Denúncia da Universidade

Publicado em Çopyright 83, 31 Outubro 2000 • Em Non! – crítica & intervenção • N’A Nosa Terra

Desde há bastante tempo tinha vontade de escrever algo sobre a Universidade, as universidades, essa poderosa instituição tão pouco conhecida no seu funcionamento interno. Das universidades saem os líderes políticos, os professores, os juristas, economistas, doutores…: praticamente todo o tecido de grupos e interesses que sustém a sociedade de classes.

Conheço a universidade desde 1975, quando começara os meus estudos de Filologia na de Compostela. Logo, passei (e sofrim) polas universidades de Barcelona, Buffalo (Nova Iorque), Berkeley (Califórnia), e agora Corunha, onde sou professor de linguística e exerço de fiel Funcionário do Estado. Julgo ter suficiente experiência para ter uma ideia do que está em jogo no estudo, na (literalmente) carreira universitária, na obtenção dum posto de trabalho, na chamada “pesquisa académica”, nas oposições, etc. Talvez muitas das minhas apreciações se podam aplicar também a outras instituições ou âmbitos do estado capitalista burocrático. Nesse caso, talvez também os leitores podam reconhecer as suas experiências na minha narrativa, e poderemos assim lamentar juntos que as cousas não sejam como deveriam ser. Obviamente, não mencionarei nomes próprios. Mas, dentre os poucos universitários que leiam isto, penso que a imensa maioria (professores e alunos) poderão relacionar o que digo com alguma experiência vivida ou conhecida.

Lealdade. O objectivo principal da Universidade não é contribuir para a formação intelectual das pessoas nem fazer pesquisa para criar, promover e distribuir um “saber” supostamente neutro que ajudará ao “progresso”. O “saber” é simplesmente o veículo simbólico que maneja a instituição, como outras instituições e outros domínios do trabalho assalariado manejam produtos, dinheiros dos outros, “criação”, rádio-cassetes ou chouriços. O objectivo da Universidade é contribuir para manter os pressupostos ideológicos do Estado, suster a sociedade de classes e libertar o aparelho militar de certas das suas funções. Por isso a universidade precisa dum tipo de lealdades (também militaristas) camufladas sob os amuletos ideológicos da “investigação”, a “tradição disciplinar”, as “escolas de pensamento”, a “missão da Ciência”, etc. O que está em jogo é a formação de elites técnicas e intelectuais leais ao Estado, mas dum modo que ao mesmo tempo lhes ofereça aos membros dessas elites a miragem internamente cómoda da “liberdade de expressão”, “liberdade de cátedra” ou “liberdade de pesquisa”. Obviamente, o intelectual, historicamente díscolo, precisa crer-se menos amarrado polos parâmetros do poder.

Mediocridade. Mas para os membros destas elites, em conjunto, o que está em jogo no fundo não é a “qualidade” dessa pesquisa, nem as suas metas, interesse objectivo, transcendência universal ou “nacional”, etc. O que está em jogo é, singelamente, um posto de trabalho melhor remunerado do que a média do país (em torno das 300.000 ptas. para um professor titular), uma série de recursos económicos (bolsas de investigação que permitem realizar viagens profissionais, fundos para equipamento que permitem gastar menos do próprio peto, grandes projectos), e uma série de recompensas simbólicas: reconhecimento público, visibilidade, polo menos um minuto de TV dos 15 de que falava Warhol, prestígio social, ou essa auto-satisfação de “sermos escutados” nas aulas ou de “sentirmo-nos úteis” que apaga temporariamente a nossa mediocridade generalizada. Na minha experiência, o professor ou professora de universidade típico é um ser medíocre, falto de imaginação, rotineiro, conservador (quando não patentemente reaccionário), medroso das mudanças, inseguro –e por isso distante com os alunos e colegas de profissão–, zeloso da propriedade das “suas ideias”, insolidário com os “inferiores”, competitivo com os “iguais” e submisso com os “superiores”. O objectivo final do professor típico é chegar “o mais alto” que puder consoante as suas capacidades e, sobretudo, consoante a rede de alianças pessoais e de grupo que poda ter criado em anos de corredurias e manobras incertas. Grande parte da vida universitária perde-se então, não no “cultivo do pensamento” ou da técnica, mas em cotilheios, críticas pessoais, burocracia, traições e o estabelecimento das lealdades necessárias para progredir. Periodicamente, numa mimese dos parlamentos políticos, o corpo professoral e os manipulados estudantes votam democraticamente os seus Altos Cargos para que todo fique igual.

Rivalidade. O longo processo para a reprodução da elite universitária começa já no primeiro ano de estudos. Como instituição gremial, é já nessa altura que os alunos mais avezados começam a compreender os protocolos do jogo. Eles (e, menos, elas) são os que substituirão os seus mentores. É aí onde começam a perceber as injustiças das notas, as arbitrariedades do cômputo quantitativo do “saber” (um “saber” que deveria estar, por definição, sujeito ao seu derrubamento pola História), as teimas e graças dos professores, as suas inconfessadas preferências pessoais e os seus inconfessados aborrecimentos. Muitos alunos escolherão assim as matérias optativas em virtude das graças do professor ou professora ou da sua generosidade com as notas (às vezes falsa, demagógica, tão inconsciente como o suspenso geral dentro da lógica maniquéia das qualificações académicas). Como reprodução da estrutura familiar, cada aula fornece diariamente um Pai ou uma Mãe e muitos filhos e filhas dos quais sairão os favoritos: polo comum, os “peinaditos”, como os chama um bom amigo meu, quer dizer, aqueles que conhecem já desde os inícios os recovecos das leis, regulamentos, oportunidades de avanço profissional, esquemas de afiliação. Os poucos jovens clarividentes que querem escapar a esta tortura auto-imposta acostumam acabar sem trabalho, ou com maus trabalhos, e perenemente frustrados da sua experiência. Ao final de quatro ou cinco anos repete-se o infortúnio massivo que, embora conhecido, precisa ser lembrado: centos, milheiros de jovens no país acabam transmudados em pequenas fotografias de uniformadas orlas, simetricamente dispostos e dispostas no Muséu do Desemprego, com um sorriso forçado e um vazio ainda maior na cabeça. Muitos combaterão mesmo durante anos por conseguir um posto de trabalho nos licéus. Uns poucos continuarão para o Doutoramento, outra carreira que merece parágrafo aparte.

