa

Enviado a A Nosa Terra; não publicado • No Portal Galego da Língua • Em CMI Brasil

Nunca gostei da expressão, mas começa um novo “curso político” e social paralelo ao académico. Com ele, voltarão debates à minguante esfera pública que nos resta. A língua não é nem de longe o principal problema de qualquer sociedade. Mas o problema da língua é amiúde sintoma e, pior ainda, causa de outros. Neste sentido, é evidente que a situação sociolinguística na Galiza continua a ser grave: a Galiza como sociedade ainda foi incapaz de se articular nacionalmente, e a sua língua continua sem ser o que se entende por Língua Nacional, quer dizer, entre outras cousas, um símbolo de Estado e um instrumento que veicule e expresse conteúdos culturais distribuídos “democraticamente”, que sirva como recurso dentro da infelizmente inescapável lógica do Capital, e que seja um referente e uma conduta natural, diária e habitual de que por fim podamos deixar de falar com obsessão. E a sociedade galega foi incapaz de alcançar ainda esta situação porque carece dos recursos políticos soberanos, aqueles que poderiam levar a um estado nacional independente tão nocivo (mas, contra os medos dos liberais defensores do “mercado”, não mais nem menos) como o Reino de Espanha ou a República de Portugal, ou como qualquer outro Estado do capital.

Diz tudo isto quem nem é programaticamente nacionalista, nem independentista, nem estatalista. Manter contra toda laminação do pensamento uma ucronia ideológica informalmente libertária não pode significar cegar-se às evidências. E uma das infelizes evidências é essa carência de Língua Nacional na Galiza paralela à falta de autodeterminação real, como lhe corresponde em direito (humano, já não político) a qualquer colectivo em processo de construção intersubjectiva, que é como se dão os processos sociais.

Seria longo (e precisaria de outro autor) detalhar as responsabilidades históricas das proto-elites nacionais na falta de país e de língua actuais. Culpar sempre o Outro, como se o Outro fosse uma invisível entidade estrangeira em “Madrid”, não soluciona o problema. O facto é que em dous séculos as proto-elites nacionais galegas políticas e intelectuais foram incapazes de gerar pouco mais do que ideologia da Identidade e discursos culturais. Mas muito pouco Capital. E sem Capital não há Língua, porque é esta que se constitui em moeda de troca simbólica paralela às moedas únicas que nos subjugam. Evidentemente, a versão actual do galego culto, proposta pola Real Academia Galega e acolhida como útil miragem polas classes dominantes, não é tal veículo de capital que poda concorrer contra o espanhol como lengua nacional. De facto, está a acontecer todo o contrário: de cada vez mais, o espanhol é também lengua nacional da Galiza, porque todos os processos fundamentais de identificação social, (escassa) mobilidade de classe, comunicação social, etc., passam por ele.

Na minha opinião, no plano sociolinguístico só há uma maneira de procurar reverter esta tendência: abraçarmos com todas as consequências e acatarmos como súbditos obedientes a natureza cruel das Línguas Nacionais de estado, e construirmos a língua da Galiza como tal. Este é, nem mais nem menos, um velho projecto que o insidioso “senso comum” se encarregou de adjectivar como “lusista” ou, em linguagem politicamente correcta, “reintegracionista”, mas que subjaze a notáveis ideólogos da nacionalidade galega, desde Biqueira até Castelao ou Lôpez-Suevos ou (com uma importante concessão ao benefício da dúvida) Nogueira. E a história e o presente dizem-nos que o modelo mais próximo que temos para construir uma Língua Nacional que reproduza e à vez invisibilize a cruel distinção social e de classe é também o mais próximo cultural e geograficamente: Portugal.

Sei que se argumentará que o “Povo” não concebe o galego como língua portuguesa. Talvez este argumento fosse válido se os especialistas soubéssemos ver a ideologia “real” que têm as pessoas sobre a língua nos enunciados delas. E talvez não fosse válido, se soubéssemos resgatar as variadas concepções informes da língua e da fala em qualquer sociedade. Mas, contudo, queiramo-lo ou não, a concepção do “povo” sobre a língua não é a questão. Durante o Franquismo o “povo” galego (a gente) sabia que o galego era um dialecto do espanhol. Não o “pensava”: sabia-o. Agora a maioria da gente sabe que o galego é independente do espanhol. Muitos sabem que é independente também do português; mas muitos também sabemos que o galego é língua portuguesa. Como o sabemos, alguns chamamos o galego “português galego”, paralelo ao “francês quebequense”, e sabemos que não estamos a violentar a natureza da língua. Contudo, nada adianta discutirmos a firmeza destes saberes (o episteme é a cousa mais misteriosa que existe) nem os números das maiorias ou das minorias: as analogias mais transparentes (estruturalmente, o galego é à língua portuguesa o que o quebequense é à língua francesa) são facilmente ignoradas quando contradizem fortes ideologemas. Por isso, trata-se de tomarmos um caminho diferente do debate circular. Passo a explicá-lo.

