Kosovo e Sérvia: Os exércitos contra os povos

Publicado em Çopyright 70, 10 Abril 1999 • Em Non! • N’A Nosa Terra

Quando se leia este texto, provavelmente a intervenção por terra da OTAN em Sérvia e Kosovo já estará decidida ou será um feito. O estado russo já estará a emprestar o seu apoio ao exército sérvio dalguma maneira, provavelmente na forma de contingentes humanos.

A guerra contra os povos em Sérvia e Kosovo convoca mais que nunca a uma aliança mundial anti-militarista, à renovação da utopia libertária baseada nos mais singelos princípios da liberdade, a igualdade e a justiça ética. O conflito está desenhado para reforçar a dependência das populações ocidentais do aparelho militar e do discurso democrático, numa era em que cresce o anti-militarismo de base mercê a essa ambiguidade de que os soldados, simplesmente, deixam de fazer-se necessários para matar. Frente ao horror bélico cultivado polas elites dos estados, as sociedades civis dos países afectados vêm-se forçadas a posicionar-se diversamente, num maniqueísta jogo que só favorece a cultura da violência de estado. É o mesmo dispositivo ideológico interpelador que leva operando com êxito em Euskadi desde há 30 anos e que a ideologia política nacionalista basca agora tenta desactivar com o projecto ilusório duma Grande Euskal-Herria.

A estratégia ideológica das elites ocidentais situa a suposta “esquerda” numa difícil situação, como bem aponta Rui Bebiano neste número e em outro texto na revista electrónica Non! (http://www.interacesso.pt/non/). Noam Chomsky, no seu artigo deste número, como sempre extraordinariamente bem documentado, denuncia este caso de “intervenção humanitária” enquanto apela, num pragmatismo que só pode causar cepticismo, ao “direito internacional” e a uma “ordem internacional que lhes oferece aos débeis polo menos certa protecção limitada contra os estados predadores”. Porém, Chomsky não revela as razões claras da intervenção da OTAN, além de sugerir, como outros comentaristas, que é uma táctica para abrir o caminho a novas intervenções militares no mundo, já transparentemente à margem dos directivos da ONU. (De facto, isto explica que nem o governo duvidosamente democrático de Croácia esteja totalmente satisfeito do “castigo” da OTAN ao seu suposto arqui-inimigo sérvio, pois isto abre a possibilidade de que em qualquer momento a agressão se poda tornar contra Croácia mesmo). Numa conivência clara com os aparelhos militares, Daniel Cohn-Bendit, agora candidato dos Verdes, exorta a OTAN a cumprir a sua “responsabilidade” de impedir o genocídio (“Kosovo: O recurso é a força”, reproduzido na revista Non!) . E, num exercício de ingénuo democratismo, nos primeiros momentos os protestos de Izquierda Unida na Espanha consistiram apenas em que a decisão de enviar forças espanholas contra o povo sérvio não se discutira no parlamento do reino. Mesmo num dos últimos redutos da “esquerda” liberal estadunidense, a revista The Nation (http://www.thenation.com), há textos que se alinham claramente com a OTAN como salva-guarda dos povos.

