Triunfo da democracia, martírio da palavra

Publicado em a A Nosa Terra 668, 6 Abril 1995, p. 14

Para aqueles de nós que vivemos uma época na que poucas palavras careciam ainda de sentido, o terror democrático actual supera as mais imaginativas previsões. Muito mais insidiosa que o fascismo patente –e portanto combatível–, a democracia formal nega-nos mesmo a possibilidade de conceber a revolta, formoso termo dormido entre as pregas da nossa adolescência de acne, algo de Lenine, Tintin e assembleias de distrito. A guerra civil actual entre os mercenários das direitas espanholas, com as comparsas voyeuristas da ilusa minoria de esquerdas e a constante supervisão do exército, confirma a absoluta consolidação da democracia no estado e o patético caminho descendente que ainda nos tocará percorrer ajoelhados só para nos deter pontualmente a introduzir molhadas papeletas ilegíveis nas morbosas urnas oficiais de onde sai um fedor a palavras putrefactas e liberdade assassinada. Os numerosos «casos» judiciais actuais, nos que se misturam a intriga de sauna escandinava, o Perry Mason, a China dos mandarins e o Interviú de sobremesa, são o elemento que lhe faltava ao Estado Espanhol para se homologar com o mundo mal civilizado. Como a Itália recente, como Bélgica, como os Estados Unidos de Al Capone, da Lei Seca e dos sindicatos desmobilizados, como a Índia de Gandhi e Neru ou como a Alemanha de Baader-Meinhoff, durante os últimos vinte anos as forças institucionais do estado espanhol, desde o Fraga Iribarne de Gobernación até o dúctil Belloch e o ávido Paco Vázquez, ajuntaram com êxito as miúdas peças da maior operação de alienação e derriba da esperança jamais concebidas. É apavorante compreender que têm mais crédito as palavras dum polícia chulesco do que as dum presidente com sarro. É triste aceitar que o gesticuloso discurso jornalístico supra a reflexão e o debate diário entre as gentes. É aterrador confiar como recurso no mesmo sistema judicial que mantém nos cárceres a miles de réus agonizando com SIDA. Mas é inclusive mais pavoroso assumir que às vezes, talvez várias vezes ao dia, chegamos a pensar que esse magoante país é o nosso.

Mas quiçá não podia ser doutra maneira, e estávamos loucos ou cegados quando repartíamos inútil propaganda em ciclostil trás uma noite de substâncias ilegais e amor inexacto em Compostela. Não reclamo heroísmo nenhum para mim ou para esses simples actos. Tudo era parte da mesma, inevitável, concepção do mundo. Só me pergunto quantos dos que agora nos invadem dia a dia com os seus masculinos rostos e discursos têm vivido a paixão, ou o medo, ou as duas cousas juntas, simplesmente por fazer o que sentiam.

Eu unicamente duas vezes na vida tivem o total convencimento de que o que fazia estava eticamente bem, porque as duas vezes sentim um grande júbilo e ao mesmo tempo as duas vezes sentim um grande medo de que ali mesmo, involuntariamente, poderia morrer. Ainda agora algumas noites impede-me dormir a memória de aquela colossal assembleia de estudantes numa ateigada aula ao final dum corredor da Faculdade de Medicina, os meus olhos a procurar constantemente a única saída colapsada, com a polícia franquista totalmente armada às portas e debaixo das janelas do edifício, nervosa como nós, capaz de irromper em qualquer instante e provocar um massacre de corpos esmagados. Também lembro com igual desassossego o calor imóvel de milheiros de corpos numa noite de Fevereiro em San Francisco, comprimidos entre dous contingentes policiais ao começo dum passo elevado de auto-estrada, e o rebúmbio dos berros contra a imunda Guerra do Golfo, o coche cercano da polícia estourando em altas labaradas irreais, a crescente inquietude dos corpos, a possibilidade fulgurante de morrer asfixiado ou de lançar-me muitos metros ao vazio, a minha retirada perante a visão imediata da morte, e a minha pavura e a minha satisfação por ser humano e sentir essa pavura. Outros de vós teredes sentido outros júbilos e quiçá outros medos. Mas eu pergunto-me quantos dos que agora nos invadem dia a dia com os seus masculinos rostos e discursos têm vivido este júbilo, ou este medo, ou as duas cousas juntas, simplesmente por fazer o que sentiam.

Talvez aí esteja a diferença entre os que enganam e os que nos sentimos enganados. Eu fum enganado por vez primeira quando os burdos argumentos dum partido duvidosamente chamado comunista me persuadiram a aceitar uma sanguinhenta bandeira bicolor como emblema da prometida Democracia. Esse engano durou-me pouco, mas seguramente logo viriam outros. Porque, como nas tristes estórias de amores e pós-guerra, o Monstro democrático já conseguira levar-me com hipócritas artes de lascívia aos cheirentos assentos derradeiros dum cavernoso cine de subúrbios, primeiro o monstro roçou-me lenemente o joelho, depois colheu-me a mão, logo passou-me o braço piloso por trás do ombro, e num momento de descuido ou compaixão selou com um brusco beijo na minha boca rígida como um anel dourado o nosso eterno pacto de silêncio. E desde então, como a tantos, o engendro democrático crê ter direito a possuir-me cada dia contra a minha calada, pouco útil, chorosa resistência.

Para aqueles de nós que temos vivido uma época na que as palavras ainda não careciam de sentido, este estado de cousas e as cousas deste Estado iludem qualquer defesa, qualquer justificação política. Singelamente, este Estado enganou-nos, enganou-nos sempre, não nos serve, talvez nenhum estado nos serve. Por isso estamos condenados mas felizes por acarretar connosco às nossas costas, enquanto baixamos esfarrapados pola pendente dos dias rumo à tenebrosa Europa, um tosco saquinho de formosas palavras clandestinas que às vezes, quando ninguém mira, sacamos para desenrugá-las e lê-las, pronunciá-las em voz baixa, memorizá-las fortemente, voltarmos a guardá-las logo na bolsa, voltar a olhar para o redor com cautela, e, se acaso descobrimos alguém que está a fazer o mesmo, chiscar-lhe um olho às escondidas e seguir polo caminho.