Biafra, sempre

Quando contemplo em detalhe o granulado fotográfico daquele meninho totalmente despido de Biafra que retratou McCullin em 1969, ou o corpo calcinado polo napalm do paradigma do terror que foi a meninha vietnamesa a fugir pola estrada borrenta, compreendo com uma força aterradora que o meu próprio privilégio de falar é a essência pura do fascismo. Sem tristeza, com a raiva dum cérebro impotente, debato-me entre a adesão ao Acaso mais inapelável ou a adesão à História. É redundante lembrar que esse meninho poderia ter sido eu, e que o meu corpo poderia ter sido aquela meninha: carne obscenamente nua, carne expiatória, desaforada mancha ética, epítome da barbárie que desde a origem do tempo não cessou.

Se a História é essa determinação dialéctica que ainda proclamam os marxistas, a História e os seus sequazes estão a fracassar. Quisera ver por um instante o rosto de todos os poderosos no rosto do meninho anónimo de África. Quisera encontrar a tumba dele, espoliar os seus ossos e depositá-los numa noite ilegal na fragrante almofada dos reis e no cálice dos papas. Trocar por um momento os cérebros dos juízes e mendigos, das meninhas do napalm e dos obscuros chefes das seitas assassinas. Que o general acordasse com um verme a roer-lhe no pescoço, e que o rei sentisse a rachadura da mulher violentada. E que da dor nascesse o ódio à dor, a rediminte compreensão da verdadeira História.

Já não há mais razões: já tudo está dito. Qualquer mente humana sabe que não precisamos de mais provas. O Erro fundamental da humanidade ultrapassa qualquer justificação ou escusa. A miséria, a degradação, a dor, a morte, o escravismo, o tormento, a vesânia, a prisão, o terror, a cegueira, o vazio, o extermínio excedem toda dimensão. A magnitude do genocídio dos iguais convoca a um novo mundo: sem messias nem salvadores, mas com armas: as da libertação e da conquista, as do raciocínio, as da firmeza.

Nem um instante mais de demora é necessário. Não há desculpas nem existe lógica humana que poda conjurar esta barbárie. Qualquer palavra ambígua é cúmplice, qualquer acto ambíguo é uma explosão de napalm, uma epidemia de sofrimento na savana.

Ou nós, ou Deus. Escolhamos.