Nestas noites de preocupação, tive o desejo e a urgência de internar-me nas fontes de informação que os nossos mídia oficiais nos negam. Pola Internet entrei mesmo na boca do lobo lunático do governo assassino sérvio, o seu Ministério de Informação (http://www.serbia-info.com). Obviamente, a verdade sobre o conflito não está nem na propaganda mediática ocidental nem na do establishment sérvio (embora, curiosamente, nesta página sérvia também se recomendem alguns artigos ocidentais que não deixam de revelar de alguma maneira a política etnocida da elite militar sérvia em Kosovo). É óbvio que, como resultado dos bombardeamentos, houvo e seguirá a haver em Sérvia e Kosovo mais mortos civis dos que informa a OTAN. A dedução disto é singela: a propaganda da OTAN não informa praticamente de nenhum, enquanto a propaganda sérvia informa de demasiados poucos como para serem precisamente propaganda. Numa página de informação independente encontro que os aviões A-10 “Warthog” dos EUA estão a sementar a terra que dizem defender de munição radiactiva do chamado DU, “Depleted Uranium” feita de refugalho da indústria nuclear, que foi amplamente utilizada na guerra do Golfo para furar melhor nos carros blindados. Os A-10 são capazes de ceivar por minuto 4.200 balas de 30 mm. de material radiactivo, que, como aconteceu no Iraque, pode deixar graves sequelas a quem entrar em contacto com ela (abortos espontâneos, malformações do fetos, cancro, etc.). Por aqui a propaganda oculta também que parte da crise dos refugiados albano-kosovares no campo de Blace foi causada pola lenteza deliberada na sua admissão na fronteira de Macedónia, que mesmo fechava às noites e que, segundo uma fonte, revisava a documentação dos fugidos com tanto zelo “como se fossem turistas”. Os refugiados tinham de esperar até dous dias para entrar em Macedónia. Com isto o governo de Macedónia estaria à vez a impedir a entrada de albaneses étnicos e, ao agravar a crise, jogaria com uma carta para forçar a sua “entrada de emergência” na estrutura da OTAN. Os propagandistas da OTAN mentiram também deliberadamente quando atribuíram ao exército sérvio a destruição de zonas civis de Pristina causada por erros próprios. Por tudo isto, intuo que a este respeito o obscurantismo dirigido é comum aos países da OTAN.

Polo que podo perceber, o Estado Espanhol provavelmente se conta entre as sociedades mais desinformadas e desmobilizadas nestes momentos. A falta de análise real é suprida, como tantas outras vezes, com as estratégias conversacionais da legendização e da personificação. O conflito social, económico e humano é reduzido a uma luta entre duas partes, uma das quais inevitavelmente se torna na força heróica e outra na vítima. Dentro deste quadro, às vezes distingue-se obscenamente entre “lógicas” baixas militares e “civis inocentes” (“danos colaterais”), como se os soldados recrutados forçosamente polos governos fossem “culpáveis”. (É uma lógica irónica das guerras, mas suponho que entre os soldados jugoslavos que a OTAN matará se contarão também alguns albano-kosovares recrutados). Além, as partes em conflito são personificadas em “Milosevic” contra “a OTAN” ou contra “Clinton”, ou, na melhor das versões, nessa curiosa territorialização do humano que é a noção adjectivada “o Povo Tal” ou “o Povo Qual”: o “povo albano-kosovar” contra o “povo sérvio”!

Mas em nenhum momento se propõe a seguinte versão da tragédia: O exército está em guerra contra a gente. Os Exércitos do mundo (todos), em aliança consubstancial à sua natureza, odeiam as gentes, lutam contra elas, e matam-nas. Esta percepção só se obtém, logicamente, sobre o terreno brutalmente queimado, onde as bombas que caem em torno de um, onde as milícias sanguinárias que deportam e violam, ou onde as guerrilhas “libertadoras” (como as FARC de Colômbia) não têm nem podem ter nacionalidade nem estado. Só isto explica a aparente adesão geral dos habitantes de Sérvia ao seu governo, e a sua demonização da “OTAN” e dos “EUA” através de ritos reaccionários como a queima de uma bandeira particular, e não de absolutamente todas as do planeta. Certamente, desde a altura tecnológica dos satélites, nem os mapas militares nem as suas réplicas meteorológicas querem assinalar em detalhe a ubiquação dos corpos humanos desmembrados ou violados no nível real das ruas ou montanhas. O discurso tecnológico une assim o lazer e a morte, e faz de todos os seus consumidores (televidentes e leitores) cúmplices na avaliação das possibilidades do extermínio. A página web da CNN (http://www.cnn.com) tem uma secção específica que informa do clima nos Balcãs, provavelmente para os jornalistas (mensageiros do pensamento militar) anteciparem as acções militares a seguir.