Desigualdade. Durante vários anos, centos de universitários do nosso país são financiados como bolseiros polas instituições (os governos, a própria universidade, fundações privadas) para continuarem os seus estudos de Doutoramento. Cada ano gastam-se literalmente centos de milhões do dinheiro público para, supostamente, formar estas pessoas como novas elites. Mas ao cabo de cinco, seis, sete anos de cursos, bolsas e teses, não há absolutamente nenhuma garantia de que o próprio Estado que os alimentou poda absorver estes privilegiados no seu seio como trabalhadores na universidade. Durante muito tempo, incluída a minha própria experiência como estudante na Galiza, Catalunha e os Estados Unidos, eu tenho observado o constante desassossego dos estudantes, as suas incertezas perante o futuro, as incontáveis manobras para triunfar a costa dos outros, os golpes baixos, em definitivo a sua verdadeira socialização nos mecanismos do poder. Até ao último ano da carreira universitária, a classe social de origem e de adscrição dos alunos vai determinar em grande medida se conseguirão ser contratados ou se passarão directamente para o desemprego. Os alunos dóceis arrimam-se aos professores poderosos, que são quem lhes ajudarão no futuro a obter um posto de trabalho. Os professores sentem-se internamente recompensados por estas lealdades e, no melhor dos casos, moralmente obrigados a ajudar estas pessoas para elas, literalmente, obterem dinheiro para pão. Os professores, embora se saibam academicamente superados polos seus “discípulos”, nunca lhe-lo admitirão, e ainda que os “discípulos” saibam também desta nova situação estratégica do jogo, terão muito cuidado de não lhe-lo fazer saber aos seus professores, estruturalmente ainda mais poderosos.

Prevaricação. Na contratação de professores não titulares (ajudantes, associados, professores interinos) os critérios de cômputo dos méritos (o que se chama o “baremo”) são distorcidos sistematicamente polas comissões correspondentes para favorecerem o “candidato da casa”, já previamente escolhido. As comissões de julgamento prevaricam frequentemente, com práticas que em qualquer sociedade normal constituiriam carne de julgado de guarda, chegando até a nem sequer avaliar com um mínimo de decência os demais candidatos quando o da casa já foi escolhido como “o melhor”. Os recursos administrativos dos candidatos agraviados jamais prosperam. Ainda que praticamente todo mundo conhece a situação, praticamente todo mundo cala e outorga, por puro corporativismo, por “falta de provas” evidentes ou pola prudência de aguardar a estar eles na mesma situação em que, também, poderão prevaricar legalmente para favorecer os “seus” candidatos.

Gremialismo. O seguinte passo é a famosa oposição universitária. O Departamento directamente involucrado na criação dum novo posto de professor (e, concretamente, o seu Director ou os Catedráticos) terá muitíssimo a dizer na composição do júri ou tribunal que vai julgar os candidatos. São pão nosso de cada dia os contactos prévios directos ou indirectos com os outros membros do júri (escolhidos por sorteio) para estes favorecerem o candidato da casa. A Administração das próprias universidades e os interessados recorrem sistematicamente o resultado duma oposição quando não foi ganha polo candidato da casa. Numa instituição que, como os grémios medievais, escolhe e acolhe os seus próprios membros, a endogamia é realmente uma pandemia: os candidatos e ex-alunos da casa obtêm o posto numa amplíssima percentagem dos casos, à margem do seu “currículo” ou das suas “capacidades”. Exposto, vulnerável e minorizado –mesmo fisicamente– por cinco membros do júri situados numa alta palestra, o candidato ou candidata deve, em aparência, “defender” o seu currículo, os seus conhecimentos, a sua formação. Mas deve também ter muito cuidado em não demonstrar muitos mais conhecimentos, formação ou inteligência do que os seus julgadores, ou estes, pola crescente inseguridade dos poderosos (que, quanto mais arriba, mais temem aos de abaixo), poderiam reagir com rezelo, desconfiança ou mesmo vingança divina sobre os desobedientes. Por último, o rito da submissão intelectual repete-se nas Oposições a Cátedra, máximo exponente das militaristas cerimónias de passagem do nosso sistema universitário.

Dominação. Onde fica o “saber”, a circulação das “ideias”, a altruísta exploração do pensamento? Fica na falsa superfície deste sistema injusto, opressor e mesmo doente. O saber fica como simples escusa da maquinaria da dominação. O motor e objectivo da Universidade é singelamente a distribuição grupal dos recursos materiais e simbólicos, a distribuição do poder. Os alunos são ao mesmo tempo coelhos de Índias e, às vezes, interessados cúmplices. Como um engenho do movimento perpétuo, a Universidade reproduz-se a si própria para refinar o princípio patriarcal da obediência, base da moral e da estrutura capitalista de classes. E cada poucos anos, como no Mundo Real, a Universidade ré-cria-se a si própria, fagocita alguns dos seus próprios filhos e filhas, e vota, democraticamente, os seus próprios líderes, os seus próprios monstros.