O “curso político” talvez ofereça a possibilidade de as elites partidárias levarem adiante uma revisão do quadro jurídico do Reino: o quadro dos Estatutos de Autonomia, incluído o galego. Devo suprimir por praticidade a discussão da conveniência destas reformas. Teoricamente (ucronicamente), não podo defendê-las, porque não podo aceitar a existência do Reino sem grande ranger mental. Mas os factos sociais são mais poderosos do que a vontade do cérebro. E existe a possibilidade de o estatuto para “Galicia” ser revisado. No que atinge à língua (a minha deformação profissional) e aos direitos linguísticos, não se deveria deixar escapar a oportunidade de tocar o estatuto.

E é aqui onde se apresenta socialmente o que considero uma proposta audaciosa. Em 29 de Junho de 2004, as associações linguístico-culturais de âmbito galego AAG-P (Associação de Amizade Galiza-Portugal), AGAL (Associaçom Galega da Língua) e MDL (Movimento Defesa da Língua) aprovaram após discussões a três bandas uma proposta conjunta de revisão de alguns pontos do Estatuto, apresentada publicamente em 25 de Julho, que, na minha opinião, contribui para facilitar juridicamente a construção de Língua Nacional. A Proposta 2004, como é chamada (http://www.proposta2004.tk/) redefine o estatuto legal da língua da Galiza deixando aberta, de maneira muito elegante, a sua consideração, classificação tipológica e portanto denominação. A sugestão de reformulação do Artigo 5 do Estatuto galego, na qual me focarei, é a seguinte: O galego ou português é a língua oficial da Galiza.

Esta formulação é extremamente inteligente. A identificação entre “galego” e “português” é paralela à tão efectiva equiparação entre “castelhano” e “espanhol”, por exemplo, sinónimos que operam tanto no âmbito oficial e institucional quanto no quotidiano. No nível jurídico, a fórmula O galego ou português é a língua oficial da Galiza (esteja escrita como estiver) não impede nem promove qualquer modelo de formalização (padronização) autónoma do galego, enquanto levanta qualquer atranco jurídico para a discriminação em razão de língua (outro ponto também reformulado na Proposta 2004). Não se posiciona (como não se pode posicionar um Estatuto) sobre o debate técnico a respeito da delimitação do galego como língua (língua galega, língua galego-portuguesa, língua portuguesa na Galiza, português galego, etc.), nem muito menos sobre a questão normativa. Não impõe usos (como não poderia), e não os impede. Em definitivo, é inclusiva, não excludente.

Na minha opinião (e de muita outra gente), a construção efectiva de Língua Nacional na Galiza passa inelutavelmente polo amplo reconhecimento social e pola plasmação jurídica desta inteligente equação. Evidentemente, esta é uma condição necessária mas não suficiente para o alvo dos três enes: nacionalização, normalização e naturalização da língua. Para isto, a Proposta 2004 (que diz mais cousas, por exemplo sobre direitos linguísticos e meios de comunicação públicos) visa o apoio maciço de pessoas e organizações. Não é uma iniciativa desenhada para ficar no fácil recanto da heterodoxia que se autolegitima: é para ser contemplada com seriedade. Não me engano: a Proposta 2004 representa um desafio para partidos, intelectuais, e outras inevitáveis minorias que querem (em toda lógica) que sejam reconhecidas socialmente as parcelas de legitimidade alcançadas numa recente história de trinta anos. Mas eu vejo que a Proposta 2004 não está desenhada contra: está desenhada para. Cada um(a), cada pessoa, cada organização ou entidade, saberá como fazer encaixar a sua ideologia e projecto político com uma oportunidade histórica.

Confesso que eu já dei o meu apoio a esta iniciativa: o meu apoio, sim, à revisão dum Estatuto inconcebível. Diz tudo isto, e convida a visitar a Proposta 2004 e a considerá-la, uma pessoa que, repito, não é nem autonomista, nem quisera acreditar nas leis, nos estados e no poder das línguas. Mas assim é a natureza da Besta, que impõe tantas aberrações diárias, enquanto morre o mundo a mãos da única Língua, uma espessa língua de ouro preto que se chama Language.

Proposta 2004: http://www.proposta2004.tk/
Associaçom Galega da Língua: http://www.agal-gz.org
Associação de Amizade Galiza-Portugal: http://www.lusografia.org/amizadegp/default.htm
Movimento Defesa da Língua: http://mdl-galiza.org/