Toda esta guerra não é sem esforço para as elites ocidentais. Na sua cuidada planificação, as elites ocidentais estão a realizar um grande esforço mediático por evitarem as análises políticas (quer dizer, sociais) dos factos, porque estas análises só podem revelar, em lógica ética, que a guerra contra as gentes em Kosovo e Sérvia vai contra a história, contra o ideal libertário que a humanidade como força histórica deseja alcançar. Porém, mesmo no mais próximo espaço da “esquerda” parece que se esqueceu que a história não o fazem indivíduos isolados (Milosevic, Clinton), nem sequer os seus governos, e que esses nomes grandiosos apenas escondem debaixo um pelexo humano provavelmente infeliz que por messianismo aceitou a sua designação polas elites económicas e militares como braço executor do assassínio, sob a fértil máscara da representação democrática. Por pouco que pensemos, qualquer mente racional compreende que a guerra de Kosovo é uma luta dos estados militares –propriedade dos poderosos– contra o ideal da emancipação humana, em Kosovo e em alhures. Qualquer guerra força o posicionamento e dificulta a rebelião do pensamento. Esta não é uma conclusão difícil. Por contra, é quase auto-evidente. É por isso mesmo que, contra Althusser, a “relativa autonomia” do aparelho ideológico é agora mais que nunca uma miragem, e a ideologia hegemónica é agora mais que nunca uma central peça dentada da engrenagem militar.

Seria ingénuo pensar –e falacioso argumentar, como se faz nos mídia– que houvo “erros” no desenho estratégico da OTAN no seu ataque a Sérvia. Se um servidor, que se considera apenas suficientemente inteligente e estava bastante pouco informado dos detalhes do conflito quando começou, pudo na altura intuir que o efeito imediato seria a escalada da repressão do exército sérvio contra os kosovares, é fácil imaginar que os estrategas da OTAN também o calculavam. De facto, Chomsky aponta que o general da OTAN Wesley Clark já declarara que esta escalada depois dos ataques era “previsível”, e EL PAÍS informa (10-Abril-99) que a CIA também informara desta possibilidade. O próprio Exército de “Libertação” do Kosovo –afirma o auto-denominado “capitão” Kulaj– “advertira disto à comunidade internacional, que não nos fez caso” (EL PAÍS, 9-Abril-99, p. 7). E hoje o ideólogo oficial do intervencionismo militar estadunidense Henry Kissinger não ignora que a OTAN não pode abandonar Jugoslávia sem invadi-la por terra. Por isto, também foi sempre previsível que a invasão da OTAN por terra se daria, e na altura é previsível (se não já um facto) que forças russas participarão dalguma maneira no combate.

Os estrategas da OTAN não são idiotas nem jogam aos soldadinhos. O plano das elites de ocidente incluía retirar os observadores da OSCE, justificar o gasto e a necessidade da alta tecnologia militar, acelerar a expulsão dos kosovares, implicar Albânia no conflito e na órbita ocidental, invadir materialmente Sérvia e, uma vez “ré-estabilizada” a região, acrescentar a dependência económica dos países e abrir mercados no momento preciso do despegue do euro (por que, se não, se obtivo por fim a unanimidade de apoio aos ataques da OTAN no seio da UE?). Neste sentido, é enigmático constatar que o governo albanês autorizou o uso do seu território para os helicópteros Apache dos EUA num acordo “quase incondicional” (sic). Nunca vi informação na imprensa dos termos dessa autorização “quase incondicional”, que, por pouco que um saiba ler, quer dizer que houvo polo menos alguma condição, provavelmente relacionada com a integração na Aliança e com o necessário apoio económico para o país mais pobre de Europa.

Este é talvez o projecto da Grande Albânia, que não é mais do que uma metáfora para a contínua reconfiguração dos estados consoante os interesses do capital militar-industrial. É curioso que outros projectos estatalistas semelhantes, derivados do “inalienável direito à auto-determinação”, como a Grande Sérvia, a Grande Irlanda ou a Grande Euskal Herria, não gozem do apoio das mesmas elites militares. Enquanto em Kosovo a OTAN se aproveita do papel do ELK (“terroristas” ou “libertadores” segundo convenha), em Irlanda ou em Euskadi os mesmos exércitos que invadem os Balcãs querem que as suas respectivas guerrilhas assassinas internas entreguem antes as suas armas.

Opor-se aos ataques da OTAN não supõe em absoluto estar em favor da barbárie do exército sérvio-jugoslavo contra centos de milheiros de pessoas, e quem reduzir o assunto a esta dicotomia não merece nem um minuto de diálogo. Opor-se aos ataques da OTAN é a única forma de não entrar no jogo da cumplicidade com que os estados militares disciplinam os cidadãos e impedem a insubmissão do pensamento, mercê a um contínuo de dispositivos que começa nas rituais eleições democráticas e acaba no império do euro, dólar, dinar ou rublo manchados de sangue.